CÉZANNE, Paul_Hombre sentado, 1905-1906_488 (1976.68)

DASARTES 123 /

PAUL CÉZANNE

CONCENTRANDO-SE NAS MUITAS TENSÕES E CONTRADIÇÕES NA OBRA DE PAUL CÉZANNE, EXPOSIÇÃO NO TATE MODERN PROCURA COMPREENDER O ARTISTA EM SEU PRÓPRIO CONTEXTO: UM JOVEM PINTOR AMBICIOSO DO SUL DO MEDITERRÂNEO, ANSIOSO POR FAZER SUCESSO NA PARIS METROPOLITANA ATÉ SE TORNAR UMA FIGURA CENTRAL DA ARTE MODERNA

CÉZANNE, O ARTISTA MALDITO

Still Life with Apples, 1893-1894. © The J Paul Getty Museum.

“Paul Cézanne é o pai de todos nós”. A frase atribuída a Pablo Picasso muitas vezes é vista como anedótica e óbvia, contudo, seu significado indica onde tudo começou; evidencia o papel central do pintor dentro da aventura da arte moderna. Mas por que Cézanne? Diferente de outros pintores de fins do século 19 e início do 20, Paul Cézanne (1839-1906) nunca chegou nem perto de escândalos; ele não matou ninguém e tão pouco se matou; foram poucas suas viagens. Não era boêmio, bêbado (absinto nem pensar) ou dado às prostitutas. Filho de pai banqueiro, nunca sentiu fome ou conviveu com a pobreza. De fato, sua vida era bastante metódica. Porém, a sombra do fracasso e a vontade de “tornar viva a pintura” o transformaram em “um artista maldito”. De temperamento instável (às vezes, raivoso), Cézanne tinha uma rotina obsessiva e dedicada ao exercício da pintura.

A mostra EY Exhibition Cézanne discute essa obsessão. Neste outono-inverno, na Tate Modern, 80 pinturas, aquarelas e desenhos contam a vida daquele que passou à história como “o pai da arte moderna” – aquele que quebrou as regras. E por que a mostra se chama EY Exhibition Cézanne? Na verdade, a EY é uma empresa britânica de consultoria em serviços profissionais que mantém um programa de parceria com a Tate desde 2013. A intenção se centra no apoio às exposições de artistas inovadores e criadores de tendências que moldaram as artes visuais e a cultura. Dito isso, a exposição promete apresentar pinturas mais icônicas do mestre Cézanne, entre elas, naturezas-mortas, paisagens, retratos, cenas de banhistas e mais de 20 obras nunca vistas no Reino Unido, tais como The Basket of Apples, c.1893 (The Art Institute of Chicago) e Natureza-morta com pote de leite, melão e açucareiro, 1900-06 (coleção particular). Ah! E temos ainda o retrato Scipio, 1866-8, (Museu de Arte de São Paulo). Nessa mostra, por meio de novas pesquisas e abordagens, as obras selecionadas se tornam testemunhas das cores, composições e técnicas do artista. A exposição promete ser espetacular, atualizando as questões que envolvem o repertório de Cézanne. Acima de tudo, a exposição quer revelar seus percursos estéticos, afetivos e geográficos. Porém, para saber mais sobre a vida e a obra de nosso “artista maldito”, não é preciso aguardar a abertura da mostra porque aqui a gente conta tudo.

The Basket of Apples, c. 1893.
© The Art Institute of Chicago.

Nascido em Aix-en-Provence, filho de um próspero fabricante de chapéus de feltro que se tornou banqueiro em 1847, Cézanne estudou em boas escolas. Foi amigo e confidente do escritor Émile Zola (1840-1902). Em 1856, ingressou na École de Dessin de Aix-en-Provence, com o apoio da mãe e contra a vontade do pai. Porém, três anos mais tarde, por insistência paterna, iniciou o curso de Direito na Faculdade daquela cidade. Em 1861, Cézanne se mudou para Paris, encorajado pelo amigo Zola – juntos eram jovens entusiasmados e ambiciosos. Cézanne dizia: “quero impressionar Paris com uma maçã”. Mas, na verdade, na capital francesa, nunca teve grande êxito.

