PRIMEIROS ANOS
Como o próprio artista explica em sua autobiografia A Vida Secreta de Salvador Dalí, escrita em 1940-1941, seu ambiente familiar na infância e adolescência – ou seja, o período entre seu nascimento em maio de 1904 e sua mudança para Madri, em setembro de 1922 – foi particularmente propício ao desenvolvimento de uma personalidade complexa. Seu pai distante, Salvador Dalí Cusí, um notário de Figueres, sempre representou o paradigma da autoridade implacável, uma presença poderosa, cuja moralidade e tabus tiveram um impacto duradouro na psique de Dalí. Após a morte da mãe, Felipa Domènech, quando Dalí tinha apenas 17 anos, seu pai se casou com a irmã, “La Tieta” Catalina. Uma mulher que, para Dalí, nunca poderia compensar a perda de sua mãe, que o afetou profundamente e de maneira bastante perturbadora. A irmã, Ana María, quatro anos mais nova, era a mais próxima dele na família, e cultivavam uma relação intensa e complexa. A esse ambiente se somava o espectro de um irmão falecido com apenas 22 meses, nove meses antes do nascimento do futuro artista, e de quem herdou o nome Salvador. Dalí desenvolveu uma curiosa relação imaginária com a presença fantasmagórica desse irmão, que durou muitos anos.

A solidão, 1931. Wadsworth Atheneum, Hartford, CT, Henry e Walter Keney. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.
O significado dessa complexa situação familiar também é aparente em muitas das obras de Dalí, como em seus primeiros autorretratos, que o representam como alguém que sofre de uma doença ou como um jovem cujo olhar expressa introspecção e desconfiança. Também aparece nos retratos de seu pai, consistentemente representado como uma figura poderosa, quase aterrorizante, e nos retratos inquietantes da irmã, que parecem carregados de conotações sinistras.

Retrato de meu pai, 1925. Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.

Retrato de minha irmã, 1925. Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, Madrid. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.

Auto-retrato com “l’Humanité”, 1923. Câmara Municipal de Figueres, em empréstimo permanente na Fundació gala-Salvador Dalí, Figueres. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.
No entanto, há certas memórias específicas de sua infância e adolescência que fornecem a maior parte do pano de fundo para os trabalhos posteriores do artista: por exemplo, a estadia com o pai perto de um lago nas montanhas dos Pireneus, que aparece em inúmeras composições depois de 1929; as imagens estereoscópicas que vira na escola; a impressão deixada nele pelo traseiro do colega Burchaque, ocasionalmente provocando nele tontura e sentimentos sexuais conflitantes; elementos do parque Güell e outras obras de Antoni Gaudi e da Art Nouveau, cujas formas eram tão fluidas e caprichosas quanto um camembert e que se tornariam parte integrante de seu trabalho depois de 1929; as paisagens de Cadaqués e as surpreendentes formações de falésias do Cabo de Creus, cuja memória inspirou inúmeras duplas imagens; a imagem chocante, perturbadora e obsessiva do pai de cueca, com o pênis saindo pela braguilha aberta, imagem que se havia gravado irreversivelmente na complicada sexualidade do jovem Dalí; sua atração pelas mulheres e meninas que conheceu quando jovem, incluindo Julia, a filha adotiva de Ramón Pichot, um artista amigo da família cujas pinturas pontilhistas o fascinavam particularmente; as manchas de água no teto de sua escola primária, nas quais ele conseguia discernir imagens fascinantes; seu medo paralisante de gafanhotos; suas obsessivas experiências masturbatórias.

O burro fedorento, 1928. Centro Pompidou – Museu Nacional de Arte Moderna – Centro de criação industrial, Paris. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.

Paranóia, c. 1935. Museu Dali, São Petersburgo (Flórida). © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.
CONHECENDO FREUD
Depois de passar no vestibular da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Dalí se mudou para Madri, em setembro de 1922, onde se alojou na Residencia de Estudiantes. Ele ficou lá até a expulsão da escola em julho de 1926, depois de ter declarado seus examinadores como incompetentes. Durante esses quatro anos, sua personalidade artística e intelectual emergiu plenamente, e ele se alinhou com as últimas novidades da época. Um fator decisivo foi o acesso, a partir de 1926, à obra de Sigmund Freud, publicada em tradução espanhola pela Biblioteca Nueva desde 1922, que o levou ao desenvolvimento de uma poética visual com qualidades surrealistas.
Em suas primeiras leituras de Freud, Dalí encontrou explicações para muitas das fantasias, obsessões, desejos e ansiedades que o perseguiam desde a infância. Como consequência, ele começou a desenvolver um sistema de símbolos visuais para traduzir e ter acesso a esse mundo interior.

