DA PAIXÃO PELOS OBJETOS
Em uma fotografia datada de 1973, Maria Leontina olha para a câmera enquanto insinua tocar objetos dispostos sobre um armário de madeira. Nele, estatuetas religiosas convivem com cartões-postais de impressão industrial, enquanto bolsas artesanais e potes de cerâmica coabitam o mesmo espaço ocupado por caixas decoradas e livros que se apoiam uns nos outros. Ao fundo, artefatos indígenas incrementam a coleção heterogênea que povoa o ateliê que a artista manteve na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro. Cada plano que estrutura o armário – cada estante, cada porta – parece se oferecer à Maria Leontina como suporte para um criterioso e lento trabalho de composição, formando quadros de delicadas ações de suas mãos: colocar ou retirar qualquer objeto desse suporte supõe uma cuidadosa coreografia dos dedos, para que os outros objetos que os avizinha não sofram qualquer dano ou prejuízo potencialmente fatal. Tudo o que ali está parece ter sido destinado a ocupar a posição que ocupa, para que nenhum espaço vago se tornasse uma injustificável lacuna. Tudo o que ali está parece suspenso no tempo, sem futuro nem passado, tal qual uma natureza-morta, gênero que Leontina nunca deixou de praticar ao longo de sua carreira. Tudo o que ali está parece ter passado pelo rigoroso crivo de suas mãos.
Se a atividade artística de Maria Leontina pudesse ser definida em poucas palavras, a busca incessante pela tradução em imagens do que as mãos podem sentir seria a melhor forma de expressar o modo como ela se aproximou dos objetos, até fazer de suas obras os objetos pelos quais se apaixonava. “Desde menina eu me apaixonava pelos objetos como os outros se apaixonam pelas pessoas”, confessou Maria Leontina, em 1979.
Nessa época, Leontina já trabalhava no referido ateliê de Ipanema, que manteve até o fim da vida. Ocupavam esse pequeno apartamento muitos objetos: leões de barro, anjos de madeira e tocadores de violão; oratórios, máscaras e leques; bonecas Ritxoko Kkrajá, cestos de palha e porta-joias; jarros, cadeiras e pilhas de papeis – toda sorte de objetos, de proveniências e materiais diversos, pareciam estabelecer entre si uma inusitada intimidade, como as que florescem entre os que pouco se importam com a autoridade do calendário. A organização entre eles era arbitrária, pouco (ou nada) hierárquica, obedecendo a critérios tais como peso, medida e material, reminiscências, talvez, das lições que aprendera no curso de Museologia que frequentou na mocidade. Ali, naquele ateliê, esses objetos estavam isentos de qualquer interesse etnográfico para alcançar a dimensão mais concreta e “coisal” que eles poderiam integrar: Maria Leontina parecia ver na arte popular, na estatuaria religiosa, nos artefatos indígenas um misterioso manancial de contradições plásticas, que combinavam a precisão da forma com as incorreções da mão não domesticada, lá onde se firmava um pacto entre rigor e calor que a artista jamais abandonaria até o fim de sua carreira. Talvez por isso, o lugar mais adequado para esses objetos seja não o de fonte de inspiração – termo, aliás, incompatível com a prática de uma artista obcecada pelo desenho, pelo projeto e pelo trabalho demorado sobre as telas –, mas o de testemunhos de sua produção e origem de “infinita e imprevisível surpresa”, conforme anotou ao final de um texto poético que escreveu em 23 de maio de 1967. Talvez, nesses objetos, encontre-se o princípio que emana de suas obras, sobretudo as que fez a partir da década de 1960, segundo o qual pintura se faz a partir de coisas e não de ideias.
DA CONSCIÊNCIA ABSTRATA
O ano era 1952. Ao se referir à própria produção nos primeiros anos da carreira, Maria Leontina respondeu: “Não tenho passado artístico. Mas acho que pensei em ser pianista, embora nunca tenha concretizado ser alguma coisa”. E mais adiante, quando perguntaram se era a paisagem do Brasil que lhe tinha despertado o sentido das cores, ela completou: “Mas teria eu visto alguma paisagem neste tempo? Creio que a verdadeira paisagem que eu descobri e que quis exprimir foi esta paisagem contida nas pessoas e que reflete o resto das coisas. Quando comecei a desenhar, só desenhava rostos”. Os anos de 1940, quando Leontina introduziu-se com maior afinco à prática artística e passou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa, seu mestre, pareciam se projetar com grande distância no tempo. Ao que tudo indica, sua passagem pelo ateliê de Johnny Friedlaender, durante sua estada em Paris, entre 1951 e 1952, depois que recebera um prêmio do governo francês na I Bienal de São Paulo por uma natureza-morta, fez estreitar sua relação com a abstração, deslocando sua relação com a figuração para um passado virtualmente distante. Embora quisesse apartar esse passado recente, a trajetória formativa de Leontina não diferia muito da de outros artistas, que se viram impelidos em substituir a sugestão abstrata, contida em faturas cubistas e composições metafísicas, por uma abstração literal.
