“O normal é psicótico. Normal significa falta de imaginação, falta de criatividade”. Jean Dubuffet.
Já perceberam que alguns trabalhos de Pollock, Keith Haring e Basquiat parecem guardar afinidades? Sim! Essa sensação é real, especialmente quando se descobre que esses pintores se inspiraram no “fazer arte” de Jean Philippe Arthur Dubuffet (Le Havre, 1901 – Paris, 1985). Conhecido como teórico da arte bruta, termo criado em 1945 para designar a arte produzida por autodidatas livres de estilos oficiais, Dubuffet pertenceu à primeira geração de artistas europeus do pós-II Guerra Mundial que presenciaram a destruição da velha ordem, assegurada por movimentos, ideologias, conteúdos e formas – algo chamado como o “crepúsculo do absoluto”. Esses criadores prezaram a autonomia da obra de arte e se jogaram em uma profunda reflexão sobre o lugar da arte na sociedade contemporânea.

Paris Plaisir II, 1962. Fotos: © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London
Acima de tudo, esses artistas mostraram sua revolta contra as convenções que regiam a arte e a cultura por meio de argumentação complexa e racional. Jean Dubuffet rompeu com a “tradição da pintura francesa” e os movimentos artísticos, quando afirmou que, no ato de criação, o acaso é altamente relevante e a experiência é suprema. Então, o “normal é psicótico”. As travas da lucidez impedem a imaginação e a criatividade. Sob esse raciocínio, Dubuffet buscou linguagens e contextos novos, assim como materiais inéditos. Sua produção, organizada a partir dos anos de 1940, é a matéria-prima da mostra Jean Dubuffet: Beaty Brutal, exibida na Barbican Art Gallery, com curadoria de Eleanor Naime, no período de 17 de maio a 22 de agosto de 2021. Segundo seus realizadores, a exposição é a primeira grande pesquisa do trabalho do artista no Reino Unido desde 1966. E confidencio aqui: é bem completa mesmo!

Jardin aux Mélitées, 1955. Foto: Courtesy Amy Gold and Brett Gorvy.
São oito cessões que narram a trajetória do artista: Matéria e memória, com ênfase no grafite e nas litografias inspiradas em Brassaï; Verdadeira face, assinalando retratos de Jean Paulhan, em 1945; Arte bruta, que expõe seu interesse por obras feitas por doentes mentais; Corpos de damas, trabalhos que marcam o feminino em sua trajetória; Paisagem mentais, que reúne obras abstratas que refletem estados emocionais; O jardim, com obras sustentadas pela pesquisa botânica como fonte da vida primitiva; Vida precária, com esculturas feitas a partir de materiais usados e, por fim, Texturologia, que exibe, mais uma vez, o interesse pela abstração e pela representação de texturas e nuances da terra. São 150 obras que contam sobre as proposições desse artista. Adjacente à sua produção, a mostra apresenta obras da coleção Art Brut de Dubuffet. Adquiridos ao longo de sua vida, esses trabalhos transformaram a abordagem e o significado da arte atual.

La Main dans le sac, 1961. © Peter Cox, Eindhoven, The Netherlands. Fotos: © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London.
O tom dado à exposição está entre o riso, o escárnio e o temor, partindo da frase de Dubuffet: “A arte deve sempre fazer você rir um pouco e temer um pouco”, a curadora aposta na disposição das obras, nas cores das paredes, nas fotografias do artista em seu ateliê, nas diversas frases que habitam o espaço da mostra e outros recursos cenográficos, tais como cartazes e diversos documentos. Em entrevista, a curadora aprofunda essa noção. Ela nos conta que, em uma carta de setembro de 1940, Dubuffet também falou de uma clareza recém-descoberta: “as pessoas estão desnorteadas e cansadas; eu não, pelo contrário, estou extremamente interessado. Acho nossa circunstância fascinante. Hilariante”. A sofisticação e o senso de escárnio do artista frente ao mundo destroçado pela guerra orientam uma das exposições mais concorridas nessa temporada europeia.

