Metafísica quer dizer para além da física, para fora do que existe em nosso campo visual habitual e de nossa consciência geral. (Giorgio De Chirico).

Composition métaphysique, 1914. © ADAGP, Paris, 2020.
Um dos mais sofisticados pintores do século 20, Giorgio De Chirico, é dono de um percurso marcado pela criação da pintura metafísica – algo que está para além da vida; qualquer coisa que extrai da obra de arte o mais profundo, o silêncio, a presença que se dá pela ausência. Agora, ficou difícil? Não se nega, há bastante complexidade nas referências do artista. Por esse e outros motivos, é imperdível a exposição Giorgio De Chirico. Pintura Metafisica, que acontece nesta temporada, no Musée de l’Orangerie e, depois segue para o Hamburger Kunsthalle. E por que a mostra é excepcional? Porque nessa busca “pelo que está além do que se vê”, a exposição traz as influências artísticas e filosóficas que servem ao artista. Mas, o inovador da mostra está em recriar as viagens do pintor, levando-o de Munique a Turim, depois a Paris, onde ele se aproxima das vanguardas e, por último, Ferrara, onde surge a Escola Metafísica.

L’incertitude du poète, 1913. Photo © Tate, Dist. RMN-Grand Palais / Tate Photography. © ADAGP, Paris, 2020
A exposição como uma grande “viagem” enfatiza os vínculos do pintor com o escritor e crítico Apollinaire e, posteriormente, com o marchand Paul Guillaume. Um detalhe importante: a mostra também é apresentada através de um tour virtual, reunindo uma seleção de obras que elucida o percurso. Porém, com ousadia, faremos aqui o nosso próprio diário de bordo – que os curadores nos perdoem, mas, na verdade, esse itinerário metafísico tem como ponto de partida Volos, região da Tessália, terra natal de Giorgio De Chirico.
Em terras gregas, ele teve as primeiras aulas com mestre Mavrudis, exímio desenhista e funcionário da ferrovia Atenas-Salônica. No seu Memórie della mia Vitta, De Chirico diz que, quando estava na companhia do mestre, “vagava por um mundo quimérico de coisas fantásticas”. Após as lições de Mavrudiz, o jovem teve aulas com os mestres Barbieri e Gilleron até ingressar no Instituto Politécnico de Atenas, onde estudou quatro anos de desenho e iniciou na pintura com o retratista Jacobidis. Andrea De Chirico, seu irmão mais novo, formou-se em piano e composição no conservatório de Atenas.

Sérenade, 1909.
© ADAGP, Paris, 2020.
A morte do pai de De Chirico, em 1905, causou imensa transformação na vida da família, que saiu de Atenas para Munique. Porém, no entremeio, a família fez uma pausa em Florença, onde permaneceu até 1906. É uma temporada de visitas a museus e galerias de arte, onde as obras de artistas, tais como Tintoretto, Ticiano, Veronese, Segantini e Previati, impressionam o aspirante a pintor. Em Munique, De Chirico se revezava entre as aulas da Academia e o estudo de pintura antiga na Pinacoteca. A cidade neoclássica, de espaços alargados e pequenos acostamentos, influenciou seu estado de ânimo. Ele passeava por Munique observando as obras de Bröcklin, Lenbach, Dürer, Rubens, Nazareni, Von Marées e Menzel. Admirava Wagner, enquanto Andrea estudava com Max Reger, considerado o “II Bach moderno”.

Le voyage sans fin, 1914.

