O rapto do sol, 1984. Todas as fotos: João Liberato.

DASARTES 85 /

Gilvan Samico

As xilogravuras de GILVAN SAMICO (1928-2013) estão entre as mais originais e representativas dessa arte tão determinante para formação e difusão de uma visualidade moderna no Brasil. Seu nome consolida essa prática artística como uma potente estratégia poética e social. Reveja matéria do artista por ocasião de sua nova individual na galeria Estação, em São Paulo

Às vezes, no mundo da arte, o tempo não corre com a cronologia feroz e imperiosa, mas se pauta por outra temporalidade menos frenética, mais pausada. Um dos casos mais paradigmáticos está na prática artística de Gilvan Samico (Recife, 1928). Toda a sua última produção diminui o fervor das notícias ao compasso de uma produção que, desde 1975, oferece uma gravura por ano, como se construísse outro calendário, outra temporalidade.

Para não deixar dúvidas sobre essa postura anti-inflacionária, o próprio artista confessou, nunca sem humor, que “está desacelerando”. Aparentemente, diz ser preguiçoso, ma,s na realidade, para chegar a essa gravura definitiva, o número de estudos cresce cada vez mais. É o caso do exemplar A Casa, em que Samico fez 45 estudos (mostrados como tais na Pinacoteca do Estado de São Paulo). Com um rigor sempre cirúrgico em cada passagem, ensina que não se pode errar.

A pesca, 2007

O projeto de cada original costuma ser iniciado pela escolha de um tema, que não é gráfico, segundo o artista, e toma seu tempo em correções, provas, emendas e modificações. Uma arte da paciência, sem velocidade, mas com a angústia do tempo que corre inexoravelmente. Até chegar a hora breve da impressão, em que, em vinte ou trinta dias, tudo se completa: a gravura sai em uma tiragem de dez cópias, que o artista pode reimprimir dependendo da demanda. No fundo, reconhece que o processo demorado cansa: “não faço com essa alegria toda, só fico contente quando termino”. Samico afirma que já abandonou as possíveis surpresas da impressão, prevendo o resultado, “não querendo que apareça nada que não tinha pensado”. Esse lado pensante e reflexivo, existente no processo das gravuras do mestre pernambucano, torna-o um artista conceitual da gravura, distante de tantos outros. Daí também, às vezes, a justificativa do “não estou fazendo, estou pensando”. E também a evidente patente de construção e de invenção.

Samico sempre partiu da matéria escrita e literária do cordel, não da visual. Essa fuga da ilustração, do naturalismo, pode explicar, em certa medida, o grau de liberdade e imaginação de seus trabalhos. Até sua falta de mimetismo regional, sendo, ao mesmo tempo, um artista tão pernambucano, pois o alimento estético e cultural vem de procedências diversas, e não de um correlato visual do visível ou do mundo real.

Ciclistas, 1959

Três mulheres e a lua, 1959

Com a primeira composição geométrica, descobriu que sua gravura estava parada no tempo, não tinha sentido de movimento. Desde 1971, o Nordeste liberou Samico da noite expressionista, aliás, abandonando a prática noturna de trabalho de outra época pela luz do dia de Olinda. Porém, não esqueceu o rigor de seus mestres Goeldi e Lívio Abramo, de quem herdou acentos contidos de cor ou a finalização na maneira de gravar, além de um lado construtivo, respectivamente, sobretudo a partir dos anos 1980, em que começa a utilizar elementos arquitetônicos para estruturar o resto de signos visuais a serem incluídos.

O leque gráfico de tramas, texturas, traços, ritmos, retículas, em completa articulação compositiva, não permite nada secundário nas gravuras de Samico. Tudo é semanticamente significativo, reduzido, essencial, qual certa imagética quintessenciada que valoriza seus fragmentos como um todo.

Rosto, 1959

Samico é fiel ao papel japonês – foge de outros papéis por sua impressão leve – e à madeira pequiá-marfim (atualmente em produção ecológica, aliás, como as gravuras do artista), por ter as fibras bem fechadas, o que facilita a gravação. Outra vantagem dessa madeira é que ela não tem veios “fantasiosos”, já que Samico não gosta que a “fantasia da madeira” se imiscua em sua própria fantasia. Normalmente, ele usa duas ou três madeiras, quatro no máximo, e até três emendas. Aliás, para esses fins, o artista está fazendo uma máquina-engenhoca para facilitar suas construções visuais.

Por outro lado, na última produção do artista – das últimas três décadas –, as gravuras têm atingido certo tamanho – e uma maior verticalidade –, permitindo um grau de abstração maior e uma composição mais complexa, mais rica em planos e temporalidades (físicos e culturais). As dimensões desse dilatado universo, dos anos 1980 até agora, encontram-se entre 94 x 55,5 cm, 93 x 52 cm ou medidas bem próximas disso. É nesse espaço que a proposição visual do artista procura um conhecimento mágico, fantástico: nem teorema racional nem charada estética, mas a fábula da imagem desenhada que atinge um imaginário sintonizado ao mesmo tempo com a literatura popular, arquétipos universais e sua própria invenção. Assim, as suas gravuras constroem sua própria lenda, tornam-se gravulendas. Ou xilogravuras com vistas (muitas vezes metafísicas) em que a arquitetura, as simetrias e os planos na composição tão rigorosamente construída pretendem estabelecer uma articulação rara de simbologia, iconografia e poesia. Ou, dito de outra forma, uma criação que ecoa “o caráter egípcio da arte”, como dizia Adorno, e que não se refere ao alto grau de planaridade das imagens, mas à nossa conciliação com o enigma que representa a arte.

Francisco e o lôbo de Mântua, 1969

Gilvan Samico tem feito do tempo, de seus diferentes cronos, uma mesma paisagem, que podemos habitar quase mitologicamente. Assim, o espetáculo do mundo se inscreve nas estritas coordenadas exteriores de uma gravura sem limites interiores. A criação de Samico participa do reino da metamorfose. E cada gravura promete uma epifania de imagens cujos gestos/traços mais reconhecíveis vão além do visível porque encerram analogias (aparências e dessemelhanças). As “recriações” do artista procuram um “canto” que estabeleça a variedade original das coisas, seu feitiço múltiplo, pois a oposição entre natureza e cultura, para o mago de Olinda não existe, ainda é signo de fertilidade, de nascimento in perpetuum para gravuras-origem de “estórias” (não de histórias meramente narrativas). Assim, as obras sucedem “devagarosamente”, como obras-primas, a O Outro Lado do Rio (1980), O Devorador de Estrelas (1999) ou Via Láctea – Constelação da Serpente II (2008), entre outras.

Seu trabalho mais novo, de 2009, ainda sem título e em fase de elaboração, apoia-se em uma lenda indígena, em sintonia com esse repertório transcendente que religa pássaros, serpentes e bichos, elementos da natureza e seres humanos. Gravura que cria uma constelação de naturezas diversas que valoriza a criação (de homem e mulher, sereias ou estrelas) como algo primigênio: é o que acontece com as gravuras-emblemas de Samico, com seu canto de criação, sempre tão esperado.

Juvenal e o dragão, 1962

 

Samico • Galeria Estação • São Paulo • 28/5 a 13/7/2019

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