DASARTES 53 /

Orixás – Casa França-Brasil

Ainda em ALTO FALANTE, o crítico de arte Alexandre Sá abre o verbo a respeito da exposição Orixás na Casa França Brasil.

“…para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo mãos, não me peguem, tendo olhos, não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal…”

Oração de são Jorge

 

É óbvio que estamos passando por um momento extremamente delicado em alguns setores. Para além da política, tão explícita em seu caos e afronta, as instituições de arte não conseguiram se salvaguardar de uma onda consideravelmente estranha que desconsidera com presteza a relevância da cultura para a sociedade, desaguando em uma falta atroz de financiamento e em um atraso considerável no pagamento de alguns editais. Talvez fosse possível pensar que a falta de responsabilidade no pagamento de pró-labores ou mesmo na cessão de verbas para a manutenção mínima de condições básicas de sobrevivência é algo que vem de muito longe, já que parece muito lógico que artistas (nas suas mais variadas camadas), de fato, além de importarem pouquíssimo para países como o nosso,  não precisam de dinheiro para a continuação de seus trabalhos. Talvez a prática exaustiva do pires na mão seja eventualmente cômica, seja no envio infinito de e-mails que lembram algum valor determinado e atrasado ou na aceitação sem medidas que, mesmo que o valor tal exista, haverá ainda outro obstáculo a ser transposto: o prazo de pagamento. Anedótica situação do dinheiro que não se pode contar. Arte. No cenário carioca, é possível adicionar a tal receita uma prática de certa “brodagem marítma” que escancara o pedido sem timidez do trabalho de graça.

Existir, o dinheiro existe. Só que, como se sabe, ele é e sempre foi mal aplicado, direcionado, investido. Talvez ele esteja em áreas remotas do saber, em lugares defenestrados, vizinhos de uma lânguida mesa de jantar para investidores/compradores, e assim por diante. O processo pelo qual o Estado do Rio de Janeiro passa hoje alia dois desejos muito claros: a má gestão anterior/atual e um projeto preciso de desmantelamento da educação e da cultura, atingindo em cheio as instituições. Restam então os projetos, os editais, a prática infinita e esquizofrênica de busca incessante de dinheiro em outras fontes. E, assim, a engrenagem continua a funcionar Sísifo: artistas, historiadores, professores e pesquisadores aumentando consideravelmente sua carga de trabalho, sua ausência potencial na vida poética do cotidiano, um conjunto imenso de frustrações a serem postas por baixo do tapete, os psicotrópicos e a prática militante no Facebook.

Jorge Amado, na Bahia de Todos os Santos, já afirmava a dureza e a dor da vida em Salvador, deixando explícita uma cidade que era vagarosamente sucateada e um povo que, apesar de toda a libertação histórica, talvez ainda seria capaz de escutar as estaladas das tais 150 chicotadas que lhe serviam de castigo. Embora talvez possamos nos perguntar em que medida hoje tais chicotadas ainda estalam por uma ausência clara de coragem aliada a um processo de cansaço geracional, além de uma potente decepção diante da real e total impossibilidade de escolha, combinada a um fracasso da política enquanto prática colaborativa e certo corpo cordial que parece ser a sina da nossa cultura já pálida, há ainda alguns bons exemplos que conseguiram sobreviver a esse processo de sucateamento subjetivo. Nesse caso, algumas instituições culturais no Rio de Janeiro são um lindo exemplo de sobrevivência e coragem: Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Paço Imperial e Casa França-Brasil.

Por certo, seus gestores são peças fundamentais nesse árduo jogo de resistência, qualidade e fé. E sem a adesão maciça do público, e logicamente, dos artistas, nada disso seria possível. A despeito de todas as remoções, esquecimentos e gritos duramente silenciados ao longo de todo o processo de revitalização da cidade do Rio de Janeiro, o centro da cidade tem conseguido se redescobrir; e os próprios moradores, talvez por um despertar ainda sem nome, descobriram uma enorme e infinita possibilidade de experimentar, produzir e estudar arte para além do túnel e de alguma área de conforto. Se o mesmo Jorge Amado dizia que há um tipo de óleo misterioso que recobre a cidade de Salvador, talvez por aqui também haja um bálsamo invisível de coragem, sobrevivência e reinvenção responsável por proporcionar alguma (vã)n-guarda para que essa cidade consiga eventualmente esquecer o seu histórico tão senzala que se deseja (ainda) casa grande.

A exposição “Orixás”, na Casa França-Brasil, é um ótimo exemplo disso. Não especificamente de grandes reinvenções estéticas estabelecedoras de conceitos inusitados e impalpáveis. Mas de arte como entretimento. Arte dessas sem muitas pretensões que, por meio de uma pesquisa densíssima e altamente especializada, consegue provar com elegância e maestria que a pluralidade de opiniões, abordagens, desejos, histórias e religiões são vitais ao bom funcionamento do humano e da arte. Ali não existem grandes novos nomes desconhecidos (que logo serão engolidos por seu devir-mártir artista por um dia), trabalhos imbricados em suas bulas infinitas, processos de escritas com milhões de citações e uma empáfia já cansada que, vez por outra, só justificaria o velho lugar do mestre. Nesse caso, do saber do curador, historiador e artista. Em épocas tão estupidamente beligerantes como a que vivemos hoje, na qual toda e qualquer militância se torna cega e pouco reflexiva, prática lógica para dissipar a certeza de que o inimigo está (sempre) dentro de nós mesmos, a exposição surge como uma ótima resposta. Viva e nada presunçosa. Arte para além da chatice e da soberba.

Reunindo as mais diversas camadas de abordagem e produção em arte e artistas das mais variadas vertentes, a exposição revisa historicamente e atualiza com potência inquestionável uma outra exposição, de 1990, “Retratos da Bahia”, quando a Casa França-Brasil foi inaugurada como centro cultural. Agora o destaque é obviamente a curadoria de Marcelo Campos, um dos poucos curadores nada histéricos/pops que consegue respeitar o silêncio e o espaço de reverberação de cada trabalho, o projeto expográfico de Hélio Eichbauer, criando um ambiente fluido e engenhoso, capaz de descortinar diversas camadas e preciosidades da exposição, além do já sabido trabalho impecável de Tania Queiroz no setor educativo, bem como a programação de eventos paralelos à mostra. Imperdível.

 

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