Pomeriggio di
Arianna Ariadnes Afternoon. © ADAGP, Paris, 2020.
À época, De Chirico descobriu Nietzsche e Schopenhauer. Os conceitos de Nietzsche do super-homem, o valor da surpresa transmitida pela obra de arte, a angústia do labirinto, o significado da stimmung, o nascimento da tragédia e, sobretudo, o enigma, formaram um universo a ser explorado pelo jovem pintor. Ele iniciou uma temporada de muita produção. Fez suas primeiras telas, explorando temas brocklianos: cidades marinhas, centauros e sereias – em todos os trabalhos, o tom romântico predomina. Ele também pintou seu primeiro autorretrato, daí surgiram temáticas desenvolvidas por toda a vida dele: a melancolia, expressa no modo como a cabeça posa sobre o braço, em uma óbvia referência ao retrato de Nietzsche, e o enigma, proposto no título da obra e remete ao templo de Delfos e ao mito de Apolo.
Em 1910, seu irmão Andrea seguiu para Paris. De Chirico e a mãe retornaram à Florença. As crises de melancolia e as cólicas intestinais que o acompanham se acentuaram e, inversamente, sua produção se intensificou. É o fim do período brockliano e o início da melancolia das tardes de outono. Nos seus escritos, o artista diz que uma obra de arte somente pode surgir da revelação – aqui um traço de Schopenhauer. Para esse filósofo, as ideias originais e extraordinárias nascem do isolar-se do mundo por alguns momentos, assim, de modo completo, os fatos comuns se apresentam como novos e desconhecidos – eles revelarão sua verdadeira essência. De Chirico transporta o mecanismo de isolamento, estranhamento e revelação do universo filosófico para a pintura.

Lénigme dun après midi dautomne, 1910.
Em uma passagem rápida por Turim, em um verão muito quente, De Chirico se impressionou com as praças italianas. A arquitetura e a atmosfera da cidade deserta eram as inspirações para sua produção parisiense. Ele chegou à cidade na noite de 14 de julho de 1910, e estava novamente doente e em depressão. De imediato, tomou conhecimento do Salon d’Autonme e, incentivado por Calcovoressi, um crítico musical amigo de Andrea, inscreveu-se no salão. Apresentou os trabalhos produzidos em Florença: Enigma de uma tarde de outono, Enigma do oráculo e o Autorretrato, com dedicatória nietzschiana.

The Red Tower, 1913.
O encontro com Apollinaire foi o incentivo para sua participação, no ano seguinte, no Salon de Indépendantes. Dessa vez, apresentou as telas: A melancolia da partida, O enigma da hora e O enigma da chegada depois do meio-dia. Apollinaire acompanhava De Chirico, apresentando-o “aos que interessam em Paris”, entre eles, Picasso, Braque, Mancusi, Derain e Max Jacob. Em novembro de 1913, o pintor exibiu, no Salon d’Autonme, as obras Retrato de Madame L Gartzen, A melancolia de uma bela tarde, Etude e A torre vermelha – esse foi seu primeiro trabalho vendido.
Nesse período, Andrea adotou o nome de Alberto Savinio para se distinguir de De Chirico e homenagear Apollinaire – isso porque há o polígrafo Albert Savine em uma de suas crônicas literárias. Juntos, os irmãos frequentaram o restrito círculo cultural parisiense, que reconheceu a originalidade de seus trabalhos. Também nessa época, Paul Guillaume adquiriu alguns trabalhos de De Chirico e manifestou seu interesse em ser seu marchand. A produção de De Chirico é abundante: visões arquitetônicas, praças italianas, estátuas solitárias, manequins e suas primeiras naturezas-mortas.

Portrait (prémonitoire) de Guillaume Apollinaire, 1914.
© ADAGP, Paris, 2020
Porém, a festa estava prestes a acabar. No ano de 1914, em Paris, trabalhava-se pouco. Amigos e conhecidos desapareceram atendendo à convocação militar. Muitos voltaram aos seus países de origem, imaginando que cumpriam um dever. A atmosfera era muito tensa, os pintores se recolhiam. De Chirico teve uma experiência profética: retratou Apollinaire como “homem-alvo”. Pouco tempo depois, no front, o poeta foi ferido justamente onde o pintor marcava uma circunferência, como um alvo, em sua cabeça.
No verão, ele regressou à Itália, passando em revista em Florença, onde foi destinado ao 27º regimento de infantaria de Ferrara. Seu frágil estado de saúde causara sua transferência para um convento, espécie de hospital militar para convalescentes. Lá, conheceu Carlo Carrà – ambos com saúde debilitada. Essa condição propiciou aos dois a continuidade do exercício da pintura. Carrà recém-abandonara o futurismo e buscava por uma arte mais estável e monumental voltada à tradição italiana. Momentos antes da guerra, o futurismo representava a modernidade – era uma estética inspirada no nascimento das cidades industriais, no mito do progresso, na velocidade e na energia das máquinas. Para Carrà e outros artistas italianos, esses ideais não mais eram suficientes.

