Este é um recorte da produção da artista paulista, ativa desde fins dos anos 1980, em amplo campo experimental que se abre à nova geração de escultores. Atuando em contraponto à racionalidade construtiva, a mostra revolve heranças da prática escultórica e toca a materialidade do mundo cotidiano, passível de manejo.
A atividade de Marcia Pastore revela um empenho singular do próprio corpo, que percebe e se apropria das coisas. Tal atividade transparece no modo peculiar de submetê-las às sucessivas transformações até realocá-las no espaço ao redor, pela ação artística. Pode-se notar uma vida transitória de obras em percurso, que são também recicladas a cada mostra.

Frestas em máquina, 2019
Foto: Isabella Matheus
Atenta às propriedades de cada objeto e desprendida de convenções em uso, a artista entra em interação com esses objetos por meios perceptivos primordiais, arraigados na experiência corporal desde a infância: o peso, o balanço, o movimento, o descanso, o perto, o longe.
Imagina trabalhos a partir de componentes já prontos, facilmente encontráveis no comércio de equipamentos de construção, lançando o olhar para uma vasta gama de “modos de fazer”, do artefato à arquitetura, atraída pelo vocabulário da engenharia civil.
Um tal “corpo a corpo” é, em última análise, uma contingência da arte no mundo de hoje. Enfrentamento, oscilações e tensões geradas no contato imediato com o mundo, assim como a possibilidade de manejo sensível de materiais brutos, produtos e mecanismos encontrados à disposição.

Beijo
Marcia evita individualizar os constructos. Impede que se tornem corpos autoportantes e repousem sobre o próprio equilíbrio. Suas obras, persistentes e instáveis, adquirem teor provisório, transitório e sobrevivem em contínua transformação, revistas e adaptadas, aptas à vida transitiva pelos lugares que as recebem.
As obras, quase sempre organizadas pela conexão viva de suas partes, mais parecem organismos sensíveis, que encontram estabilidade ao serem configuradas em dimensão ambiental e retiram coordenadas das particularidades locais e de sua articulação transformável.
A linha do horizonte é um fenômeno intangível, percebido, a distância, pelo olhar do observador lá longe onde o céu parece encontrar a terra. Risca horizontalmente o nível do mar e a base das montanhas, guardada a altura do olhar lançado pelo observador.

Vista de exposição na Galeria Baró Sena, São Paulo, 2000. Fotos: Eduardo Ortega.
Linha d’água é o nome do dispositivo espacial feito por Marcia Pastore para dar corpo à horizontalidade, capturá-la, torná-la presente, tangível. O paradoxo da linha de horizonte no interior da Pinacoteca aparece armado pelo alinhamento da água em sucessivos recipientes, pressionados por sargentos dispostos contra a parede.
Com essa obra, a artista se mostra totalmente equipada para um simples gesto de aproximação intensificado pelo efeito de lente do recipiente transparente.
A FORÇA PRODUTIVA DA PERFORMANCE CORPORAL
Admitindo que a forma da escultura decorre do modo de circunscrever um corpo no espaço e fazê-lo entrar em jogo no espaço-ambiente, Marcia performa atos para moldar corpos. Ainda que sob vaga sensação, a ação praticada incide no que materializa, enquanto dimensão simbólica.
As obras da série Frestas nascem em relação transitiva com o mundo, abertas entre corpo e propriedades do material. Umas surgem por contato imediato, outras tendem à abstração, em que o corpo convida à imaginação de formas derivadas. Em muitos casos, transportam sinais de origem, adquiridos nos esforços praticados.
Sem antecipar ideias, a artista dispensa lápis e papel. É o corpo que desenha pela superfície curva do quadril, pelo volume da perna.
Desde os primeiros trabalhos em que o corpo se torna componente ativo na formação da obra, Marcia mantém no piso de seu ateliê uma receptiva cama de gesso, na qual ensaia marcas e rastros. Material de antiga memória, branco, indiferente, o gesso é, por si mesmo, parte da tradição da escultura moldada. Cedo, a artista concentra atenção nas propriedades plásticas desse material, passível de aceitar o contato humano direto, receber a inscrição do sujeito e transportá-lo ao espaço, por meio do molde.
Explorando o molde – tradicional fundamento do trabalho escultórico –, a artista especula sobre conteúdo e continente, inverte relações entre dentro e fora. Nasce assim uma série de esculturas-molde, que levam contornos corporais para dentro de espaços cúbicos, entrelaçam dimensões orgânicas e geométricas, configuram, em suma, formas de sujeição do corpo ao objeto, do humano ao mundo construído.
Trabalhos de teor orgânico, compatíveis com a articulação flexível de suas partes, acentuam cantos vivos e evitam junções definitivas por encaixe ou complemento. Marcia Pastore dá primazia ao vigor do contato das partes por pressão e ao espectador, convidado a permear o espaço da obra.
A artista simula um jogo de forças contrárias entre dois lados em disputa para vencer a imobilidade de pesadas massas cúbicas de gesso fundido por meio de Linhas de força.

Corpo de prova
Ossos situa outra atual tendência da artista que funda as operações no lugar em que a obra nasce, baseada em prospecções e em condições ali encontradas. É o que ocorre ao atuar em escala arquitetônica, visando estabilizar duas colunas pressionadas entre piso e teto (sic), ao lado das demais existentes na sala do museu.
Para fazê-las, atinge o desvão do edifício – buraco entre o telhado e o forro –, no qual abre frestas que dimensionam as placas comprimidas e pressionadas pelas hastes. O vão descortina a estrutura de forças do edifício e indica a viga na qual é possível apoiar a coluna. O nome atribuído à obra se associa ao esqueleto da construção, termo usado por arquitetos modernos e, por outro lado, à triste memória política do edifício que hospeda a Estação Pinacoteca.
O JOGO DE FORÇAS NO CORPO DA OBRA
Enquanto moldes e frestas decolam do próprio corpo, dispositivos espaciais, elaborados desde anos 1990, exploram a dinâmica entre materiais ativos e passivos e indagam a respeito das forças estruturadoras do corpo da obra. Marcia torna visível uma experiência da realidade que pertence ao domínio artístico: o jogo de forças relacionado às formas.
De início, trabalha com poucos elementos, apropriando-se de forças presentes nos materiais. Contrapõe diretamente dois componentes, levando um a estruturar o outro. Tenciona forças ao limite, a fim de garantir a unidade do conjunto, ainda que esteja prestes a se romper e a desmoronar como um castelo de cartas. Pratica articulações por contato, sem fixação definitiva.
A artista indaga como sustentar materiais no espaço, colocados em equilíbrio provisório, a fim de desafiar o corpo do espectador. Com humor, aborda o frágil equilíbrio do conjunto, explorando formas que se revelam indissociáveis do espaço ao redor.