FELLINI COMO OBRA: SOBRE UMA INSTALAÇÃO FOTOGRÁFICA
Nicholas Andueza
A exposição O cérebro (e a caminhada) de Guido Anselmi, no MAM-RJ de janeiro a março deste ano, faz parte da comemoração do centenário de Federico Fellini. A exibição traz movimento triplo: o filme 8 ½, de Fellini, as fotografias de bastidores feita por Paul Ronald e a instalação-curadoria de Hernani Heffner. Eis o enredamento: Fellini bebe no seu alterego em Marcello Mastroianni (que faz Guido) para realizar 8 ½ (1963), filme sobre o processo de filmar; Ronald fricciona a relação diretor-ator com o imaginário do “cinema-in-progress” e produz faíscas em forma de fotografias; destas Heffner potencializa o poder incendiário, explorando-as espacialmente em uma instalação, cuja arquitetura se inspira nas sinapses de um inconsciente felliniano. Assim, a sala forma a inversão de um labirinto: os muros são vazados, os caminhos não se fecham e o objetivo não é se encontrar, mas se perder.
No breu e com luzes pontuais, a sala inteira parece suspensa, como em uma interseção. Beco Fellini. Penso no vão das paredes que seguravam os “relevos de canto” do jovem Tatlin. Apoiada na pura suspensão de uma intercessão estava a obra – e nela, um universo inteiro. “O Cérebro…” é como a suspensão de um canto do museu. Por ela se passa andando, atravessando estruturas metálicas, tecidos, fotografias e imagens em movimento, como em um fluxo de (in)consciência. O percurso sugerido, marcado no chão, mostra cada imagem uma vez só, sem repeti-las. Mas o espectador é livre para ignorá-lo e escolher o próprio percurso, já que os caminhos são abertos. A única exigência é que o novo trajeto também passe em cada lugar uma única vez. Esse é o dispositivo.

Vista da exposição. Fotos: Drika de Oliveira.
Quadrilátero simétrico, o antilabirinto tem como pilar central uma espécie rara de dolly (carrinho para acoplar à câmera e movimentá-la), concebida não por engenheiros, mas por um ator, preocupado com a interação móvel entre câmera e corpo. Assim, o núcleo do cérebro de Guido-Fellini é essencialmente vivo, porque é fundado na mobilidade – e a inércia do carrinho exposto passa a indicar não uma fixidez, mas um devir do movimento. Um círculo preso no teto com véus brancos móveis ora tapa ora exibe o carrinho; nas paredes à volta, imagens em movimento projetadas (incluindo o trailer de 8 ½). No jogo de vejo-não-vejo, assisto à querela entre o véu e a imagem. O véu esconde o que está logo ali, ao alcance das mãos; a imagem mostra o que não posso tocar. Jogo erótico, dinâmico: o cinema como desejo, o desejo como cinema – eis o minotauro do “Cérebro”.
Sintetizando esse erotismo estão as fotos de Paul Ronald, verdadeiras imagens veladas. São 70 fotografias escolhidas entre 2.200 negativos que registraram os bastidores de 8 ½. O filme nos apresenta um circo absoluto. Da crise subjetiva à Crise dos Mísseis, ele se autoexpõe em metalinguagem, diz-se nu como o rei. Nas fotos, vemos o momento em que cai cada peça de roupa. Olhares de Fellini, de Guido, de Mastroianni, da equipe. Olhares para a câmera, a cena, o nada; olhares que simultaneamente velam e desvelam. Roupas, posturas, equipamentos da época. As fotografias gritam os artifícios do cinema, como 8 ½ faz de si próprio e como o faz também o Cérebro-passeio, através das transparências nos véus e nas estruturas metálicas, ambos inspirados no filme. E, de tudo isso, nós, os flâneurs, como seres lembrantes e desejantes, não seríamos nós os pingos de memória, as sinapses que animam o sistema ao percorrê-lo? Não seríamos a esperança de um passado possível?
Ou seja: Mastroianni incorpora Fellini na forma de Guido; Fellini transmuta Guido em seu filme-sobre-o-filme; Ronald produz uma constelação fotográfica do “filme-processo”; Heffner, então, remete a constelação a um universo inconsciente de Fellini, nomeado Guido. Talvez não se trate “apenas” de uma exposição de fotos de making of.