40 nego bom é um real, 2013. Foto: © Jonathas de Andrade.

DASARTES 118 /

JONATHAS DE ANDRADE

A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA 59ª BIENAL DE VENEZA, CONTARÁ COM UMA NOVA INSTALAÇÃO DO ARTISTA ALAGOANO JONATHAS DE ANDRADE. SEU TRABALHO RESPONDE AO INTERESSE DO ARTISTA EM REFLETIR SOBRE A FORMAÇÃO E AS IDIOSSINCRASIAS DO “POVO BRASILEIRO”, LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO EVENTOS E PROCESSOS HISTÓRICOS. LEIA ENTREVISTA EXCLUSIVA COM O ARTISTA

COM O CORAÇÃO SAINDO PELA BOCA

Still
de O Peixe, 2016. Foto: © Jonathas de Andrade.

Jonathas se tornou internacionalmente reconhecido com o vídeo O peixe, apresentado pela primeira vez na Bienal de São Paulo, em 2016; nele se mostra a tradição-ritual que pertence aos pescadores de umas vilas à beira do rio São Francisco, entre os ESTADOS de Alagoas e Sergipe. Ao capturar os peixes, os homens os abraçam: “um abraço-limite – rito de passagem – onde o ser humano retoma sua condição de espécie e, olho no olho diante de sua presa, a acalma por meio de uma ambígua sequência de gestos: afeto, violência e dominação”, explica-se. 

A investigação das tradições e da cultura popular é o ponto inicial da maioria dos seus trabalhos, mesmo daquele ideado pela Biennale, cujo título se refere a uma expressão idiomática bem marcada – com o coração saindo pela boca – que, junto com muitas outras, desenvolverá a coluna poética do pavilhão. 

Eis o que nos contou o artista, antes de as portas dos jardins da Bienal abrirem. 

 

Queria começar pelo início: como nasceu Com o coração saindo pela boca, e como se desenvolveu?

Vista da Instalação Com o coração saindo pela
boca, na 59ª Bienal de Veneza, 2022.
Foto: Ding Musa/Fundação Bienal de São Paulo.

 

 

O projeto surgiu de certo estarrecimento a partir do presente. Esse título vem de uma expressão usada popularmente a frente um sentimento de vertigem sobre o que está acontecendo, ou diante da iminência de algo intenso ou grave que está prestes a acontecer. 

Isso para mim fala sobre o presente. Eu me dei conta de que a língua usada no Brasil tem centenas de expressões que usam o corpo para explicar sensações e sentimentos específicos. No pavilhão, uma extensa coleção de expressões vira uma espinha dorsal que percorre todo o local e se manifesta em esculturas, fotografias e um vídeo. A linguagem oferece pistas para falar do sentimento coletivo a partir do corpo, e assim tentar explicar o intraduzível. As expressões e suas imagens literais que jogam com o delírio absurdo do corpo tentam dar forma ao atônito que é viver no presente no Brasil e no mundo, em tantas instâncias – pessoais, afetivas, identitárias, ambientais, políticas. 

 

A pesquisa para realizar o pavilhão tem origem também das suas experiências de menino, a exemplo da visita à boneca Eva, um ícone dos anos 1980 na qual o público podia entrar para descobrir o funcionamento do corpo humano. Ficou impressionado com ela?

Vista da Instalação Com o coração saindo pela boca, na 59ª
Bienal de Veneza, 2022.
Foto: Ding Musa/Fundação Bienal de São Paulo.

 

 

Entrar em um corpo gigante era uma experiência alucinante de escala, de me sentir pequeno e olhar para o próprio corpo como um grande mistério, mas também como uma fonte de respostas. Acho que o universo das feiras de ciência de escola e a atmosfera de que é possível didaticamente explicar algum fenômeno é algo que me inspira para o projeto do pavilhão, pois estou mais interessado em ver os momentos em que o didatismo tropeça nas exceções e reencontra o mistério do inexplicável. Acredito que partir do corpo e do tanto de linguagem que ele carrega é pensar na sua capacidade de se readaptar, de se recriar, e de se reinventar em momentos de absoluta crise coletiva. 

 

Corpo natural, corpo social, corpo desejante, corpo erótico: estas são as definições mais frequentes que se encontram alcançando o seu trabalho. Como você definiria a sua prática artística?

