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O baile urbano e sincrônico de Bettina Pousttchi em Berlim

“Todo objeto, sem exceção, quer seja criado pela natureza ou pela mão do homem, é um ente com vida própria que inevitavelmente emite algum sentido.” Do espiritual na arte, Vassily Kandinsky Na Alemanha, especialmente em sua capital, o nome de Bettina Pousttchi é uma referência imediata à zona interseção entre fotografia, escultura e arquitetura. Isso […]

“Todo objeto, sem exceção, quer seja criado
pela natureza ou pela mão do homem, é um ente
com vida própria que inevitavelmente emite algum sentido.
Do espiritual na arte, Vassily Kandinsky

Na Alemanha, especialmente em sua capital, o nome de Bettina Pousttchi é uma referência imediata à zona interseção entre fotografia, escultura e arquitetura. Isso porque, há exatos dez anos, por meio da colossal foto instalação Echo (“Eco”), a artista teuto-iraniana (1971 – Mainz) revestiu o edifício da Temporäre Kunsthalle (“Museu Temporário de Arte”) com uma reprodução do Palácio da República, monumental prédio do Parlamento da República Democrática Alemã (RDA) demolido entre 2006 e 2008. Com esse gesto simbólico de resistência à demolição da memória histórica da antiga Alemanha Oriental, a artista já indicava o seu modus operandi: por meio da ilusão ótica, colocaria em xeque os limites do espaço público urbano e, nesse processo, remodelaria o conceito de identidades nacionais e ressignificaria os elementos constituintes da paisagem citadina.

Passada uma década desde então, Pousttchi volta a atacar novamente na capital alemã! Agora, o Museu de Arte Moderna Berlinis che Galerie recebe sua individual In Recent Years, aberta ao público até o dia 17 de agosto de 2020.
Mesmo antes poder entrar no museu, o visitante já se encontra enredado em uma ilusão ótica com a qual a artista interveio o exterior do edifício. Criada a partir de fotografias trabalhadas digitalmente, uma película instalada sobre toda a fachada de vidro do museu confunde o observador, que tem impressão de que se trata de um típico padrão geométrico oriental – o que soaria bastante coerente se associarmos esse ato de criação artística às raízes iranianas da artista. No entanto, Pousttchi brinca com a primeira impressão do visitante e traz, na verdade, uma tomada meticulosa e propositalmente trabalhada de um detalhe das típicas fachadas arquitetônicas medievais em madeira no estilo Fachwerkhaus, presentes inclusive nas paisagens urbanas do país. Por meio dessa provocação transnacional, a artista nos conduz a um caminho que nos leva a romper com a barreira de nossos “achismos” nacionais identitários e, ao mesmo tempo, a não acreditar cegamente no que vemos.

Fazendo uso da urbanidade, sua matéria-prima, Pousttchi provoca certo estranhamento no visitante por deslocar e desconstruir sucessivamente a percepção que tem do habitat urbano. Agora, no interior do museu, ela faz uso de cinco enormes barreiras de estrada contra colisão – aqui, sugestivamente denominadas A1, A2, A3, A4 e A5. Instaladas na vertical e encobertas de vermelho, a artista induz o observador à dúvida se realmente retirou das rodovias alemãs (Autobahn – daí vem a abreviatura A) o material de sua criação – o que teria causado um desmembrado de partes das rodovias A1, A2, A3, A4 e A5 que, efetivamente, tecem uma malha de ligações entre o Norte e o Sul e entre o Leste e o Oeste do país.

No entanto, o questionamento sobre a origem de sua materialidade fica em segundo plano, quando se vê que tais estruturas colossais de aço são, na verdade, entes com vida própria, figuras antropomórficas que preenchem o espaço expositivo com a sutil e elegante gestualidade típica de bailarinos. Capturados em um instante de baile, esses corpos, que outrora serviam como barreiras estáticas, agora recebem uma vida interna e deslizam pelo espaço gerando uma atmosfera orgânica.

Essa mesma pulsão antropomórfica é trabalhada em outras dez instalações batizadas com nomes próprios como “Jakob”, “Olga”, “Paul”, “Marie”. Aqui, a estaticidade de suportes metálicos para atar bicicletas ou de barreiras recebem uma remodelagem e, consequentemente, uma ressignificação pelas mãos de Pousttchi: passam a ser outros entes com vida própria que se movimentam, aproximam-se, roçam-se, entrelaçam-se e se viciam às vistas dos visitantes.

E, fechando brilhantemente o tema de ressignificação de barreiras transnacionais, Pousttchi reproduz fotos em preto e branco de 24 relógios analógicos de espaços públicos de 24 cidades ao redor no mundo. Para a série World Time Clock, ela viajou entre 2008 e 2016 fotografando o mesmo horário marcado nesses relógios, tanto por numerais romanos quanto arábicos ou cardinais. Trabalhadas digitalmente para que pudessem ter um visual semelhante, essas fotos mostram a mesma hora conforme o sistema UTC (Tempo Universal Coordenado) em distintos pontos da Terra (como Rio, Berlim, Honolulu, Almati): 13:55 ou 01:55 – não se sabe ao certo. Assim, entende-se que a artista quis reproduzir a sincronicidade que o mundo globalizado tem tecida. O que, por um lado, evidencia o método colonialista europeu de estabelecer, desde o final do século 19, uma normativa para a manipulação do tempo em todo o mundo – vide a aplicação inicialmente do GMT (Hora Média em Greenwich) e, a partir de 1975, do UTC. Mas, por outro, registra os fenômenos de conexão e simultaneidade que regem o acelerado ritmo dos centros urbanos em todo o planeta. Dessa forma, e uma vez mais, Pousttchi desmembra as barreiras transnacionais.

Fotos: Alexander Kilian.

Renata Martins é mestre em
Literatura Alemã pela USP e
especialista em curadoria de
arte pela Universidade das
Artes de Berlim

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