A Galeria Jaqueline Martins expõe obras de Hudinilson Jr. (1957-2013), algumas delas inéditas, em uma mostra que carrega o nome do artista e se prolonga por mais de 600 m2. A curadoria, da própria Jaqueline Martins, visa reproduzir de modo simbólico a casa e o ambiente de trabalho de Hudinilson. A mostra antecipou a participação do artista em estande na Art Basel, uma das mais relevantes feiras de arte do mundo. Como não é incomum no estranho mercado das artes, outrora marginalizado de vários circuitos ao longo de sua vida, Hudinilson passou, postumamente, a ser amplamente reconhecido como um dos grandes artistas brasileiros.
Seu trabalho foi apresentado em importantes exposições coletivas como Histórias da Sexualidade (MASP), Copyart in Brazil – 1970-1990 (Universidade de San Diego), The Matter of Photography in Americas (Universidade de Stanford) e a 31ª Bienal Internacional de São Paulo. O artista tem obras que integram importantes coleções, como: MoMA (Nova York, EUA), Museu Reina Sofia (Madri, Espanha), Migros Museum (Zurique, Suíça), MAGA Museo d’Arte (Gallarate, Itália), MALBA (Buenos Aires, Argentina), MASP (São Paulo, Brasil), Pinacoteca do Estado (São Paulo, Brasil) e o Museu de Arte Contemporânea da USP (São Paulo, Brasil).

Falo gigante, anos 1980.
Todas fotos: Cortesia artista e Galeria Jaqueline Martins.
Ao centro das obras, de quase todas elas, o corpo, nu e masculino. Muito frequentemente o do próprio artista, que atuou como modelo entre as décadas de 1970 e 2000. Por meio de pintura, desenho, xilogravura ou estêncil, fotos e xérox de si mesmo, ou ainda pelo recorte de figuras de revistas e colagem de elementos caracterizados como lixo no cotidiano urbano, Hudinilson apresenta um retorno erótico e constante ao corpo masculino.
E, nessas constelações corporais, tensões múltiplas são apresentadas entre o corpo utópico dos modelos greco-romanos, dos pinups masculinos, das revistas pornográficas homoeróticas, e o corpo heterotópico do próprio artista feito imagem; entre o corpo como um todo indivisível, integral, e sua fragmentação em detalhes por vezes abstratos; ou mesmo, mais fundamentalmente, entre a biologia e materialidade do corpo e a tecnologia e artificialidade da imagem, da cópia.
Formado em Belas Artes pela FAAP-SP, onde estudou entre 1975 e 1977, criou, juntamente com os artistas Rafael França e Mário Ramiro, o grupo 3nós3, que atuou entre 1979 e 1982 por meio de intervenções no espaço público. A estrutura de 3nós3 pretendia escapar do modelo acadêmico-mercadológico das artes organizadas em galerias e museus. No circuito das ruas e praças, a fricção entre arte e vida (dualidade que baliza muitas obras modernistas e contemporâneas) tomava contornos mais frescos, autênticos e interativos. É o que fica explícito na intervenção “X-Galeria”, por exemplo, em que o grupo marca as portas de várias galerias com um “X” e os dizeres “o que está dentro fica, o que está fora expande”.

Grupo 3nós3, X-Galeria, 1979.
Foto: cortesia: Mario Ramiro e Galeria Jaqueline Martins
Na intervenção “Ensacamento”, o grupo ensacou as cabeças de 68 estátuas localizadas em espaços públicos da cidade de São Paulo durante a madrugada e, no dia seguinte, ligou para jornais fingindo serem moradores indignados com o suposto “vandalismo”. Assim, a obra ganhou a extensão do espaço aberto da cidade e provocou interativamente os meios de comunicação, que, por sua vez, provocaram um público que era também público imediato das obras, pelo simples fato de passar por elas em seus percursos rotineiros (sem necessidade de se desviar para o museu). O ensacamento de cabeças públicas é uma menção clara à prática da tortura, que frequentemente priva o interrogado de seus sentidos (e de sua identidade) ao lhe ensacar o rosto. O número de estátuas pode ser uma sugestão ao ano de 1968, ano do AI-5.