O ano de 1952 foi crucial para a história da arte brasileira: data desse ano a criação do Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro, em São Paulo, enquanto, no Rio de Janeiro, Ivan Serpa já se organizava para criar o Grupo Frente, fundado apenas dois anos mais tarde, quando o grupo paulistano já havia se diluído. É com esse panorama de expansão da abstração geométrica que Maria Leontina se deparou quando retornou ao Brasil, já nutrida das teorias da composição e da Gestalt que conhecera nos ambientes franco-germânicos que frequentara. Deu-se início, então, a uma arriscada manobra: reorientar seu estilo significava reelaborar, com as ferramentas de que dispunha, a passagem “da forma ao Todo”, ou, em outras palavras, da abstração à Einfühlung (empatia), perfazendo o caminho traçado por Wilhelm Worringer em sua obra clássica, publicada em 1907. As naturezas-mortas, como aquela que expôs na citada Bienal, os retratos e, em menor número, as paisagens, cediam lugar a um estilo mais explicitamente geométrico, mais organizado, mais controlado, mais sintético. A pintora iniciante, que desejava ser expressionista, parecia ceder cada vez mais às conquistas geométricas celebradas pelos seus contemporâneos.
De seu estilo inicial, no qual prevalecia uma inclinação expressionista livre de qualquer sedução pela dimensão trágica da vida, manteve-se o compromisso com os gestos largos do pincel sobre a tela e o desejo de reconstrução do espaço, que se revelou em alguns pretextos figurativos. O mais recorrente, sem dúvidas, é o motivo da cadeira (substituído vez ou outra por uma janela), que aparece tanto nas naturezas-mortas, quanto nos retratos. Foi sobre a cadeira, ou na frente de um grid formado pela janela, que Leontina organizou seus objetos – conjunto no qual se incluem os personagens que retratou – e foi a partir dessa estrutura geométrica, em geral ortogonal, que o espaço foi reconstruído.
DA FORMA E DO TODO
Em um ensaio dedicado à obra de Maria Leontina, Lélia Coelho Frota, uma de suas amigas mais próximas, escreveu: “O seu processo de criar e se relacionar com o mundo constituiu o oposto da premeditação intelectual, e os meios a que sempre foram estrita e exclusivamente de valor visual. Como Klee e Miró, artistas de sua predileção […], Leontina dava título aos seus temas após a conclusão dos trabalhos”. Maria Leontina não foi uma artista de rupturas ou de gestos radicais; ao contrário, sua obra constitui um grande conjunto coerente, que se organiza sobre um fio de rara continuidade entre os artistas modernos, em geral, e os de sua geração, em particular. Talvez por isso seja tão difícil aplicar o termo “fase” ou “período”, em sua trajetória.
Muito embora a artista tenha se notabilizado por suas séries, que se organizam como subconjuntos mais ou menos autônomos dentro de sua produção bastante homogênea, seu interesse na pintura como processo parece se revelar incompatível com a ideia de pintura como “coisa finita”, traço que se manifestou tanto na organização dessas séries propriamente ditas, sempre prontas para crescer, quanto no aspecto plástico que adotou, via de regra, em sua obra.
Com esse estilo difuso e processual, em que a mancha progressivamente se sobrepõe à forma nítida, Maria Leontina trouxe ao mundo “pequenas invenções de objetos simbólicos inexistentes”, que povoaram sua obra, desde os empilhamentos de formas geométricas que se organizam em um “equilíbrio precário de pedras e blocos no espaço”, como em Os jogos e os enigmas, Da paisagem e do tempo, Narrativas e Episódios, até as séries em que os objetos deixam de se tornar pretexto à fragmentação do espaço para se tornarem centro de uma observação dissolutiva: os ângulos se arrefecem, as linhas se diluem, os contornos se tornam ainda mais imprecisos e o plano se apresenta como superfície complexa sobre a qual linhas e pontos coexistem. Surgem, então, séries como os Estandartes, Lençóis, Formas, Páginas, Varais, O Reino e as Vestes, Vestes, Umbrais e Altares, em que os planos se comportam de maneiras diferentes, todos eles negando a rigidez e a frontalidade absoluta, em um espaço que agora, mas do que nunca, prescinde de qualquer referência ao mundo exterior.
Renato Menezes é curador e
historiador da arte e doutorado em
Teoria da Arte pela EHESS (Paris).
Thierry Freitas é curador e
historiador da arte atuando com
Arte Moderna e Contemporânea.
MARIA LEONTINA: DA FORMA AO
TODO • EDIFÍCIO PINA LUZ • SÃO
PAULO • 13/5 A 10/9/2023