O jovem Cézanne se inscreveu nos cursos livres da Academia Suíça, onde conheceu Camille Pissarro. Mas o fracasso sempre estava o rondando: ele não passou nos exames de admissão da Escola de Belas-Artes. Regressou para Aix, onde trabalhou com o pai. Um ano depois, retornou para Paris e ingressou novamente na Academia Suíça, decidido a ser pintor. Ele repetia em altos brados: “eu sou um marco”. Mas, nada de sucesso. Teve seus trabalhos recusados no Salão Oficial de 1864 e de 1866. À época, conheceu Claude Monet, Renoir, Alfred Sisley e Édouard Manet. Junto com eles, expôs no chamado Salão dos Recusados, que reunia as obras dos artistas rechaçados pelo Salão Oficial. Nesse período, ele pintou telas escuras e românticas. Algum tempo depois, influenciado por Pissarro, começou a trabalhar ao ar livre e clareou gradativamente sua paleta de cores. No círculo dos artistas, era visto com reservas e, ao mesmo tempo, era alvo de piadas da crítica conservadora. Aliás, a crítica maldizia suas telas. A agitação de Paris, definitivamente, não era para ele. A ruptura com o grupo impressionista foi inevitável e, logo, ele estava livre para seguir sua ideia mais ousada: converter os objetos da natureza a três formas básicas (o cilindro, a esfera e o cone).

The Bather, 1885. © 2022. Digital image, The Museum of Modern Art,
New York/Scala, Florence

Bathers, 1874-5

Em 1869, conheceu Marie-Hortense Fiquet, uma modelo que se tornou sua companheira, mesmo temendo a desaprovação do pai e o corte da pensão. Cézanne a escondeu, assim como também encobriu o nascimento de seu filho Paul, em 1872. Seu pai só descobriu o neto em 1878. Eita! Afinal, achamos algo um pouco mais forte na biografia de Cézanne, não é mesmo? Porém, não se empolgue. Do final de 1872 à primavera de 1874, Cézanne morou na casa do Dr. Paul Gachet, em Auvers-sur-Oise, comuna francesa na região de ÎIe-de-France. Dr. Gachet (sim, o mesmo retratado por van Gogh) foi a primeira pessoa a comprar os trabalhos de Cézanne. Quase uma década de trabalho árduo e discreto se passou até que, entre 1882 e 1885, Cézanne se refugiou em Jas de Bouffan (no sul do país), residência de campo de sua família.

Mas o ponto de clivagem na biografia de Cézanne aconteceu em 1886, quando, na ocasião, ele rompeu com Zola após a publicação do livro A Obra, em que o pintor se reconheceu no personagem frustrado Claude Lantier. Sua mágoa sempre esteve na dificuldade que enfrentou em ver sua arte reconhecida, então, imagine seu “melhor amigo” tomá-lo como protagonista malsucedido de seu romance. Ali acabou a amizade! Nessa mesma época, o pai de Paul Cézanne morreu e lhe deixou considerável herança. O artista se fixou então na cidade Aix-en-Provence e se casou oficialmente com Hortense Fiquet.

Portrait of the Artist with Pink Background, 1875. © (C) RMN-Grand Palais (musée d’Orsay) Foto: Adrien Didierjean

Nosso “artista maldito” é visto como solitário – e, aqui, permita-me a digressão – a EY Exhibition Cézanne quer mostrar que esse aspecto biográfico é mito. Assim, a exposição dá destaque às relações pessoais: a esposa Marie-Hortense Fiquet e o filho Paul, retratados em trabalhos, tais como, Madame Cézanne em uma poltrona vermelha, c.1877, (Museu de Belas Artes, Boston) e Retrato do filho do artista,1881-2 (Musée de l’Orangerie, Paris). Na mostra, também surgem o relacionamento íntimo com Émile Zola e o reconhecimento de Monet e Pissarro como os primeiros a observarem sua singularidade. Some-se, ainda, o fato de que outros artistas colecionaram as obras de Cézanne, entre eles, Paul Gauguin, Pablo Picasso, Henri Matisse e Henry Moore.

Portrait of the Artist’s Son, 1881-2. © Musée de l’Orangerie.

 

A mostra EY Exhibition Cézanne, por meio das obras, leva um pedacinho do sul da França para o Reino Unido. Naquele lugar, Cézanne se dedicou à pintura. São retratos, naturezas-mortas e principalmente paisagens. Seu mundo era a cidade de Aix-en-Provence e suas redondezas (que o pintor estendia até o Estaque, região à beira-mar, perto de Marselha). Aix-en-Provence foi fundada em 123 a.C., por romanos. Hoje, ainda mantém traçado labiríntico medieval, palácios construídos com pedras douradas e igrejas que guardam tesouros, como telas de Delacroix e murais fascinantes. Porém, a cidade tem poucas memórias de Cézanne. No museu dedicado ao pintor, há modestos trabalhos seus. Certamente, não é no museu que se descobre o fascínio que Matisse, Picasso e Braque tributavam à pintura de Cézanne e porque muitos dizem que ele antecipou o cubismo e a arte abstrata.

