Voz singular em sua geração, Rosana Paulino surgiu no cenário artístico paulista em meados dos anos 1990, propondo, de modo bastante ousado, um debate aberto sobre questões de raça e de gênero. As imagens incômodas de mulheres com os olhos e bocas suturados por uma costura grosseira da série Bastidores (1997) ou a profusão de figuras dos familiares da artista encarando insistentemente o observador em Parede da memória (1994/2015) expunham a violência exercida sobre os corpos afrodescendentes, o silenciamento e a invisibilidade a que foram submetidos, a persistência, enfim, do legado funesto da escravidão no Brasil.
Esses primeiros trabalhos já revelavam o modo experimental com que Paulino combina procedimentos. O uso da costura, aprendida na infância com a mãe, se mesclava à transferência de fotografias sobre tecido por meio de métodos criados pela própria artista. A associação entre um saber popular, transmitido no ambiente doméstico de mãe para filha, e a familiaridade com a alta cultura, expressa seja no domínio de diferentes técnicas artísticas, seja no diálogo com a história da arte, é um fator estruturante de sua poética. De tal forma que um procedimento semelhante pode ser encontrado em trabalhos mais recentes como Atlântico Vermelho (2017) e Musa paradisíaca (2018), grandes tecidos compostos de partes costuradas, sendo que cada parte contem uma imagem transferida de fotografias ou gravuras existentes. Novamente, a costura evoca a situação de intimidade e se coloca em contraste com a possibilidade de reprodução mecânica da imagem fotográfica. Nesses trabalhos, entretanto, Paulino propõe uma espécie de metáfora histórica: as imagens do período colonial são reunidas de maneira forçada por uma costura frágil; como se puxar um dos fios pudesse ser o suficiente para desfazer toda a estrutura.

Soldado sentada, 2006.
Rosana Paulino desenha compulsivamente e muitas de suas séries de desenhos, particularmente Tecelãs (2003) ou a série Models (1996), investigam de maneira particular o corpo feminino e seu lugar social. Assim como as linhas de costura calam e cegam as mulheres negras nos Bastidores, nesses desenhos, as linhas representam fios que saem do sexo e dos olhos das mulheres, aprisionando seus corpos. O corpo preso, impedido de se expressar e não acomodado a padrões celebrados socialmente, ganha também sentido simbólico na obra de Paulino e pode ser evocado de forma ainda mais radical no uso de cabelos de mulheres negras encapsulados em vidros, como na obra Sem título, de 2006
Um aspecto a destacar na trajetória de Rosana Paulino é o interesse da artista pela biologia e pelas ciências, que se manifesta em um conjunto expressivo de desenhos dedicados a explorar a ideia de uma vida/organismo em transformação. Mutação e metamorfose são conceitos recorrentes em seu trabalho. Se o desenho de Paulino tem sempre uma forte carga íntima, esse mesmo teor subjetivo se manifesta em inúmeros desenhos de animais em que a artista investiga as estruturas e articulações de corpos de morcegos, peixes e insetos. A linha se torna paulatinamente mais sintética, variando de espessura, oferecendo uma solução de poucos traços. Em outras séries, o corpo do inseto se associa ao da mulher. Essa mulher-bicho tem a proteção da carapaça ou asas que possibilitam voar. Do desenho, elas passam ao espaço na instalação Tecelãs (2003), em que centenas de mulheres-bichos-da-seda feitas de barro e fios de algodão, saem organicamente de seus casulos. Elas se proliferam livremente, expandindo sua ocupação pelas paredes. O lugar de exclusão do sujeito-inseto pode ser visto como metáfora do feminino, mas, ao contrário do esperado, é transformação positiva, pois indica a abertura para uma existência possível fora das amarras sociais.

Tecelãs, 2003.
Esse sentido transformador pode também servir a interpretar a instalação Assentamento (2013), um dos trabalhos mais recentes da artista. A obra aborda explicitamente a escravidão, uma vez que tem como elemento principal a figura de uma negra escravizada, mas evoca também a sujeição deste corpo que é retirado de sua origem e transformado em objeto da ciência. A esse corpo que perde sua subjetividade, Paulino restitui raízes, coração e útero, recompõe as partes antes fragmentadas, e ressalta a capacidade dessa mulher de assentar uma cultura. Paulino fala do lado humano da mulher escravizada que teve que se “reinventar” para sobreviver em outro lugar que não o seu. Um sentido de ancestralidade se manifesta em diversas obras anteriores de Paulino, como os patuás que compõem Parede da Memória, ou a referência às amas-de-leite, ou ainda nos auto-retratos com máscara africana e comedores de terra. Mas é de fato a partir do uso da imagem da mulher escravizada que foi “cientificamente” fotografada, que o sentido histórico e crítico da escravidão ganha primazia. A foto impressa sobre tecido e reconstituída pela costura alude ao modo como se processa a memória pessoal e social da mulher negra no país. Esse ato de “assentar” é mesmo um ato afirmativo e compreende sujeitos que perderam seus rostos, seus nomes, seus locais de nascimento.

Geometria brasileira chega ao paraíso tropical, 2018.
No livro ¿História natural? (2016), a artista chama atenção para as teorias científicas utilizadas para justificar a escravidão e a visão pejorativa dos africanos. Paulino se vale da forma mais clássica de divulgação e propagação do saber ocidental, os livros, para questionar as viagens científicas e o modo como a “ciência natural” fundamentou a dominação sobre povos, corpos e mentes de índios e negros. As filhas de Eva (2014), a série Musa paradisíaca (2017) e a série mais recente Geometria Brasileira (2018), questionam o olhar estrangeiro e científico dos viajantes que percorreram o Brasil durante o século XIX que excluem e/ou exotizam a sociedade brasileira e a escravidão. A artista aponta para um imaginário forjado de que vivemos numa democracia racial.