DASARTES 109 /

OSCAR MURILLO

OSCAR MURILLO É CONHECIDO POR SUA PRÁTICA ARTÍSTICA DINÂMICA E MULTIDISCIPLINAR. TODOS OS SEUS TRABALHOS PODEM SER VISTOS COMO UMA INVESTIGAÇÃO SUSTENTADA E EM EVOLUÇÃO DAS NOÇÕES DE COMUNIDADE, INFORMADA POR LAÇOS PESSOAIS TRANSCULTURAIS, BEM COMO PELO CONSTANTE MOVIMENTO TRANSNACIONAL QUE SE TORNOU PARTE INTEGRANTE DE SUA PRÁTICA

Oscar Murillo, artista multifacetado que realiza pinturas, desenhos, esculturas, performances, vídeos, instalações e projetos colaborativos, está em exibição no Mori Art Museum (MAM), situado no topo da Torre Mori, em Tóquio. Intitulada “MAM Project 029: Oscar Murillo”, a exposição ocorre desde abril e vai até setembro deste ano. Para além de apresentar uma série de pinturas do artista, a exibição se concentra primariamente na obra Frequencies, um projeto coletivo global que Murillo realiza em conjunto com a cientista política Clara Dublanc desde 2013. Através do que está exposto no museu de Mori, vislumbramos um complexo baile de contrastes e dinamismos socioculturais que formam a base da arte de Murillo e denotam uma de suas perguntas vitais: qual cor, qual forma, qual sentido teria o brilho da alteridade?

Violent Amnesia, 2014-2018. Foto: Matthew Hollow / © Oscar Murillo.

Nascido na Colômbia, em 1986, e vivendo desde os 10 anos de idade na Inglaterra, é raro o acesso que Murillo tem ao drama das desigualdades nos processos de globalização do mundo. Por meio de sua dupla cidadania, é na própria pele que Murillo vive a crise de alteridade que funda a cultura ocidental, via colonização, como aponta Achille Mbembe. Duas vezes cidadão, Murillo carrega um duplo afeto pela arte: um de atração pelas experiências estéticas festejadas ao longo da história, outro de repulsa pelo fato dessa suposta “História” (com maiúscula) na verdade tratar de uma história específica (com minúscula), que é a do ocidente eurocêntrico – que ofusca tantas outras histórias por se pretender maiúscula. Essa contradição de afetos, força e contraforça, parece ser parte importante do que move o artista. Assim, com obras tão diversas, Murillo cruza como poucos o social e o estético – evidenciando a não separação entre esses termos, como argumenta Jacques Rancière.

Em Frequencies, obra foco da exposição do MAM, Murillo disponibiliza telas em branco por várias escolas ao redor do mundo para que estudantes que tenham entre 10 e 16 anos de idade pintem, escrevam ou desenhem o que quiserem, como quiserem. Essas telas são fixadas em mesas e carteiras usadas pelos alunos, ficando disponíveis por seis meses, para dar tempo à manifestação orgânica dos rabiscos, desenhos, letras e frases. No caso da exposição do MAM, as superfícies ficaram disponíveis para estudantes de quatro escolas de Tóquio desde setembro de 2020. A ideia, em princípio, é simples: criar um dispositivo capaz de registrar e preservar uma das práticas mais tradicionais e mais reprimidas nas escolas – a intervenção gráfica espontânea dos alunos no equipamento escolar. Mas, apesar da inicial simplicidade, os trabalhos resultantes desse dispositivo trazem perturbações interessantes.

Frequencies, Escuela Menorah Bogota Colombia, 2013. © Oscar Murillo.

A primeira delas, talvez mais imediata, reside no efeito de tomar os “rabiscos” dos alunos como objetos de arte. Se antes, nas escolas, os mesmíssimos grafismos eram relegados à proibição e ao esquecimento, eles agora são exibidos e legitimados pelo espaço do museu, através da mediação de Murillo e Dublanc. Trata-se de um efeito amplamente debatido na arte desde pelo menos os ready-mades de Marcel Duchamp (1917), que denotaram a arte como contexto – como gosta de frisar Fernando Cocchiarale. Ao mesmo tempo, essa recontextualização não é uma operação unilateral, pois se, para toda ação há uma reação, a inclusão dos “rabiscos” (ou ready-mades) no museu esgarça esse mesmo espaço, multiplica-o, inventa outros museus possíveis. No “novo” MAM, criado pelos grafismos daqueles alunos de Tóquio, começamos a dedicar nosso olhar àquilo que antes passaria como obviedade, sujeira, mera rebelião inconsequente.

 

 

 

Frequencies. © Oscar Murillo

E um olhar dedicado, lembra-nos Roland Barthes, é o que confere existência ao que vemos. Por meio desse modo desejoso de ver, não paramos de ler possibilidades, conectar os pontos: nascem legiões de perturbações possíveis. Uma destas, que aliás acompanha a primeira (de recontextualização no museu), trata da autoria das obras: seriam os alunos ou Murillo os autores? Eis outra questão também amplamente tensionada na história das artes – Barbara Kruger, Yves Klein, Sherrie Levine, o próprio Duchamp, para citar apenas alguns. Encenada tantas vezes e por tantos, a questão ganha temperos e consequências diferentes de acordo com o artista – e o contexto. Em Murillo, o tensionamento autoral vem em detrimento não necessariamente do conceito de autoria enquanto tal, mas da ideia de uma autoria individual. Há uma tônica no caráter coletivo desses trabalhos, desde a constituição dos grafismos (vários jovens intervêm na mesma tela) até sua acessibilização (por meio de Murillo e Dublanc, no espaço do museu). Frequencies perturba o mito do gênio artístico, fundador daquilo que entendemos hoje como arte, e ergue em seu lugar uma noção de comunidade artística.

