Artes 110, 1944. © Estate of Leonora Carrington / VISDA

DASARTES 126 /

LEONORA CARRINGTON

MAGIA, REBELIÃO E HUMOR IRRADIAM DAS IMAGENS SEDUTORAS E SURREAIS CRIADAS PELA ARTISTA MEXICANA NASCIDA NA INGLATERRA LEONORA CARRINGTON (1917–2011). UMA RIQUEZA DE INSPIRAÇÕES PERMEIA SUA VERSÃO ÚNICA DO SURREALISMO: SÍMBOLOS ESOTÉRICOS DE CARTAS DE TARÔ E ALQUIMIA SE MISTURAM COM PINTURAS ITALIANAS DOS SÉCULOS 13 E 14 E LENDAS IRLANDESAS

SEM TEMPO PARA SER MUSA

Considerada a última das surrealistas, Leonora Carrington (1917-2011) inspirou a Bienal de Veneza, neste ano. Ela escreveu peças de teatro, desenhou cenários, trabalhou com têxteis, escreveu contos, um romance e uma autobiografia na qual relata seu período internada em um sanatório. O tema desta edição da Bienal, Il latte dei sogni (O leite dos sonhos) foi extraído do título do seu livro. Nele, a pintora e escritora descreveu um mundo mágico onde a vida é constantemente renovada pela imaginação; onde é permitido mudar, transformar-se. E, realmente, o signo da mudança está presente na vida e obra desta artista.

De família abastada, católica e irlandesa, Carrington recusou os padrões e, especialmente, o destino dado às mulheres de sua classe social. Ela encontrou abrigo na arte, nas fábulas e em escritores ingleses, como Lewis Carroll, Jonathan Swift e Beatriz Potter. Na infância, mergulhou nos contos de fadas e na literatura de fantasia. Em 1936, ela se matriculou na nova academia de arte fundada pelo pintor Amédée Ozenfant, em Londres.

Nesse período, ela visitou a primeira Exposição Surrealista Internacional, na galeria New Burlington, e sentiu particular afinidade com o onírico presente na obra de Max Ernst, Two children are threatened by a nightingale [Duas crianças são ameaçadas por um rouxinol] (1924). Nessa pintura, Ernst retratou duas ocasiões críticas de sua biografia: a morte de sua irmã, Maria, em 1897, e o sarampo na infância, quando teve diversas alucinações.

Retrato de Max Ernst, 1939. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.

Leonora Carrington e Max Ernst, Lambe Creek, Cornwall, Inglaterra, 1937 por Le Miller © Lee Miller Archives

O encontro com Max Ernst resultou em romance, mas não sem escândalos, uma vez que Ernst já era casado desde 1927 e era cerca de 27 anos mais velho do que a jovem de 19 anos. Eles se conheceram em 1937 e viveram, por certo tempo, em St. Martin d’Ardèche, no sul da França, onde hospedavam, com frequência, os amigos surrealistas. Alguns críticos situam o não lugar de Carrington no movimento surrealista, ou, ainda, a sua condição periférica. E, de fato, o surrealismo, sob nossa perspectiva atual, era sexista e etarista.

Fascinado pelas teorias freudianas, André Breton, fundador do movimento, entendia a psique feminina como algo sem freios, mística e erótica – aqui o conceito de “inveja do pênis” surge com densidade. Então, algumas artistas-mulheres, inclusive Carrington, foram colocadas sob o estigma da femme enfant (mulher criança), servindo apenas como musa aos artistas. Em concordância com as ideias de Breton, a maioria dos críticos desprezou as mulheres surrealistas, porém, alguns estudiosos apontam que Ernst incentivou o percurso estético de Carrington.

La Posada del Caballo del Alba, 1937.
© Estate of Leonora Carrington / VISDA

Duas de suas obras mais conhecidas dessa fase, são: o retrato do seu amado como eremita (1939) e La Posada del Caballo del Alba, 1937 (hoje, no Metropolitan Museum, Nova York). Nessa tela, a artista surge trancada em seu quarto, com uma hiena lactante e um cavalo de balanço. A visão da janela aberta nos mostra a floresta como pano de fundo, e ela montada em uma égua, simbolizando o desejo de liberdade de seu espírito. De todo o modo, Carrington teve seus trabalhos expostos junto aos dos surrealistas, em 1938, em Amsterdã, mas sempre recusou o atributo de musa e, por toda a vida dela, firmou posição em favor da liberdade de expressão da mulher.

Contudo, a II Guerra Mundial pôs fim ao sonho surrealista na Europa – a última das vanguardas históricas é vista como “arte degenerada” pelo nazismo. Em 1940, Max Ernst foi enviado para um campo de concentração e Carrington fugiu para a Espanha. Eles nunca mais reataram o romance. Não se preocupe! Ele conseguiu escapar da prisão; salvo, ele passou a viver com Peggy Guggenheim, em Nova York. Mas a fuga de Carrington para a Espanha foi trágica: uma viagem cheia de horrores da guerra e um estupro coletivo se tornaram os motivos de sua internação forçada em um hospital psiquiátrico. Foi extremo o seu sofrimento emocional.

