Nascido em Bari – no extremo Sul da Itália, em 1935, Pino Pascali se mudou para Roma – onde frequentou a Faculdade de Belas Artes, com 21 anos, tornando-se experiente em cenografia e escultura. Logo começou várias colaborações com a TV italiana, produzindo centenas de desenhos, obras gráficas e quadrinhos animados para curta-metragem publicitários, desenrolando simultaneamente sua poética e sua prática artística.
Performático, camaleônico, carismático; Pino Pascali se comparava a uma cobra pela vontade de mudar a pele a cada estação: como o rei dos répteis, transformava a própria arte repentinamente, fugindo do tédio, experimentado tudo o que tinha ao seu alcance e desafiando as regras sem observar padrões determinados.
Lúcido, experto, culto; Pino Pascali utilizou o próprio intuito para bulir tanto na tradição quanto nos meios tradicionais da arte de outrora: criou obras utilizando itens corriqueiros e extremamente econômicos, porém, nunca entrou no movimento da Pop Art, cujas referencias chegaram à Itália exatamente em Roma, onde viviam os artistas que faziam parte daquele movimento que levou o nome de “Scuola di Piazza del Popolo”, pelo lugar onde o grupo se reunia. Pascali, não. Inspirava-se à prática do ready-made idealizada por Marcel Duchamp criando obras que só aparentemente pareciam objetos-feitos; veloz, infatigável – quase a pressentir que o fim não ia demorar – o artista trocava seus trabalhos até durante suas apresentações nas galerias. Divertido, embora Pascali sequer relatasse de qualquer aspecto lúdico presente na sua arte, sempre utilizou todos os meios do jogo – associando elementos esquisitos, instintos e ironia – para costurar novos mundos estéticos.
PINO PASCALI NA FUNDAÇÃO PRADA
Até o próximo 23 de setembro, a Fundação Prada, em Milão, oferece a possibilidade única para descobrir essa figura proeminente da arte do século passado: um vanguardista puro, um perfeito filho do seu tempo. A exposição investiga a prática de Pascali por uma forma alheia; nenhum percurso cronológico, mas, muito pelo contrário, abrindo as demais entradas para vários núcleos, agregando trabalhos e momentos marcantes na carreira do artista, explorando grandes esculturas e aprofundando a apertada relação que Pino sempre teve com os materiais da modernidade de século 20: plástica, espuma de borrachas, fibras de lã, de vidro ou de aço. Um lugar especial é dado aos trabalhos realizados pelo eternit – material emblemático da indústria italiana, utilizado de forma compulsiva para coberturas e utensílios até 1992, ano no qual foi banido do comércio devido à sua conclamada toxicidade.
De qualquer forma, mesmo não seguindo uma linha temporal ou temática, a Fundação Prada prossegue sua apuração filológica em artistas e em exposições que fizeram a história da arte contemporânea. Não é por acaso que, nessa homenagem a Pino Pascali, o percurso recupere e reconstrua (parcialmente) quatro exposições que marcaram a carreira do artista, nos meados da década de 1960. Começa-se por aquela que estreou na Galeria La Tartaruga, em Roma, em janeiro de 1965: definiu-se aqui a atitude pictórica de Pascali, envolvida com o imaginário que permeou a Capital italiana, composto por ruínas e pelo Coliseu, pelos muros de pedras e pelos restos de imagens vindas de filmes e antigas divas.
Ao lado, abre-se a sala onde está remontada a mostra que Pascali teve na galeria de Gian Enzo Sperone, em Turim, exatamente um ano depois; aqui, vê-se a série das Armas, obras cujos componentes se identificam em objetos recuperados: pedaços de carros, rodas, madeira, cordas, chapas metálicas compondo – entre as outras obras – dois modelos de metralhadoras, dois mísseis, um canhão. Uma série inspirada pelos Combines do americano Robert Rauschenberg, trazido a Turim pelo mesmo galerista, em 1964.
Em dezembro de 1966 e na primavera de 1968, mais duas mostras de Pascali vieram à luz na celebrada galeria L’Attico, de Fabio Sargentini, novamente em Roma: o artista, nessas ocasiões, concentrou-se no reino animal e na floresta, utilizando telas moldadas ou de lã de aço. Além disso, ainda no ano de 1968, Pascali teve uma sala pessoal na Bienal de Veneza, cuja abertura aconteceu no dia 22 de junho, poucas semanas antes da morte do artista, ocorrida por um acidente de moto, mais uma grande paixão de Pino.
A DÉCADA DA MAGIA ITALIANA
Impossível relatar sobre a carreira e o estilo peculiar de Pino Pascali desconsiderando a época na qual principiou o trabalho do artista, fortemente conectado com a experiência cotidiana daqueles anos. Com toda certeza, a década de 1960 foi para a Itália um verdadeiro “segundo Renascimento” após os destroços da Segunda Guerra Mundial, que deixaram a Península completamente aterrada e sem recursos: se os anos de 1950 serviram para o país se recuperar, os de 1960 foram aqueles do milagre econômico, de renovado bem-estar que ocorreu principalmente nas grandes cidades do Norte do país.
