La boloñesa (La boulonnaise), 1922-1923. Foto: © Archivo fotográfico Museo Nacional del Prado

DASARTES 144 /

MARÍA BLANCHARD

MUSEO PICASSO DESTACA A RIQUEZA SIMBÓLICA, O ENGAJAMENTO SOCIAL, A COMPLEXIDADE FORMAL E A NATUREZA INOVADORA DO TRABALHO DA PINTORA CUBISTA MARÍA BLANCHARD AO LONGO DE SUA CURTA VIDA ARTÍSTICA. CULTA E FIEL AO SEU MODO PARTICULAR DE VIVER E CRIAR ATÉ O FIM, ELA DESAFIOU OS LIMITES DOS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO DA ÉPOCA.

La dama del abanico, 1913-1916. © Foto: Belén Pereda.

María Blanchard nasceu no dia 8 de março em Santander, em uma família da nova burguesia da cidade. Filha de Enrique Gutiérrez Cueto, de Cabezón de la Sal (Cantábria), e Concepción Blanchard y Santisteban, de Santander, foi batizada no dia 15 de março na paróquia de Santa Lucía com um nome bem grandioso: María Eustáquia Adriana Gutiérrez Blanchard Cueto Santisteban. A família Gutiérrez Blanchard já tinha três filhos quando María nasceu – Aurélia, Fernando e Carmen, que, mais tarde, foram acompanhados por Ana – e eles moravam no número 14 da Calle de la Libertad, agora chamada Santa Lucía, em um bairro “típico da burguesia, bem de vida”.

Nascida com uma doença que definiria sua vida, causando uma deformidade nas costas e prejudicando seu crescimento, ela evitava todas as câmeras obsessivamente. Como resultado, há pouquíssimas fotos dela, embora seu caráter e aparência tenham sido descritos em algumas descrições literárias: “María era corcunda, mal alcançava mais de um metro e vinte do chão. Mas em cima de seu corpo deformado havia uma cabeça extremamente bonita. Ela também tinha as mãos mais maravilhosas que eu já vi. Em termos de personalidade, ela era amigável, comunicativa e jovial, muito inteligente, mas com uma força de vontade impressionante. Sua pele era muito pálida e seu cabelo castanho claro, enquanto seus olhos eram extremamente expressivos… esse defeito era compensado por seu caráter magnífico, infinita amabilidade e excelentes maneiras.”

Naturaleza muerta, 1917-18.
Colección Abelló.
© Foto: Joaquín Cortés.

Sem dúvida, sua aparência é o que a leva à devoção pela criação artística. María culpa sua mãe, que aparentemente caiu ao descer de uma carruagem enquanto estava grávida. O conflito resultante entre as duas pode ser percebido repetidamente em suas várias pinturas de Maternidade. Ela passou seus primeiros anos no seio de uma família liberal, bem de vida e excepcionalmente culta. Seu avô fundou o jornal La Abeja Montañesa, e seu pai, El Atlántico. O pai de María é o único que entende sua dor, e, além de ter incutido nela o amor pela leitura, ele a introduziu à pintura, comprando-lhe gravuras de arte, já que ele mesmo era um pintor amador.

PRIMEIROS ANOS

La española, c. 1910-1913. Foto: CCØ Paris Musées/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris.

Depois da morte do pai de María, em 1903, a família toda se mudou para Madri para que os filhos pudessem realizar o desejo do pai e continuar seus estudos. María entrou no mundo da arte, começando sua formação nos ateliês de artistas distintos. Ela frequentou o estúdio de Emilio Sala, um professor de Teoria das Cores e Estética, onde um pequeno grupo de alunos recebeu treinamento. Seus desenhos precisos, o uso exuberante de cores e a composição inovadora são sinais da influência desse pintor.

Bretona, 1910. Colección Gobierno de Cantabria. Foto: © Gobierno de Cantabria. Foto: José A. Gallego Poveda

Retrato de Regina Barahona, 1911. Colección Familia Miguel Barahona.
© Foto: Xaime Fandiño

Em 1906, ela exibiu sua arte em público pela primeira vez na Exposición Nacional de Bellas Artes, apresentando sua pintura Gypsy Woman (Cigana), que imprimiu claras indicações do estilo de Sala. Embora seja uma peça formativa, mostra qualidade, uma perspectiva livre de nuances em termos de desenho e uma paleta com tons ousados. Ela começou a trabalhar com Fernando Álvarez de Sotomayor, com quem desenvolveu um gosto por cores vibrantes – e já começaram a se tornar uma constante em suas pinturas – e até adotou uma maneira barroca de agrupar figuras em composições poéticas e harmoniosas. Esse mentor valorizou muito seu talento e a encorajou a ir para Paris.