Bathers, c.1894-1905. © National Gallery

O interesse de Cézanne pelas formas geométricas é observado quando ele trabalhou em diversas obras que foram repetidas exaustivamente, como a montanha de Santa Vitória e os temas das banhistas. Diga-se, aqui, que a obsessão por banhistas não é somente do nosso pintor. As cenas de banho vão de Ingres, passam pelos impressionistas Renoir, Tolouse-Lautrec, pós-impressionistas, tal como, Seurat e se fazem presente no modernismo com Matisse e outros expoentes. Banhar-se é preciso, nem que seja pretexto para os nus femininos. Assim sendo, a mostra dedicada a Cézanne tem uma galeria que abriga um tema de vida para o artista e, nesse espaço, merece destaque Banhistas, 1894-1905 (National Gallery), uma de suas maiores e mais célebres pinturas criadas na fase final de seu percurso.

Com a repetição de temas, em vez de trabalhar com as ilusões e nuances de luz, preferiu pesquisar o plano das telas com pinceladas coloridas. Volume e distância são obtidos por jogo de cores. Formas são simplificadas pela geometria (cubo, cilindro e cones). A obra radicalmente inovadora de Cézanne foi além do impressionismo em busca de uma nova arte. Seu rigor geométrico, mais tarde, serviu de ponte entre o impressionismo e o cubismo.

Mont Sainte-Victoire, 1902-6. © Philadelphia Museum of Art.

Metódico na prática pictórica, seu ateliê está esplendidamente conservado, isso porque a família e, depois, colecionadores norte-americanos mantiveram o estúdio como se o artista ainda andasse por aqueles cômodos. Fascinado pelos efeitos do tempo e da luz, Cézanne projetou seu estúdio para recepcionar o sol. Pela janela do ateliê, a vista de Santa Vitória. Ele era apaixonado por essa montanha. Sim, isso mesmo! Um rochedo branco com sombras azuis chamado de Santa Vitória. O pintor perseguiu aquela montanha altiva com cume de prata através de 44 pinturas a óleo, 43 aquarelas e até o último desenho, poucos meses antes de morrer, retratava a montanha – a EY Exhibition Cézanne reservou uma galeria especial para as montanhas do pintor e se destaca a obra Mont Sainte-Victoire, 1902-06, (Museu de Arte da Filadélfia), umas das últimas com o motivo.

Obsessivamente, o pintor estudou o monte por diversos ângulos, empregando blocos de cor para atingir a profundidade plana, representação da forma e da topografia do lugar. Ele iniciava suas pinturas situando os principais elementos com marcas de carvão e, depois, acrescentava manchas de cor. As formas eram construídas cuidadosamente a partir dos tons das manchas. No exercício da pintura, ele reduzia a paisagem diante de si a uma estrutura essencial, expressa em formas lineares e geométricas (de novo, o cilindro, a esfera e o cone); as curvas eram representadas por múltiplos planos uniformes. Geralmente, os planos gerais eram dignos de mais atenção do pintor do que seus detalhes. Porém, a forma da montanha era lhe especialmente cara.

De fato, a montanha ainda hoje é linda! Sua tonalidade transformada pela luz é uma visão incrível. Para chegar até o rochedo, o caminho do castelo de Tholonet é um espetáculo de tão bonito. De repente, depois de uma curva, tem-se diante de si Santa Vitória. A paisagem ao redor da montanha é tão fantástica que Pablo Picasso (fã número 1 de Cézanne) comprou um castelo na aldeia Vauvenargues, face norte do rochedo, onde viveu muito tempo e atualmente está enterrado naquele cantinho da Provença.

The François Zola Dam (Mountains in Provence) 1877-8. © National Museum of Wales.

Cézanne fez outros caminhos por aquelas paragens, chamados de trilhas cézannianas. Algumas delas levam até a barragem Zola, construída pelo pai do romancista. Ali o pintor encontrou seus pinheiros retorcidos – frequentes nas suas telas –, o Chateau Noir e a pedreira de Bibemus, de onde saíram pedras douradas dos castelos que estão pela cidade de Aix-en-Provence. Toda essa paisagem ainda está conservada e, realmente, é como se Cézanne ainda vagasse por ali.

Château Noir 1900-4. © National Gallery of Art

A fixação pela pintura in loco e pelas paisagens de Aix-en-Provence, de certa forma, pôs fim à vida de Cézanne. Surpreendido por uma tempestade em campo aberto, o pintor trabalhou por cerca de duas horas na chuva. No caminho para casa foi socorrido, porém, morreu dias depois de pneumonia. Foi enterrado no antigo cemitério de sua cidade natal. Pouco tempo depois de morrer, em 1906, suas pinturas participaram do Salão de Outono, em Paris. O pintor, atormentado por não ter sua obra reconhecida em vida, causou profundo impacto nos artistas de vanguarda do período e seus trabalhos o tornaram um dos artistas mais influentes do século 20 – sua maldição ainda inspira muitos.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP). Pós-doutora em Artes
Visuais (Unesp). Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario
Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação
Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp,
2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022).

THE EY EXHIBITION: CEZANNE • TATE MODERN •
REINO UNIDO • 5/10 A 12/3/2022

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