Série KINOMANIA, década 1980/90
Iniciei a série Kinomania em 1995, com desenhos, pinturas e colagens a partir do filme Cidadão Kane, de Orson Welles, sobre o qual eu havia guardado uma rica iconografia de desenhos e fotografias. E mesmo já tendo apresentado trabalhos com colagens de jornais e diálogos retirados do filme Johnny Guitar, de Nicholas Ray, minha relação construtiva e sistemática com o cinema viria a se consolidar mais tarde. Hoje, pensando bem, seu tecnicolor, seus diálogos barrocos, etc., não tinham relação com as páginas de jornais, objetos do cotidiano tão impessoais. Esses trabalhos representaram uma proto-poética experimental, da qual eu não imaginava como seriam os desdobramentos. Em 1995, pintei Mr. KANE a partir de um fotograma precioso de uma cena de Cidadão Kane, onde a câmera se dirige para um close-up de um refletor e fecha no filamento da lâmpada que começa a se apagar. Apropriei-me desse fotograma em sua forma simbólica e acrescentei o detalhe da corrente de bolso do personagem, com a inicial K ao contrário. Esse trabalho, parte da exposição em diálogo com Raymundo Colares (Galeria Leme /AD), deu início a vários outros que configuravam para mim a relação pintura/cinema. Sempre anotei e colecionei diálogos de filmes, em especial Johnny Guitar, cujo roteiro barroco e cores flamejantes foram sempre temas para a poética visual recorrente nessa série.
UR NOIR, 1984
Apresentei este trabalho na minha primeira exposição individual, no Rio de Janeiro, em 1984. Minha produção dessa época era marcada pelo interesse no jornal como matéria e suporte. Objeto utilitário, diário e descartável. É certo que havia uma considerável dose conceitual na elaboração de poemas-visuais e objetos e muito da minha obra dos anos 1975-78, produzida em Londres, tinha como matriz cadernos, folhas impressas e, sobretudo, os tabloides londrinos. Quase nunca me apropriei do conteúdo noticioso das páginas, mas da estética gráfica das tipologias e ampliações fotográficas que, por vezes insinuavam deformações de imagens, transformando a realidade gráfica em espaços de abstração: a desfiguração do campo da representação. Trabalhei muitas peças utilizando a palavra noir, advinda do termo film noir, assim definido pelos críticos franceses do Cahiers du Cinéma sobre a produção norte-americana do pós-guerra que a Europa não havia visto. O prefixo alemão ur significava a qualidade da cor preta ultrarremota, imemorial e primeva. Foram muitas as situações e qualidades dessa cor que encontrava nas páginas recortadas, rasgadas. Tanto que, aos poucos, fui compondo uma coleção de tonalidades de cinzas, em uma cromática variada de pretos. Assim, Ur Noir surgiu, poeticamente, como uma ideia de algo imemorial e remoto.
AURI NOIR,1984
As diversas operações com os matizes da página impressa e toda a produção que a partir daí, levaram-me a insistir ainda mais em novas criações dentro do mesmo espírito. O trabalho Auri Noir que, com sua malha de latão sobre o espelho, evoca o próprio significado, semelhantemente ao Ur Noir, surgiu dessa “carga poética” de construção absurda. Iniciei a obra quando dobrava folhas de arame de trama muito fechada e que, quando superpostas, produziam luminoso reflexo do metal (latão). A seguir, cortei um pedaço da trama no mesmo tamanho de uma folha de jornal aberta. Dobrei-a e coloquei sobre um espelho, produzindo um volume virtual a partir do reflexo. De súbito, obtive uma matéria volumosa e brilhante que me remetia à forma dourada e cortei um quadrado para mais enfatizar o absurdo da operação. Recortei letras em latão e as apliquei às bordas do quadrado vazado na folha.
Série Relevos, 1988-2019
Nos meus trabalhos, tento criar possibilidades de percepção. Simultaneamente apreendidas por quem as olha, as manchas de cor nas telas aparecem suspensas por meio das dobras/camadas que caem sobre a estrutura planar, reinventando as possibilidades da pintura para além dela mesma. Posso dizer que meu processo de trabalho se deu inicialmente a partir de algum problema formal que coloco a mim mesmo: uma forma, certo volume e uma ideia de cor. Quando comecei os primeiros “Relevos”, em 1992, ainda com os jornais, eu queria fazer maquetes dos projetos que planejava. Eram de pequeno formato, mas fundamentais para sentir a cor e o volume e depois partir para o formato maior e final. Fiz isso durante vários anos. A pequena maquete era muito necessária e sempre me assegurava sobre a futura produção. O artesanal é para mim indispensável. Foram muitos anos testando tecidos, lonas, colando e prensando uns aos outros para obter a estrutura planar e em seguida trabalhar a cor. E aí que se dá uma operação toda especial, porque a cor, quando idealizada, é uma coisa, mas quando é de fato aplicada, ela surpreende e impõe soluções não exatamente previstas antes. Assim, o “fazer” se constitui de etapas, ora puramente muito técnicas, ora completamente conceituais e imaginárias.
Série Jornal Imaginário, 1984-2019
A série Jornal Imaginário, que iniciei em 1984, passou por vários momentos e variações de suportes. Definitivamente, foi a série que afirmou todo o início da minha pesquisa com recortes de jornais por meio da riqueza dos pretos e brancos, cinzas e todos os matizes dessa paleta. Jornal Imaginário explora sempre a qualidade de transparências, superposições e, na maioria das vezes, o formato real da página do jornal para obter um objeto em escala diferente daquele que o inspira. Os primeiros, feitos em grupos pintados sobre voal e tule, convidavam o público para seu manuseio sem restrição. Porém, a experiência do que é chamado “participação do espectador” teve para mim curta duração, já que a manipulação acabava quase totalmente por destruir o objeto.
Luciano Figueiredo em diálogo com Raymundo Colares • Galeria Leme/AD • São Paulo • 18/5 a 22/6/2019