The Magical World of the Mayans, 1963

O resgate do sanatório foi um drama, envolvendo sua antiga babá e até um submarino. O relato desses eventos traumáticos está no seu livro Down Below, e na obra Green Tea (1942), feita durante o breve período que passou em Nova York. Ela só conseguiu se livrar da perseguição familiar após o casamento de fachada com o diplomata mexicano Renato Leduc. No final de 1942, ela se estabeleceu no México, onde permaneceu pelo resto da vida. Lá, ela se integrou na comunidade de artistas, escritores e fotógrafos refugiados da Guerra, tal como, Remedios Varo, Benjamin Péret, Kati e José Horna e seu novo marido, o fotógrafo Emerico “Chiki” Weisz, com quem teve dois filhos.

A amizade entre Varo e Carrington, por exemplo, estendeu-se à partilha de sonhos, narrativas, feminismo, receitas culinárias e poções mágicas. E, por sinal, seu ateliê era sua cozinha – lugar de desordem criativa, onde trabalhava com têmpera de ovo em painéis de madeira e gesso. Em algumas entrevistas, registrou que: “pintar é uma necessidade, não é uma escolha; é como sentir fome e ir até a cozinha para comer”. Temos, então, duas artistas-bruxas que desvincularam sua linguagem pictórica dos modelos criativos masculinos; elas lidavam diretamente com suas necessidades como mulheres.

Green Tea (The Oval Lady), 1942. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.

No México, sua trajetória foi marcada pela busca de conhecimento e por uma linguagem feminista impulsionada por estudos esotéricos. A crítica feminista às hierarquias de poder está, por exemplo, no autorretrato Artista viajando incógnito (1949). Nessa tela, a artista aparece disfarçada de bruxa. Sua aparência quebra novamente o desígnio de “musa do surrealismo”. Ela refletiu ainda sobre o onírico e o mágico na obra O mundo mágico dos maias (1965), mostrando estudo e, sobretudo, a enorme influência, em suas telas, das culturas pré-hispânicas.

A primeira exposição individual de Carrington foi na Galeria Pierre Matisse de Nova York, em 1948. Depois, seguiram-se diversas mostras individuais e coletivas no mundo inteiro. Ela também foi uma das fundadoras do Movimento pela Libertação das Mulheres, nos anos de 1970. Carrington morreu em 2011, sendo considerada um dos últimos elos vivos do movimento surrealista. A casa dela foi transformada em museu dedicado à sua vida e obra.

“A pintura é o meu veículo de trânsito. Eu nem sempre sei aonde estou indo ou que isso significa”, assim depõe Leonora Carrington. Esse jogo intuitivo é princípio de observação de seu mundo maravilhoso, agora, em exibição na sua primeira mostra individual na Escandinávia, organizada pelo Museu de Arte Moderna ARKEN e pela Fundação MAPFRE, no período entre 17 de setembro de 2022 e 15 de janeiro de 2023. São 100 obras da artista, entre pinturas, desenhos, tapeçarias, esculturas e livros, que nos contam sobre sua trajetória. Além disso, a exposição traz obras da espanhola Remedios Varo e do alemão Max Ernst. Assim, os dinamarqueses têm a chance de ver uma pintura sem explicação e cheia de referências.

The Artist Traveling Incognito, 1949.
© Estate of Leonora Carrington / VISDA.

The Meal of Lord Candlestick, 1938.
© Estate of Leonora Carrington / VISDA.

The Giantess (The Guardian of the Egg), 1947.
© Estate of Leonora Carrington / VISDA.

Magia, contos celtas, seres híbridos (animal e humano), banquetes partilhados com animais, criaturas fantásticas, arcanos do tarô e espaços em transformações compõem seu léxico. Em suas pinturas e escritos, o encanto pelo desconhecido e pelo sagrado. Seus trabalhos demonstram o interesse por alquimia e por cultos mágicos. Em suas pinturas, surgem as bruxas e as mulheres sábias – metáforas de uma psique rebelde. Em suas pesquisas, ela descobriu as culturas matriarcais e suas personagens refletem essa força e autoridade; adquirem poderes curativos e ocultos e acessam novos territórios.

Mas por que o nome de Leonora Carrington está sendo evocado na Bienal de Veneza e, agora, nessa exposição em Copenhagen? Já percebemos que há diversos motivos, não é mesmo? Coloco aqui mais um: a necessidade de repensarmos “o mundo”. Essa artista nos deu a chave para “outros mundos”; para entender e aceitar o “mágico” e, acima de tudo, o constante transformar-se. Carrington subverteu as regras sociais quando não aceitou o domínio de sua família; ela também se negou a ser musa porque estava ocupada em ser artista. Nesse sentido, seu desejo por liberdade confrontou as vanguardas históricas e seus teóricos. O universo das mulheres enunciado, especialmente o de Carrington, trouxe o incomum para a pintura surrealista. Ela conectou liberdade psíquica com consciência feminista – algo que lhe conferiu lugar único na história da arte.

Alecsandra Matias de Oliveira é pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora
em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em Comunicação (ECA-USP). Professora
do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de
Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Membro da Associação
Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Autora dos livros Schenberg: crítica e
criação (Edusp, 2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022). Curadora
independente e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e Revista USP.

LEONORA CARRINGTON • ARKEN MUSEUM •
DINAMARCA • 17/9/2022 A 15/1/2023

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