Vista da Instalação Com o coração saindo pela
boca, na 59ª Bienal de Veneza, 2022.
Foto: Ding Musa/Fundação Bienal de São Paulo

 

Entendo a ambiguidade como uma potência para estabelecer um jogo com quem vê minhas obras. Preciso do repertório do outro para completar o sentido do que trago e decidir se o que mostro é ficção ou não, se o corpo é erótico, social, desejante ou desejado, representado ou atuante. Acredito nas narrativas polifônicas que se completam na leitura de quem vê, e fazem uso de jogos de pretextos como metodologias, fatos históricos, ou ainda coleções, sistemas e metodologias que tomo emprestado para conduzir imagens em movimento, fotografias que muitas vezes juntam textos e elementos gráficos, e mais recentemente podem ser também coleções de objetos e esculturas, que é um passo instigante e novo para mim, frequentemente sendo costurados por uma série de colaborações e conversas que me estimulam e me trazem uma dimensão do encontro como pulsação fundamental. 

Escrevia Pier Paolo Pasolini: “Eu sou uma força do passado. Só na tradição está o meu amor”. O escritor se referia ao desaparecimento do mundo popular com suas culturas e preciosidades devido à chegada do mundo globalizado, neofascista e homologado. Nesse sentido, você trabalha com os ingredientes da cultura popular, enquanto a arte se tornou global e globalizada. Quais são os maiores desafios? 

 

Salvo os contornos conservadores existentes na ideia de tradição dos quais prefiro me afastar, a cultura popular em geral carrega uma força da qual me interessa me aproximar e me misturar. Ela aponta para o passado e para o futuro, traz a potência de vozes e do gestual de uma cultura, e frequentemente explicita as contradições da existência, do trabalho, do modo de vida das pessoas de certo lugar, e em sua relação com a natureza. Costurar colaborações e beber da fonte do popular para as discussões da arte contemporânea para mim é natural e necessário quando um dos assuntos que pulsam globalmente é justamente como podemos reinventar nossa relação com a vida e com o entorno para reestabelecer uma conexão potente e respeitosa com a natureza, com o pulso das relações transformadoras enquanto coletivo. Além disso, tem um negócio radicalmente pedagógico e transformador em ver como grupos sociais respondem com reinvenção e resistência às restrições de uma sociedade desigual. A cultura no Brasil tem esse poder de ser catalisadora de subjetividades, de força política. Creio que é o que me faz querer desenvolver projetos com os carroceiros do Recife ou com a comunidade de surdos de Várzea Queimada, no Piauí. 

Quanto acha importante a arte ter uma identidade bem marcada, quer geográfica, quer social, quer poética/estética?

40 nego bom é um real, 2013.
Foto: © Jonathas de Andrade.

 

Acredito na força poética de falar das questões e dilemas universais a partir do local, do particular, do que está próximo. Gosto de trabalhar em colaborações nesse sentido, e acredito na potência dos encontros com não atores para invocar histórias e imagens com força universal a partir de estéticas de onde eu falo e de onde venho. Ainda que eu possa fazer projetos fora do Brasil ou do Nordeste, creio que trabalhar com os elementos de um lugar e como eles conversam comigo é uma maneira de criar peças que tragam assuntos que me interessam, como contradições da natureza e da ecologia, por meio de prismas das múltiplas identidades e pela aflitiva beleza da existência. 

 

Morar em Recife – em vez de São Paulo ou Nova York – lhe permite mais liberdade e lhe traz mais inspiração? 

 

Acho que me permite um pouco mais de concentração e um pouco de resguardo para focar nas obras. E as viagens, exposições e residências sempre ajudam a temperar e oxigenar essa perspectiva com as trocas e a dialética de ver o fora desde dentro, e o dentro desde fora. 

 

Uma brincadeira: “Morar no coração de alguém”, “Sentir dor de cotovelo”, “Chorar de barriga cheia”, “Ficar de orelha em pé”, “Comer com os olhos”, “Armar-se até os dentes”… Quais dessas expressões encontraremos em Veneza? 

 

É uma coleção que parece tão maravilhosamente infinita, que na sua pergunta encontro já algumas pra adicionar! Para adiantar um pouco, posso dizer que entre ter o coração saindo pela boca, e um tiro no pé, existe um nó na garganta, um peito aberto e muito jogo de cintura.

 

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte.É diretor da revista italiana Exibart, e tambémcolabora com a portuguesa Umbigo Magazine.

LA BIENALLE DI VENEZIA: 59ª ESPOSIZIONEINTERNAZIONALE D’ARTE • COM O CORAÇÃO SAINDO PELA BOCA • PAVILHÃO DO BRASIL• 23/4 A 27/11/2022

 

 

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