
Young Tarentine I (Babacar Mané), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
As figuras de Wiley ocupam triunfalmente espaços culturais tradicionalmente reservados à realeza branca, ao clero ou à nobreza, enquanto ele questiona a exclusão de seus temas de tais representações históricas. Ao mesmo tempo, essas obras oferecem um comentário ácido sobre os atributos codificados e mercantilizados da masculinidade negra na sociedade ocidental, que exigem a repressão de qualquer tipo de vulnerabilidade humana.
É essa vulnerabilidade que une os sujeitos – homens e mulheres negros – em sua nova mostra An archaeology of silence (Uma arqueologia do silêncio). Nesse novo conjunto de obras, Wiley rejeita a linguagem heroica da retratística e sua insistência na verticalidade. Em vez disso, ele destaca o simbolismo da morte e do sacrifício representado pelo motivo artístico histórico da figura reclinada. Suas figuras negras na horizontal, frequentemente em estados ambíguos de dor, luto, sono ou morte, fazem referência a pinturas e esculturas icônicas do mundo ocidental de heróis caídos, amantes, mártires ou santos – evocando dor e êxtase, sofrimento e transcendência. Wiley também explora a tradição europeia de erotizar o corpo martirizado, começando pelo de Cristo, a fim de seduzir os espectadores à adoração e à reverência. Assim, ele conecta a dimensão épica e histórica da violência contra pessoas negras com o legado do sagrado espetacularizado, chamando nossa atenção para uma realidade profundamente compreendida pelas pessoas negras, mas silenciada pelas forças socialmente dominantes por muito tempo.

Reclining Nude in Wooded Setting (Edidiong Ikobah), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.

Femme piquée par un serpent (Mamadou Gueye), 2022.© Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Essas pinturas e esculturas são uma expansão da série DOWN de 2008 – um grupo de obras em grande escala inspiradas por seu encontro com O Cristo morto no túmulo (1521-1522), do pintor alemão Hans Holbein, o Jovem. Criadas em meio à pandemia de COVID-19, ao assassinato de George Floyd e à ascensão global do movimento Black Lives Matter, as obras de Wiley marcam um importante retorno a esse tema. Coletivamente, elas se destacam como uma poderosa elegia às vítimas e aos sobreviventes da violência sistêmica, enquanto santificam a persistência da resistência negra contra o contínuo legado da supremacia branca.
UMA HISTÓRIA GLOBAL

The Virgin Martyr St. Cecilia (Ndey Buri), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Kehinde Wiley concebeu esse conjunto de obras em Dakar, Senegal, onde passou a maior parte do tempo durante a pandemia. Devido à quarentena, o artista teve que abrir mão de seu processo habitual de selecionar modelos nas ruas. Em vez disso, trabalhou com artistas locais, amigos e a equipe do Black Rock, um programa de residência que ele estabeleceu em Dakar, em 2019. Essas circunstâncias extraordinárias o levaram a revisitar DOWN, um conjunto de obras feitas em 2007-2009, que ele sentiu que nunca realizou seu potencial completo.
Durante esse período, quando muitas pessoas viram o mundo, principalmente, por meio de suas telas, a circulação de imagens facilitada pelas redes sociais estava mudando radicalmente a visibilidade da vida e da morte negras. Embora a fragilidade da vida negra e a abordagem de Wiley a isso já fossem anteriores às redes sociais, seu renovado foco na fragilidade negra é em parte uma resposta a essa maior capacidade dos outros verem seu trabalho com mais clareza.

Christian Martyr Tarcisius (El Hadji Malick Gueye), 2022.

Christian Martyr Tarcisius (El Hadji Malick Gueye), 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
A desconexão geográfica dos Estados Unidos também permitiu a ele ampliar a conversa além das preocupações nacionais. Esse contexto expandido é expresso em suas representações dos marcadores pessoais de seus modelos, especialmente suas roupas, joias e penteados. Muitas vezes indicativos de sua origem senegalesa, esses atributos compartilhados enfatizam a conexão das culturas negras em toda a diáspora e destacam a dimensão global da violência experimentada pelas comunidades marginalizadas de pessoas negras em todo o mundo.
A IMPORTÂNCIA DA ESCALA