Mas mantemos o olhar atento e notamos que essa autoria coletiva, nesse caso, não apaga as singularidades dos envolvidos. Os jovens que ali desenharam sabiam que seriam exibidos, deixaram propositalmente uma marca pessoal em meio a tantas outras – uma “frequência” entre muitas. A individualidade de cada rabisco conta: são sobrevivências, rastros das vidas dos outros, diferentes de mim e de você, diferentes de Murillo. No outro lado dessa moeda, é difícil não ler uma identificação bastante pessoal de Oscar Murillo com o gesto dos alunos que desenham nas carteiras, transgredindo o equipamento escolar. Não seria o próprio Murillo, em sua prática artística, um rabiscador de mesas? Um transgressor das mais diversas escolas de arte?

Día mundial de las aves migratorias, 2017-2018. Foto: Stanley Cheng. Courtesy of K11 MUSEA

As telas de Murillo, por exemplo, são fortemente riscadas, costuradas, às vezes dependuradas como em uma espécie de varal de carnes em um açougue. Elas não carregariam em si essa forma de violência pichada? O próprio Murillo descreve a série Catalyst, composta por intensas pinturas abstratas, como “descarregamento físico de energia”.[1] Podemos pressentir algo de Jean-Michel Basquiat em algumas paletas de cores de Murillo e em certas incorporações da street art, ou pressentir algo do expressionismo abstrato no traçado enérgico, no trabalho pulsional das tonalidades. Mas também pressentimos um vibrante desrespeito de Murillo por estas e outras referências, um misto de amor e ódio pela história da arte que o faz continuar transgredindo – e rabiscando.

Manifestation, 2019. Foto: Jack Hems. © Oscar Murillo. Courtesy of the artist and David Zwirner.

Lembremos que estamos falando de um homem que, em março de 2016, poucas horas antes de chegar a Sydney para participar de uma bienal, destruiu seu passaporte inglês e outros documentos, retendo somente o passaporte colombiano. Desse gesto, radicalmente crítico aos privilégios da cidadania europeia no trânsito internacional, resultou sua imediata deportação, já que as autoridades australianas não deixaram passar um colombiano negro que, além de falar inglês com sotaque latino, não tinha meios de comprovar os motivos da viagem. Não seria essa ação, tão contrária à dócil participação em uma bienal, uma espécie de rabisco na mesa do mercado de arte?

Instalação Bienal de Arte de Cartagena. © Oscar Murillo.

No entanto, é claro que, avisa-nos Giorgio Agamben, o mercado é hipermoldável, tendendo a capturar e monetizar o que antes parecia incompatível consigo. O mesmo Murillo que rasgou sua documentação em 2016 é aquele recebeu o Prêmio Turner em 2019. Mas esse artista está muito longe da pose, da hipocrisia. Murillo entende perfeitamente as contradições que estão em jogo e joga, ele mesmo, com elas. Ao comentar o Prêmio Turner, por exemplo, diz ser sem dúvida uma grande honra, mas que, ao mesmo tempo, conquistá-lo é uma oportunidade para desfazê-lo[2] – força e contraforça. Eis uma dubiedade que também vale para Frequencies: ao se inventar um lugar “legitimado” pelo establishment para rabiscar (a tela oferecida às escolas), não se poderia estar livrando o equipamento escolar do risco dos grafismos espontâneos? Não seria interessante se, em algum momento (hipotético), os alunos participantes decidissem pintar tudo na escola, menos a tela ofertada por Murillo? Algo me diz que o artista aplaudiria.

À direita: Violent Amnesia no Kettle’s Yard. Foto: Matthew Hollow / Kettle’s Yard.

Em uma última perturbação frente a Frequencies, notamos uma inflexão relevante em relação ao procedimento da colagem, tão precioso para as artes modernas e contemporâneas. Se a colagem, em seu jogo de alteridades, tende a gerar seu efeito pela promoção de um choque via recontextualização, então ela também tem a ver com a artificialidade autoral de tomar elementos distintos e juntá-los deliberadamente – o urinol e o museu em Duchamp, as publicidades e as críticas ao patriarcado em Kruger. Na colagem de rabiscos, letras, desenhos e pinturas que formam Frequencies, o gesto não é tão deliberado, porque envolve muitas “autorias” e acontece ao longo do tempo. Por isso, aliás, na apresentação do projeto, fala-se mais em “sedimentação” que propriamente em “colagem”. Tendo sido realizado, desde 2013, em mais de 300 escolas, localizadas em mais de 30 países diferentes (incluindo o Brasil), as constelações visuais de Frequencies se aproximam mais de miniaturas temporais das pinturas rupestres, que também eram feitas umas sobre as outras, por diferentes “autores” e ao longo do tempo. Assim, em Frequencies, as diversidades se manifestam quase por conta própria – e por isso brilham.

Instalação Mori Art Museum Tóquio. © Oscar Murillo. Foto: Simon Klein

E não seria em busca desse brilho da alteridade que caminha, de um jeito ou de outro, todo o trabalho de Oscar Murillo? Múltiplos, vivos e internacionais, os “rabiscos” de Murillo e de Frequencies respiram a possibilidade de outro modo de globalizar.

[1] Em entrevista para o Truner Prize de 2019: https://www.youtube.com/watch?v=o63AZe7mH7o

[2] Em entrevista para o Truner Prize de 2019: https://www.youtube.com/watch?v=o63AZe7mH7o

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