Em um dos estúdios de artistas que frequentava, ela conheceu Diego Rivera, que veio à Espanha com uma bolsa para concluir sua formação. Esta se tornou uma amizade importante na vida da artista. Por mais de vinte anos, eles compartilharam gostos estéticos, estúdios, viagens e até uma casa por longos períodos em Paris.

María partiu para sua aventura parisiense sem amigos e com pouco conhecimento do francês. Nada parecia abalá-la. Ela foi diretamente para a Académie Vitti, em Montparnasse, onde Hermenegildo Anglada Camarasa abriu um pequeno estúdio ao lado do seu ateliê. Lá, María recebeu duas lições fundamentais do pintor. A primeira foi usar a cor de forma plena, próxima à estética expressionista, enquanto a segunda, ainda mais decisiva, foi abraçar a liberdade de criação e pensamento, assim se libertando das “amarras” atávicas do academicismo ultrapassado ensinado na Espanha nessa época e se lançando em novos caminhos artísticos.

CUBISMO

Botella y copa de frutas sobre una tabla, c. 1917-1918. Foto: © Colección Zorrilla Lequerica.

María se juntou à vanguarda por meio de discussões em reuniões que aconteceram no estúdio de Rivera, bem como nas várias reuniões que frequentavam. Ela continuou a trabalhar na Académie Vitti, onde foi orientada por Kees van Dongen, cuja influência no uso da cor foi fundamental. Durante esse período, dois acontecimentos significativos marcaram seu desenvolvimento artístico. O primeiro foi o impacto do mencionado pintor holandês-francês, sob cuja orientação ela começou a produzir peças expressionistas extraordinárias onde a cor marcante se combinava com a forma e as pinceladas trabalhadas com real liberdade de dicção. O segundo foi muito mais importante: María conheceu Juan Gris, por meio de van Dongen. Essa amizade foi decisiva na carreira da artista.

Em 1913, María começou a se aproximar da estética do Cubismo: um estilo que provavelmente encontrou nos ateliês de seus amigos pintores. Ela foi forçada a voltar para Madri e se mudou para a casa da família. A romancista Concha Espina também morava nesse prédio, e a amizade entre as duas se fortaleceu.

Composición cubista, 1916-1919. Foto: © Archivo fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

Em 1916, a artista começou uma nova fase – provavelmente o período mais pleno de sua vida – dedicada inteiramente à prática artística, durante a qual ela alcançou total liberdade, tanto em seu trabalho quanto em sua vida. Mudou-se novamente com seus amigos Angelina Beloff e Diego Rivera na Rue du Départ. Foi selecionada por André Salmon para participar da exposição Arte Moderna na França, realizada em julho, no Salon d’Antin, em Paris, onde Picasso apresentou sua Les Demoiselles d’Avignon ao público pela primeira vez. Ela se aproximou do marchand de arte Léonce Rosenberg, que dirigia a galeria L’Effort Moderne. Ele comprou seu trabalho no mesmo ano. María voltou a frequentar os encontros no La Rotonde, dos quais participavam Juan Gris, Modigliani e Picasso. Este último a repreendia insistentemente, dizendo: “Pobre María, você acha que uma carreira se constrói apenas com talento”. Ela sempre se lembraria desse comentário. María fez parte do grupo de vanguarda em Paris e, portanto, estava presente em todos os eventos, o que, sem dúvida, constituiu-se em um grande incentivo para seu espírito.

Em abril de 1918, María deixou Paris e foi para Beaulieu-lès-Loches. Ela se dedicou completamente ao Cubismo, alcançando maturidade artística com composições austeras de grande beleza, destacando objetos detalhados em tons sóbrios, quase monásticos. Assinou contrato com Léonce Rosenberg, que adquiriu suas obras cubistas. Começou a ter problemas de saúde, parecendo mais doente do que na juventude. Segundo Marc Vaux, ela tinha uma aparência que lembrava as figuras corcundas dos quadros de Velázquez, mas ainda mantinha uma delicadeza retratada por sua amiga Tora Vega Holmström, em 1921.

Joven en la ventana abierta, c. 1924. The Courtauld, London (Samuel Courtauld Trust). Foto: © Bridgeman images.