Grupo 3Nós3, Ensacamento, 1979.
Fotos: cortesia: Mario Ramiro e Galeria Jaqueline Martins
Entre os trabalhos solo principais de Hudinilson Jr., destacam-se suas xerografias, campo em que foi pioneiro. Em Exercícios de me ver, uma série que certamente se divide em muitas durante a década de 1980, o artista, nu, deitou-se e se moveu sobre uma máquina de xérox, produzindo, ao longo dessa cena quase-sexual entre homem e máquina, inúmeras imagens de si. Pedaços de um corpo outrora inteiro. Resultados atomizados de uma espécie de Narciso moderno a se afogar na tecnologia em prol da produção e do consumo de imagens de si – remetendo avant la lettre à dinâmica auto-expositiva das mídias sociais. Uma dessas performances com a xérox se intitula justamente Narcisse (1987), que é também o nome de uma flor referenciada em algumas obras (como no estêncil em papel de 2010).
Quantos corpos podem habitar um mesmo corpo? É a pergunta que essas fotocópias sugerem. Em O corpo utópico, Michel Foucault comenta que todas as formas de utopia têm como ator principal o corpo humano. Mais que isso, o corpo é, ao mesmo tempo, a fonte e o destino das utopias, que com frequência se tornam dispositivos contra esse mesmo corpo (particularmente nos enredamentos da biopolítica, que mede e controla as mecânicas da vida).
Nas fotocópias de Hudinilson Jr., o corpo em performance se torna corpo em imagem. A carne, o osso, os fluidos e a vida tridimensional daquela presença corporal autêntica e efêmera sobre a máquina (própria da performance) são transformados em bidimensionalidade fixa, preto e branco e de alto contraste (próprio da xérox). Alguns enquadramentos produzem abstrações por meio de grafismos sugeridos por pelos e rugas da pele, tornando visível uma espécie de não corpo que já estava lá, desde o início, habitando o corpo – mas que ainda não havia sido vislumbrado. São constelações corporais que partiram todas de um mesmo corpo comum, o de Hudinilson (e, por que não, o nosso): corpo-galáxia.
Nesse sentido, os Exercícios se distinguem claramente da gramática narcísica das mídias sociais, mesmo que se relacionem com ela. Nesta, há uma cosmética do corpo, cuja estrutura, motivada por uma utopia de beleza eurocêntrica, é prescritiva: decide o que pode e o que não pode ser postado/curtido. Já nas fotocópias de Hudinilson, vemos uma estética do corpo, que se fundamenta em um caminho de autoconhecimento e autorreplicação pela imagem, em um percurso de se abrir às múltiplas utopias corporais que habitam sua pele, sem necessariamente optar por uma delas. Ao contrário do corpo das mídias sociais, cosmético, prescrito, opaco, que é hipercompartilhado, mas não se deixa ver de verdade, Hudinilson nos oferta um corpo estético, experimentável, múltiplo, transparente, devassado por si próprio.

Sem título, 1979.
Mas isso não significa dizer que o artista não é afetado pela utopia de beleza greco-romana. O torso masculino, largo, musculoso e branco é uma constante em suas obras de colagem feitas desde a década de 1970. Nelas, corpos normalmente sem rosto, recortados de jornais ou revistas, são colados juntamente com outras imagens e outros materiais, muitos retirados do lixo (penas de pássaro, enfeites quebrados ou démodés, peças de madeira ou metal, etc.).
Ao serem privados de rosto, os corpos masculinos, mesmo tendo saído de revistas, aproximam-se da estatuária greco-romana, revelando uma espécie de arqueologia da beleza (diria Foucault). O fato de a colagem incluir outros materiais e objetos, acompanhados por seus volumes e texturas, parece frisar materialmente que esses corpos são abstrações imagéticas, bidimensionais. Isso sugere seu caráter utópico, remetendo às tradições da representação do corpo nas belas artes sem necessariamente criticá-lo.
Sob outra óptica, uma que aproxima os objetos das imagens, pode-se falar de uma estética do corpo como coisa – e a falta de rosto aqui é de novo primordial, pela perda de identidade e personalidade que introduz. Sim, certamente o corpo-coisa como mercadoria, mas não somente. O corpo vem também como coisa da arte, coisa digna de arte, como objeto a ser visto, trabalhado, representado e (foto)copiado.

Sem título, Anos 1980.
Tais colagens, que marcam o início da carreira artística de Hudinilson, vão também marcar sua última fase de trabalhos, na qual o artista produziu vários Cadernos de Referências, uma espécie de arquivística. Neles, Hudinilson colou imagens de todos os tipos, mantendo seu foco no corpo masculino nu ou seminu. Os Cadernos foram montados a partir de recortes de jornais e revistas recolhidos do lixo. Há imagens de publicidade, revistas pornográficas, fotojornalismo, ilustrações. Em todas as páginas, homens em diversas atividades: posando para a foto, tendo relações sexuais com outros homens, mergulhando, tocando instrumentos, jogando bola, etc. Parece haver ao mesmo tempo um encanto e uma consciência em relação à exploração do corpo em forma de imagem pela indústria cultural.
Se esses Cadernos, junto com as colagens iniciais e as performances e imagens xerográficas assinalam um tratamento iminentemente contemporâneo dado ao corpo (procedimentos de colagem, uso de materiais banalizados, elementos da cultura pop, mediação tecnológica da máquina), eles também podem apontar para horizontes mais fundamentais da arte e da representação, justamente por tratarem do corpo. Podemos relacionar Hudinilson aos selfies das recentíssimas mídias sociais, mas também às primeiras taxonomias anatômicas de Alphonse Bertillon para a polícia francesa do século 19 (por meio de quadros com fotografias de partes de corpos de criminosos). Podemos falar de novas técnicas de imagens do corpo (xerografia), e também da mais antiga de todas: a mão gravada nas paredes das cavernas. Hudinilson Jr. nos lembra do corpo como fundamento da própria representação, como fonte e destino de todas as utopias.

Sem título, Anos 1980
Hudinilson Jr • Galeria Jaqueline Martins • São Paulo • 01/6 a 3/8/2019