Les deux sœurs (L’ange juif), 1915. © ADAGP, Paris, 2020
Ao se deparar com os trabalhos de De Chirico, ele entendeu que aquela era a pintura que estava à procura. Carrà expôs suas telas metafísicas, em Milão, em 1917. De Chirico expôs seus trabalhos metafísicos em Roma, em 1919, mas lembremos de que sua produção já era bastante conhecida na França. No mesmo ano, foi publicada a Valori Plastici, revista dominada pela tendência metafísica. O número duplo, de abril e maio, guardava a mais completa exposição do ponto de vista da Escola Metafísica, com artigos de Carrà, Savínio e De Chirico. Nesse número da revista, De Chirico sustentava que a ideia da pintura metafísica era atingir uma realidade visionária na qual o pintor trabalha em um estado de devaneio.
Carrà e De Chirico não estavam interessados em sonhos, mas no fenômeno mais intrigante das associações que nascem das observações cotidianas. A concordância entre eles não durou muito tempo, De Chirico acusou Carrà de ter assumido a autoria da pintura metafísica, ignorando que suas telas pintadas antes da Guerra já haviam sido consagradas metafísicas. Os trabalhos dessa escola, a série de “enigmas”, de De Chirico, datam da década de 1910. Porém, o termo somente surgiu em 1915, quando ele encontrou Carlo Carrá. Assim, a arte metafísica se desenvolveu entre 1910 e 1917, graças a De Chirico e Carrà, sendo conceituada como um estilo no qual vistas de cidades, paisagens desoladas, figuras solitárias e estranhas naturezas-mortas eram dispostas como se não pertencessem ao mundo físico.

Les poissons sacrés, 1918. © ADAGP, Paris, 2020.
Houve cisões entre as pinturas metafísicas de De Chirico e Carrà: o primeiro estava fascinado pelo presságio do desconhecido e, o segundo tendia a uma espécie de reflexão passiva. Carrà exaltava a perfeição impessoal das formas ordenadas, em contraposição as de De Chirico, que retratavam sempre obsessões enigmáticas. Para De Chirico, a obra de arte imortal devia abandonar por completo os limites do humano. Os elementos clássicos da pintura italiana somados à evocação de lugares, especialmente, Ferrara com suas amplas perspectivas, brancas e desertas, levaram o pintor a um mergulho em sua alma que, por sua vez, o conduziu inevitavelmente a uma arte metafísica.
Nessa busca “pelo o que está além do que se vê”, juntam-se Giorgio Morandi, Atanásio Soldati, Giorgio Morandi, Filippo de Pisis, Gino Severini, entre outros. Como movimento, a Escola Metafísica durou poucos anos. O caráter onírico desse universo pictórico antecipou alguns aspectos do repertório surrealista, cujo precursor era o próprio De Chirico, além de influência sobre certos aspectos do Novecento Italiano e do pós-modernismo. Assim, o “nomadismo” de De Chirico proporcionou o conhecimento. São muitas cidades: Volos, Antenas, Munique, Paris, Roma, Florença, Turim e Ferrara. Todas elas são relevantes para a construção de suas referências. No fim, a “viagem” pelo percurso estético de De Chirico mostrou suas ressonâncias para além de sua época.
Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela
ECA USP (2008). Professora do CELACC ECA USP, membro
da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de
Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro
Schenberg: crítica e criação (EDUSP, 2011).
Paulo Roberto Amaral Barbosa é doutorado em Artes Visuais- ECA USP (2011).
Chefe da Divisão Técnico-científica de Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo.
GIORGIO DE CHIRICO • LA PEINTURE MÉTAPHYSIQUE •
MUSÉE DE L’ORANGERIE • PARIS • 16/9 A 14/12/2020