Niña de negro y rosa, c. 1926. Foto: © Paris Musées/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris.

Child with Boater, c. 1923. Foto: CCØ Paris Musées/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris.

O período entre 1915 e 1920 foi crucial para sua criação, consolidando sua personalidade dentro do movimento cubista. Ela desenvolveu um cubismo analítico, com composições divididas em faixas coloridas, usando a cor como elemento dominante. Mais tarde, experimentou um cubismo hermético, desmontando objetos de uma maneira que dificultava a compreensão, introduzindo um formato oval e usando letras como parte integral da composição. Seu cubismo sintético marcou a culminação de sua ruptura com a arte figurativa tradicional, com objetos emergindo e sendo construídos com base em planos, enquanto a cor foi recuperada e colagens ou papel estampado foram usados para evitar a abstração. Sua contribuição mais significativa talvez seja o uso da cor, com uma paleta que lembra pinturas clássicas espanholas. Esse período foi fundamental para sua produção artística, enriquecendo seu trabalho subsequente com uma intensidade expressiva característica. Para alguns críticos, “suas pinturas estão entre as mais belas produzidas pelo Cubismo”. Além disso, quando perguntado sobre o melhor artista em Paris na época, Diego Rivera escolheu María Blanchard: “Ela personificava as artes visuais. Sua produção cubista nos deu as melhores obras do movimento, além das do nosso mestre, Picasso”.

Por volta de 1920, María Blanchard abandonou as linhas duras do Cubismo e adotou o que pode ser considerada sua quarta fase artística: o retorno ao figurativo. Esse período em sua vida teve o maior impacto. Tanto sua linguagem figurativa quanto a sobrevivência de quase todas as suas obras dessa época facilitaram o acesso do público a esse trabalho. Ela desenvolveu um estilo único, evocativo e firme como veículo de comunicação, usando a figura humana para expressar sua experiência interior. Maria se afastou do Cubismo e se aproximou de um estilo figurativo próximo às pinturas alemãs (Nova Objetividade, Realismo Mágico, etc.), mas sem jamais esquecer Cézanne.

Essa fase pode ser dividida em dois estágios: o primeiro até 1927 e o segundo de 1927 até sua morte, em 1932. Houve uma evolução clara quando ela tornou seus temas mais sensíveis, poetizou suas cores e borrou e contornou seus personagens com uma nova sensibilidade carregada de experiências internas. Ela inventou sua própria maneira característica de aplicar luz e cor, criando uma iluminação colorida e magistral que gerou uma sensação de cintilação, como se a luz viesse das figuras ou dos objetos.

echadora de cartas, 1924–1925. Association Des Amis du Petit Palais, Ginebra. © Studio Monique Bernaz, Ginebra.

Tematicamente, María continuou a focar na figura humana, principalmente jovens, mães e crianças, às quais conferia um caráter transcendental; nenhuma delas foi retratada como feliz ou sorridente. Em vez disso, aparecem em um mundo meditativo e triste. Isso não foi apenas uma atitude composicional: é algo profundo e experiencial, onde ela, sem dúvida, derramou memórias de infância e a reflexão de sua própria existência.

Ela passou de tons puros de vermelho e azul para uma delicada gama de tons pastéis; a dureza dessas primeiras cores contrastava com a suavidade de suas composições posteriores. O mesmo aconteceu com o aspecto do desenho: começava mais estruturado, fechado, escultural em suas primeiras peças e depois gradualmente se tornou mais solto, desaparecendo praticamente.

Embora dominante, a cor nunca se misturava com o tema principal da pintura; ela a expandiu de forma uniforme e magistral por toda a tela. María apreciava desenhar com cor, por isso, ambos os elementos — desenho e cor — caracterizam esse ponto de virada. Isso, combinado com sua maneira pessoal de iluminar a composição, verdadeiramente personaliza e eleva todo o seu trabalho.

Como Gerardo Diego sabiamente disse: “À María sempre devemos, sempre estamos em dívida. Já é hora de começarmos a pagá-la.”

As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião da revista Dasartes, sua equipe e conselho editorial.

María José Salazar é historiadora de
arte, curadora, pesquisadora e
especialista em arte contemporânea.

MARÍA BLANCHARD • A PAINTER IN

SPITE OF CUBISM • MUSEO PICASSO
MÁLAGA • ESPANHA • 29/4 A 28/9/2024

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