Marta Minujín em seu ateliê na rue Delambre, Paris, com Colchones, seus primeiros colchões multicoloridos, 1963. © Marta Minujín Archieve

DASARTES 135 /

MARTA MINUJÍN

PARA A ARTISTA MARTA MINUJÍN, O QUE INTERESSA SÃO AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA. POR ESSA RAZÃO, SUAS OBRAS DE ARTE SÃO ABERTAS (E, MUITAS VEZES, LÚDICAS), NAS QUAIS O VISITANTE É PROTAGONISTA

Escultura de los deseos, 2023 (Pinacoteca de São Paulo). Foto: Andreas Sander. © Marta Minujín Archieve.

Pioneira nos campos que definem a instalação e a performance, Marta Minujín (Buenos Aires, 1943), é uma obra-viva. No auge dos seus 80 anos, com seus cabelos loiros, óculos escuros e roupas coloridas, é uma celebridade das artes visuais, com vigorosa prática de ateliê e presença nas redes sociais, onde seus projetos, ideias e aventuras cotidianas são compartilhados aos seus seguidores apaixonados.

E toda essa energia pode ser sentida (ou, melhor ainda, vivida), agora, nas salas da exposição Marta Minujín: ao vivo, recém-inaugurada na Pinacoteca, com curadoria de Ana Maria Maia. A mostra panorâmica, com 100 obras que vão de 1963 até criações pensadas no período da pandemia, dá um gostinho do percurso da artista que transita entre a pintura, a escultura, a performance e a ação urbana.

De imediato, a mostra traz obras e recriações que esgarçam os limites do objeto artístico e se colocam à interação do público – o que dizer da grande instalação inflável e colorida, chamada Escultura de los desejos, exposta no estacionamento da Pina Luz, que recebe o público? A obra já é um convite ao lúdico. Sim, Minujín brinca com a extravagância, com o acolhimento do corpo, com a comunicação midiática e, sobretudo, com os sentidos do visitante – a criação se dá ali (entre artista-obra-público).

Colchón (Eróticos en technicolor), 1964. © Marta Minujín Archieve.

A visualidade, as cores, as propostas e os efeitos dos trabalhos expostos … enfim, tudo isso, pode ser conferido na visita à mostra, mas aqui cabe a abordagem de algo não tão aparente: a ação política. Afinal, quem é Marta Minujín? Como seus trabalhos se inscrevem na cena contemporânea e, sobretudo, por que essa exposição hoje? O que a mostra nos diz sobre a circulação e a internacionalização da arte latino-americana? A partir dessas perguntas, logo, vamos à missão.

Marta Inés Minujín estudou na Escola Superior de Belas Artes Manuel Belgrano e na Escola Nacional de Belas Artes Prilidiano Pueyrredón, em Buenos Aires. Expôs pela primeira vez aos 16 anos e, em 1961, fez sua primeira individual. À época, conseguiu uma bolsa de estudos em Paris, onde entrou em contato com o novo realismo e as ideias do crítico Pierre Restany. Nas propostas do novo realismo, a criação se situa no espaço social e econômico e pode influenciar as relações políticas; o processo criativo está envolto por diversas forças em conflito (economia, política e cultura). Assim, os novos realistas adotaram uma iconografia suportada pelos meios da comunicação de massa, pela publicidade e pelos resíduos do mundo industrial.

Nessa ocasião, Minujín incorporou materiais não usuais às suas telas – são embalagens, pedaços de papelão, tinta industrial, óculos de sol, botas e demais objetos que considerava peculiares. Aos poucos, manipulou esses trabalhos, transformando-os em construções arquitetônicas – as chamadas Cajas, até suas primeiras estruturas com almofadas e colchões – esse último se tornou motivo recorrente no seu repertório desde daí. O primeiro colchão que usou foi o da própria cama e, depois, semelhante ao que fazia com os papelões, arrastava os colchões que encontrava nas ruas para o seu ateliê. As experiências com o papelão e os colchões promoveram sua rápida assimilação nos círculos da vanguarda francesa.

Nesse ambiente, Minujín produziu seu primeiro happening, La Destrucción, 1963. A performance era a destruição de todas as suas peças criadas até aquele ano por seus amigos artistas (entre os quais Christo – sim, ele mesmo!). No terreno baldio, próximo ao seu ateliê, ela espalhou suas obras, soltou 500 pássaros e 100 coelhos e encharcou as obras de combustível para incendiá-las. O evento foi conceitual, coletivo e participativo. Essa ação se tornou a virada na sua obra: do informalismo à experimentação.

Anonymous (detail), 2022. Foto: Timothy Schenck. © Simone Leigh. Geometria blanda, 2014. © Marta Minujín Archieve.

Ao lado dos happenings, seus colchões multicoloridos persistiram e variaram entre a pintura, a escultura e a instalação. Graças a eles foi a Nova York, onde entrou em contato com a vanguarda local, realizando trabalhos ligados à teoria de Marshall McLuhan sobre como a tecnologia condiciona o comportamento das pessoas. Ela deu andamento à produção de happenings e ambientes que colocam o visitante em situações inesperadas – ela quer retirar o espectador da sua posição confortavelmente passiva. Em 1970, ela participou de Information, exposição antológica de arte conceitual, organizada pelo MoMA.