Portrait d’homme, 1957. © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London, Foto: Amy Gold and Brett.

Restaurant Rougeot I, 1961. © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London.
Jean Dubuffet: Beaty Brutal apresenta o início do artista-performer que dividiu sua vida entre a arte e o comércio de vinho da família. Aos 16 anos, quando estudou na Academia Julien, em Paris, focou atenções à literatura antiga e moderna e à etnologia. Durante alguns anos, a partir de 1923, deixou de pintar, mas retornou definitivamente em 1942. Dois anos depois, realizou sua primeira exposição individual em Paris. Nesse período, o estilo de suas obras foi influenciado pela arte abstrata de Paul Klee, pela produção dos povos primitivos, pela arte africana, pelos desenhos feitos por crianças e doentes mentais. Nesse início, ele usou a mídia para sua projeção pessoal, tornando-se precursor de outras figuras carimbadas da arte contemporânea, tais como, Warhol, Beuys e Trace Emin. Na exposição, imagens de seu crânio calvo e sorriso enigmático surgem a cada espaço, junto com citações: “Qualquer coisa pode ser um objeto de beleza”, “Existem milhões de possibilidades de expressão fora das vias culturais aceitas” e “Corro para coisas estranhas. Estou bastante convencido de que a verdade é estranha”. Todas as ideias de Dubuffet podem até nos parecem banais hoje, mas, nos anos de 1940, não eram, não!

Jean Dubuffet, Epanouissement, November 11, 1984.
Os retratos, iniciados a partir de 1945, quando o pintor fez uma série deles, tendo como modelo seu amigo Jean Paulhan e, posteriormente, Florence Gould, uma rica colecionadora americana, que encomendou retratos de alguns de seus amigos e conhecidos, são considerados grosseiros, mas capturam a essência dos retratados – beiram a fronteira da caricatura. Neles, a beleza não se resume ao objeto, mas estão na sua essência. Para Dubuffet, a arte não deve ser esteticamente agradável e seu desenho enfatiza um processo de criação lento e difícil, rejeitando a facilidade e a impulsividade dos pintores abstratos. Nessa primeira fase, Dubuffet é influenciado por obras espontâneas de artistas autodidatas, em alguns casos, doentes mentais. Em litografias, o artista também explorou a energia espontânea da arte infantil com a rudeza dos rabiscos presentes em paredes de banheiro – talvez tenhamos aqui a influência desse artista na atitude posterior de David Hockney e Jean-Michel Basquiat.

Dhôtel, 1947. Págs. Anteriores: Coursegoules, 1956. Paris © 2021 ADAGP, Paris/DACS

Dhôtel, 1947. Págs. Anteriores: Coursegoules, 1956. Paris © 2021 ADAGP, Paris/DACS
Avesso aos cânones da arte, Dubuffet atacou a tradição do nu feminino, em meados dos anos de 1950. Nesse período, ele produziu obras polêmicas: seus corpos femininos parecem colapsados; de textura frágil e prestes à dissolução. As cores com predominância do rosa esmaecido, roxos e vermelhos sugerem fluidos escorridos por uma paisagem formada por carne, cabeças, braços, seios e nádegas. Além da insubmissão ao tema – deixemos claro que as “damas violentas” de Dubuffet não se traduzem em misoginia –, o artista era contrário à ideia de beleza que acompanha à tradição histórica do nu feminino. Ele não era contra as mulheres. O artista também inovou nos materiais empregados nesses trabalhos: a experimentação com óxido de zinco e verniz se tornou combinação incomum com tinta a óleo. O mergulho no mundo pós-guerra, o emprego da caricatura, os materiais inusitados e a quebra das ideias convencionais de beleza são marcas indeléveis da primeira fase do artista.