Enquanto Milão, Turim e Gênova cresciam desmesuradamente, abrigando milhares e milhares de cidadãos vindos do Sul e dos campos deixando a pacata vida rural para se envolverem nas fábricas, Roma oferecia outras possibilidades das quais uma era bem específica: trabalhar no centro cinematográfico de Cinecittà, naquela época concorrente direto de Hollywood, onde foram produzidos mais de 3.000 filmes, peças, programas de TV e o inesquecível Carosello.
Transmissão-ícone da TV italiana, Carosello consistia em dez minutos cotidianos de propaganda feita por quadrinhos animados, marionetes ou pequenas curtas para publicizar qualquer tipo de produtos – de vassouras até cigarros – transmitidas pelo único canal que tinha outrora a rede televisiva italiana ao longo de vinte anos, de 1957 até 1977. Foi exatamente nesse berço que principiou a criatividade e a capacidade técnica de Pino Pascali em manipular matérias, em criar os costumes e as formas que o artista logo transpôs nas suas obras.
Eis que no andar de cima do espaço Podium da Fundação milanesa se encontram os trabalhos que marcaram essa peculiaridade criativa, a exemplo: Campi arati e canali di irrigazione (Campo arado e canais de irrigação), (1967); trata-se de uma paisagem disposta no chão e feita com trinta lajes de eternit e três bandejas de metal, enchidas de água que simbolizam os canais; L’arco di Ulisse (O arco de Ulisses), (1968), é a revisitação de um arco com flecha de grande tamanho – perfeito pelos braços do herói da Ilíada e da Odisseia de Homero, em lã de aço, aliás, um conjunto divertido de esponjas abrasivas, as mesmas que entrelaçam o pequeno Tapete (1968).
Mais um elemento industrial que pertence à obra de Pascali é a escova em fibra de plástico, utilizada no passado na limpeza doméstica de canos: aparece nos trabalhos da série Bachi da setola (1968), onde o jogo é também conectado à proximidade linguística entre dois termos: Bachi da seta (bichos-da-seda) que se tornam bichos-da-cerda (Bachi da setola). Completam essa seção vários vídeos nos quais restauradores e conservadores de arte contemporânea explicam as especificidades técnicas das obras de Pascali e os desafios para preservá-las.
Na Galeria Sul da Fundação, as salas são ocupadas pelas obras mais icônicas: Vedova blu (Viúva Azul), (1968), 32 ma di mare circa (32 metros quadrados de mar aproximadamente), (1967) e Cavalletto (Cavalete), (1968), cada uma associada a uma fotografia do artista relacionada com elas, tiradas por grandes fotógrafos, tais como Claudio Abate ou Ugo Mulas.
Vedova blu leva repentinamente nossa imaginação à aranha viúva-negra, com a qual esta escultura partilha sua forma estilizada: realizada em ocasião da Sexta Bienal Romana de 1968, hoje em dia, a vivaz Viúva-azul vem sendo considerada a obra mais emblemática de Pascali, filha natural do efervescente clima da época, enquanto Cavalletto mantém um ar mais misterioso, quase a simbolizar uma escultura totêmica, ancestral.
32 metros quadrados de mar talvez seja a obra mais postada nas redes sociais: criada pela mostra Lo spazio dell’immagine que aconteceu em Foligno, em julho de 1967, compõe-se de 32 bacias, cada uma de um metro quadrado, cheias de líquido em diferentes tons de azul: um trabalho cujo ininterrupto fascínio ainda encanta pela simplicidade e pela sua potência simbólica.
Completa a exposição a linda amostra de um núcleo de obras que tiveram um papel fundamental em coletivas realizadas nas demais instituições da época, inclusive na Galeria De Foscherari – em Bolonha, alvo de uma das muitas exposições que principiaram o nascimento do movimento da Arte Povera, teorizado por Germano Celant em 1967.
Aqui, obras como Ricostruzione del dinosauro (Reconstrução de Dinossauro), esqueleto de uma cauda de uma criatura pré-histórica imaginária, e Un metro cubo de terra (Um metro cubico de terra), dialogam – entre vários trabalhos – com a escultura Tubo (1967), de Eliseo Mattiacci, com a extroflexão azul de Agostino Bonalumi (1967), e com um muito celebrado espelho assinado por Michelangelo Pistoletto, em 1964: todos identificam, de forma perfeita, um cartão postal inesquecível de uma Itália que já era, fixada no topo da vanguarda mundial antes do mundo global.
Matteo Bergamini é jornalista, crítico
e escritor especializado em Arte
Contemporânea. Colabora com a
revista italiana ArtsLife e com a
portuguesa Umbigo Magazine.
PINO PASCALI • FONDAZIONE PRADA
• MILÃO • VENEZA • 28/3 A 23/9/2024