The Virgin Martyr St. Cecilia, 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Esta exposição contém algumas das obras menores e maiores de Kehinde Wiley, com algumas do tamanho de pinturas históricas e esculturas públicas. A pintura histórica é um tipo de pintura representacional tradicionalmente usada para comunicar os objetivos do Estado e do império. Sociedades modernas adotaram esse formato na forma de outdoors para servir aos propósitos do capitalismo. O uso estratégico de tal escala por Wiley aponta tanto para a exploração capitalista da cultura negra quanto confere a seus sujeitos uma sensibilidade épica geralmente ausente das representações da figura reclinada ou caída na arte ocidental.
Em sua vulnerabilidade, suas esculturas invertem noções codificadas de negritude, especialmente no que diz respeito aos homens negros, cujas representações públicas muitas vezes se limitam a celebrações da excelência atlética ou condenações de comportamento antissocial. Os fundos e cenários florais de suas pinturas também fazem referência a associações igualmente estereotipadas, evocando o feminino, o doméstico e o irracional – esta última característica atribuída a muitos membros marginalizados da sociedade. Com elementos ornamentais invadindo as figuras, essas obras entrelaçam construtos sociais de raça e gênero, sugerindo que essas noções em si são irracionais e, portanto, desumanizantes.
A TRANSCENDÊNCIA DA LUZ

Youth Mourning, 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon
Na pintura ocidental, Deus é representado como luz. Banhando suas figuras em um brilho penetrante, o artista cita e subverte essa prática centenária, projetando suas figuras em um espaço de reverência historicamente reservado para Cristo, seus seguidores e, por extensão, para a branquitude. Reivindicando essa tradição pictórica para os sujeitos negros, Wiley desconstrói essa cadeia de associações. Ao fazer isso, ele expõe como equiparar a luz à divindade, atribui valor moral à cor e revela um mecanismo-chave pelo qual o conceito de branquitude naturalizada emerge. Como meio de afirmar a santidade da vida, a luz de Wiley infunde suas figuras com um senso de êxtase sobrenatural que as permite transcender suas condições precárias e destaca sua beleza, dignidade e humanidade.
A iluminação das esculturas independentes de Wiley cria um efeito semelhante: usando apenas refletores precisos que deixam o espaço ao redor das obras relativamente escuro, o artista dá a cada peça um senso de drama e páthos que inspira reverência e admiração.
UMA ARQUEOLOGIA DO SILÊNCIO

An Archeology of Silence, 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
A obra que dá título à exposição, An archaeology of silence, reformula a escultura de 2019, Rumors of war, que ele originalmente criou para a exposição na Times Square, em Nova York. Ambas as esculturas têm como base um monumento ao general do exército confederado James Ewell Brown Stuart, criado por Frederick Moynihan, em 1907. O monumento foi removido e armazenado em julho de 2020, após a renovada indignação pública pelo assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020.
Enquanto Rumors of war apresenta um cavaleiro negro orgulhosamente ereto sobre o cavalo do general, que Wiley copiou sem alterações, An archaeology of silence retrata uma figura caída. Essa escultura reverte radicalmente a iconografia tradicional do monumento equestre, que celebra a proeza militar como uma afirmação do poder do Estado. Como em grande parte de seu trabalho, Wiley subverte os legados de uma tradição histórica para deslocar o foco do opressor (o silenciador) para o oprimido (o silenciado) e centralizar as histórias globais das pessoas negras na vida e na morte.
O título da escultura, Uma arqueologia do silêncio, faz referência a uma frase do filósofo francês Michel Foucault, que a usou para descrever a ação de tornar visível um fenômeno socialmente reprimido. Foucault vinculou isso à capacidade do artista de falar a verdade sem ser prejudicado. Historicamente, esse tipo de revelação da verdade também está associado à figura do bobo da corte ou bufão, cujo status de outsider, ou “loucura”, permitia-lhes criticar o poder onde outros não podiam. Ao citar Foucault, Wiley, que frequentemente se referiu a si mesmo como um trapaceiro, reafirma seu direito a esse papel e seu direito de usar a beleza subversiva de seu trabalho para combater as estruturas grotescas de poder que representam a verdadeira loucura deste mundo.
Claudia Schmuckli é curadora de Arte Contemporânea
dos Museus de Belas Artes de São Francisco.
KEHINDE WILEY: AN ARCHEOLOGY OF SILENCE
DE YOUNG MUSEUM • SAN FRANCISCO
• EUA • 18/3 A 15/10/2023
MUSEUM OF FINE ARTS • HOUSTON
• EUA • 19/11/2023 A 19/6/202