Sem título. Mulher adormecida em uma paisagem, 1931. Coleção Peggy Guggenheim, Veneza © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.

Rosto do grande masturbador, 1929. Museu do Centro Nacional de Arte Reina Sofía, Madri. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Viena 2022 Bildrecht, Wien 2022.
“Nessa época, eu tinha apenas começado a ler a Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Este livro apresentou-se a mim como uma das descobertas capitais da minha vida, e fui tomado por um verdadeiro vício de autointerpretação, não só dos meus sonhos, mas de tudo o que me aconteceu, por mais acidental que possa parecer à primeira vista”, disse Dalí.
Depois de várias tentativas frustradas de visitá-lo em Viena, o primeiro é único encontro entre o artista e seu ídolo finalmente aconteceu enquanto Freud estava exilado em Londres.

Mel é mais doce que sangue, 1927. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.
SOB O FEITIÇO DO SURREALISMO (1927-31)
Já em 1927, Dalí percebeu que a versatilidade do Surrealismo oferecia um caminho potencial para suas próprias criações artísticas e literárias. Em Mel é mais doce que sangue (1927), pintura cujo paradeiro é desconhecido e só se conhece por fotografias antigas, já são aparentes muitos dos elementos que mais tarde se tornariam típicos da linguagem formal que lhe trouxe fama internacional. Em 1927-1928, suas pinturas mostram uma convergência de influências de Giorgio de Chirico, Yves Tanguy, Max Ernst, René Magritte e Jean Arp.
No entanto, esse cruzamento de potencialidades formais acabou chegando ao fim, e sua linguagem visual se consolidou em uma direção singular, como pode ser visto em sua emblemática obra Face do grande Masturbador (1929).
Nos anos de 1927 a 1929, produziu obras importantes revelando sua inclinação para o subconsciente e mostrando as influências mencionadas anteriormente, incluindo Esforços fúteis (1927-28), A vaca espectral (1928) e o Burro fedorento (1928). Seu imaginário freudiano alcançou independência formal e poética ao revelar os Primeiros dias de Primavera (1929), possivelmente contendo um retrato simbólico de Freud, Acomodações do desejo (1929), O homem invisível (1929), a Memória da mulher-criança (1929) e o Jogo lúgubre (1929).

O nascimento da angústia líquida 1932, Hamburger Kunsthalle. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.

Gradiva encontra as ruínas antropomórficas, c. 1931/32. Museu Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.
Pouco a pouco, Dalí lançou as bases do que mais tarde se tornaria seu “método crítico-paranoico”, exemplo fundamental de sua associação com a psicanálise freudiana.
De 1927 a 1931, Dalí refinou não apenas as características formais, mas também os temas centrais de suas futuras pinturas. O tema do desejo sexual e suas várias manifestações — obsessão, perversão, masturbação, ambiguidades morais e frustrações agonizantes — têm um significado particular nisso. Gala, sua esposa, tornou-se o epicentro de seu universo pessoal. O mundo dos sonhos se revelou a arena perfeita para o surgimento de associações, revelando as paisagens escondidas no reino inacessível da consciência, algumas delas aparentemente contraditórias: Eros e Tânatos, alegria e dor, atração e repulsa, por exemplo. Os conflitos de sua família, especialmente aqueles com a figura de seu pai, desdobraram-se em uma verdadeira mitologia. O desenvolvimento “paranoico” das duplas imagens, com suas figurações ambíguas, também teve um papel significativo.
DALÍ – FREUD: AN OBSESSION
• BELVEDERE • AUSTRIA
• 28/1 A 20/5/2022

Homem Peixe, 1930. Museu Meadows, Dallas, comprado com fundos da Meadows Foundation, Holly Bock, Doug Deason, Sra. eugen McDermott, linda P. e William A. Custard, e Gwen e Richard Irwin. © Salvador Dalí, Fundação Gala-Salvador Dalí / direitos de imagem, Wien 2022.