Em Nova York, conheceu Andy Warhol, com quem, posteriormente, realizou El pago de la deuda externa argentina com maíz (1985), uma performance que envolve arte e política e está na mostra na Pinacoteca. Nesse registro, dois ídolos da pop arte se unem na ironia: o milho, considerado o ouro da América, cancela a dívida econômica da Argentina. A ideia despertou reflexão, rememorou a história social, a política e a economia da Argentina, mas também a latino-americana.

O pagamento da dívida externa argentina com milho, “o ouro latinoamericano”, 1985/2011. © Marta Minujín Archieve

El Obelisco de pan dulce, 1979. © Marta Minujín Archieve

Book Partenon, 1983. © Marta Minujín Archieve

Não pensem que a mostra na Pinacoteca foi a primeira vez de Minujín no Brasil. Em 1977, a convite de Walter Zanini, então, diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, ela participou da mostra Poéticas visuais, com a performance Repolhos, da fase chamada Arte agrícola em ação – as proposições dessa série lidavam com materiais e emblemas típicos da cultura latino-americana.

Porém, mesmo com todos esses intercâmbios internacionais, não se esqueçam: ela é argentina. Muitas das suas peças desmistificam os ícones portenhos. Por exemplo, El Obelisco de pan dulce (1979), instalação feita para a Feira das Nações que imita o Obelisco de Buenos Aires com pão, que depois foi distribuído ao público. Outra proposta, Carlos Gardel de fogo, feita em Medellín, em 1981, incendiou uma figura da lenda do tango.

Uma das obras mais renomadas de Minujín é o Book Partenon (1983), instalado no centro de Buenos Aires, para as efemérides ligadas ao retorno da democracia na Argentina. A obra pública reconstrói o templo da Acrópole de Atenas a partir de livros. A esta estrutura foram anexados mais de 20 mil livros, cobrindo as colunas, frisos e frontões do templo. Minujín escolheu títulos proibidos durante a ditadura militar portenha (1976-1983). A importância histórica dessa instalação lhe rendeu uma nova montagem em 2017, durante a Documenta de Kassel 14, na Alemanha, dessa vez com livros que foram proibidos ao longo da história.

Marta Minujín na Pinacoteca de São Paulo. Foto: Beto Assem.

Pronto! Já conhecemos a artista. Resta-nos distinguir seu lugar na cena contemporânea. Para isso, é preciso entender os anos de 1960, como período de eclosão das ditaduras latino-americanas, censura, cerceamento de liberdades individuais e a arte sendo o elemento desagregador desse rígido contexto. Alguns historiadores afirmam “que as ditaduras tiveram que enfrentar a arte” e não o contrário.

Mas, também, compreender a abertura democrática e a inserção de uma nova ordem mundial a partir dos anos de 1990. Justamente, nessa década, historiadores, curadores e instituições iniciaram um processo de reexame da história e da produção da arte ocidental. A partir de um discurso plural, a arte latino-americana tem sido pensada não mais a partir da Europa ou dos EUA, mas por sua alteridade revolucionária – e, essa tem sido a principal diferença dos estudos e das práticas mais recentes. Críticos e curadores buscam fatores que diferenciam a arte latino-americana, tais como, a discussão sobre a política, o meio ambiente e o feminismo.

Consequentemente, nos últimos 30 anos, tem crescido o número de obras e de exposições de artistas latino-americanos em instituições europeias e norte-americanas, assim como essas proposições têm se destacado nas grandes mostras, tais como, a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza, a Bienal de São Paulo, além da repercussão nas diversas feiras internacionais – esse movimento é, sem dúvida, mais um fenômeno de “descoberta” (e, cá entre nós, a Pinacoteca sabe disso!).

Exposição Menesunda Reloaded, no The New Museum, NY, 2019. © Marta Minujín Archieve.

Galeria Mole, Pinacoteca de São Paulo, 2023. Foto: Levi Fanan. © Marta Minujín Archieve.

Dessa maneira, proposições artísticas que empregam o uso do corpo, da memória, dos eventos e das cores locais são evidenciadas: artistas, tais como Minujín, destacam-se porque procuram, por meio do trabalho, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade – ela descomplicou a arte conceitual. Desse modo, a atenção sobre sua produção e reconhecê-la como pioneira da instalação e da arte performática em nível internacional tem sido fundamental para a arte contemporânea em sua vertente latino-americana.

Nesse sentido, a trajetória de Marta Minujín é única: ela levou a arte contemporânea para as ruas, as praças, enfim, para uma diversidade de lugares públicos e privados. Suas obras de aninhar, seus colchões coloridos oferecem a oportunidade para que qualquer pessoa (das mais simples às sofisticadas) experimente a arte. Lembre-se! Ela própria é obra-viva! E isso é ato político! Para ela, a arte não serve apenas para ser vista, mas para ser vivida. Suas propostas transcendem; vivem na memória coletiva do povo argentino (e, agora, também na dos brasileiros).

Alecsandra Matias de Oliveira é pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp).
Doutora em Artes Visuais (ECA USP).
Mestrado em Comunicação (ECA USP).
Professora do Celacc (ECA USP). Autora
dos livros Schenberg: crítica e criação
(Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).

MARTA MINUJÍN: AO VIVO •
• PINACOTECA LUZ • SÃO PAULO •
29/7/2023 A 28/1/2024

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