Corps de dame, la rose incarnate, 1950. © 2021. ADAGP, Paris/DACS
Em uma segunda fase e ainda sobre as premissas da arte bruta, tida no seu sentido, como “crua” e “pura”, Dubuffet inseriu a vida na arte, como a série de desenhos à caneta esferográfica, realizados de modo quase automático, mostrando traços impessoais e o emprego de cores restritas. Dos rabiscos impensados em cadernos de anotações ao telefone, surgiu uma guinada no seu “fazer artístico”. Ele criou espaços com linhas nítidas e palheta com três cores – azul, vermelho e preto. A série Hourloupe, realizada a partir de 1962, caracterizou-se por uma linguagem gráfica modular, simultaneamente, simples, tensa e anárquica. Nesses trabalhos, parece haver um mundo paralelo construído a partir de compartimentos modulares e habitados por figuras que se reproduzem nas contradições.
Essa linguagem multifacetada e intricada nos faz aproximar os grafites de Keith Haring aos trabalhos de Dubuffet. Em conversa, registrada no site de sua fundação, Haring admitiu: “fiquei surpreso ao ver como as imagens de Dubuffet eram semelhantes às minhas, porque estava fazendo essas pequenas formas abstratas que estavam interligadas. Então, examinei o resto de seu trabalho”. Respingos e colagens de pinturas que o artista acumulou no chão do ateliê integraram o acaso de sua criação e estão nessa segunda fase do artista – o que o coloca em certa relação com Pollock. Geográfica e metodologicamente, eles são distintos, mas são frequentemente relacionados no pensamento britânico – lembremos que a mostra Jean Dubuffet: Beaty Brutal é fruto de pesquisa no Reino Unido.

Site habite d’objets, 1964. Serie Hourloupe. © 2021. ADAGP, Paris/DACS, London Stedelijk Museum Amsterdam.
Retornando a Dubuffet, a série Hourloupe é a mais conhecida do artista francês – produção de sua maturidade – e se tornou capital à sua preocupação destinada à escultura, ao teatro e à arquitetura, sendo o início da sua busca por uma arte “habitável”. Seus rascunhos rementem às peças de quebra-cabeças, isso porque as formas orgânicas parecem se encaixar em ação sucessiva. Gradativamente, seus projetos ganharam as grandes dimensões e envolveram o passeio físico do espectador entre suas obras – uma “pintura arquitetônica” com grafismo caótico, novas referências visuais e reflexos corporais. Nessa categoria, o espetáculo Cocou Bazar, (Nova York e Paris, 1973, e Turim, 1978), é exemplar do encontro entre pintura, escultura, teatro, dança e música. Na fase final de sua vida, Dubuffet criou assemblages que sintetizam seu pensamento e técnicas passados, como um “teatro da memória”, memórias de paisagens que desaparecem em sua mente.
Assim, dos retratos iniciais, passando pelos jatos de tintas, rabiscos hesitantes, esculturas fantásticas, telas gigantes e espaços “habitáveis”, a exposição Jean Dubuffet: Beaty Brutal nos propicia uma revisão aprofundada da arte do pós-guerra, com suas contradições, rupturas, adoção de novos rumos e materiais, assim como esmiúça a obra desse artista que sempre esteve envolvido com temas e objetos do mundo físico – um artista que pavimentou o caminho para ícones contemporâneos, mas, sobretudo, que ousou questionar uma das premissas mais caras à arte: a beleza. Ele nos ensinou que a beleza pode ser àspera, rústica e bizarra.

Le Dandy, 1973. © ADAGP, Paris and DACS
Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora em Artes Visuais pela ECA-USP (2008) e pós-doutorado pela Unesp (2018). Atualmente, é especialista em cooperação e extensão universitária do MAC-USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (EdUSP, 2011)
JEAN DUBUFFET: BEATY BRUTAL •
BARBICAN • LONDRES •
17/5 A 22/8/2021