
Foto: © Gervane de Paula.
Gervane de Paula, que só agora recebeu uma individual em uma prestigiada instituição paulista, a Pinacoteca de São Paulo, debutou no circuito sudestino no início da década de 1980, em mostras cujos títulos revelam qualificações significativas. Exposições como Primitivos de Mato Grosso, no MASP, e Brasil-Cuiabá: pintura cabocla, com itinerância pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no de São Paulo e na Fundação Cultural de Brasília [1] (1981), são marcos de sua apresentação ao público sudestino e do modo como este pretendia enquadrá-la.
As instituições da arte, sabemos, trabalham com classificações para conferir sentidos aos seus artefatos em seus contextos culturais. Entre suas disposições, o sistema artístico demonstra especial apreço por figurações do outsider. A própria construção da personagem artista no palco social é devedora da tensão entre as esferas individual e coletiva, identificando sujeitos cujo reconhecimento se encontra atado à noção de singularidade. A percepção da diferença, contudo, só é possível em um meio homogeneizador que permite, simultaneamente, sua apreensão – via reconhecimento de uma mesmidade – e sua exclusão – que a torna figura de alteridade.
Foto: © Gervane de Paula.Os outsiders, aqueles que não pertencem necessariamente a uma categoria previamente estabelecida, fundando a sua própria em oposição ao normativo e ao normalizado, abundam na história da arte. Exemplares, nesse sentido, são os papéis do gênio autodidata ungido pelo divino, ou o enfant terrible moderno, seja o personificado pelo melancólico – e tísico – pintor ou poeta romântico, ou o arruaceiro boêmio. Há, ainda, o ermitão silencioso, o louco lúcido, o estranho e o excêntrico. Enfim, são múltiplos os clichês nos discursos da arte. A proliferação dessas versões não aponta para a superação da categoria, mas para sua contínua renovação e ressignificação mítica em diferentes contextos.
Sua função é de ressaltar o campo no qual se inscreve como espaço de diferenciação simbólica – de seus produtos e produtores –, assegurando-lhes um estatuto especial que só pode ser considerado tal por afirmar, também, o campo normativo no qual emerge e circula. A posição que artistas como Gervane de Paula assumem nesse ecossistema é uma manifestação da operacionalidade da “marginalidade” no circuito artístico.
Mesmo a anedota sobre a entrada tardia do artista e de seu conterrâneo e contemporâneo, Adir Sodré, no festejado grupo de artistas da mostra “Como vai você, geração 1980?”, no Parque Lage, em 1984, demonstra o quanto é difícil, para muitos agentes do sistema artístico, a apuração do olhar para além-centro[2]. Mesmo o posicionamento de Gervane de Paula como expoente da geração 1980 é um tanto reducionista, tendo em vista que ele já produzia compulsivamente desde 1976, quando, adolescente, iniciou seus estudos no Ateliê Livre, originalmente ligado à Fundação Cultural do Mato Grosso, e posteriormente integrado ao Museu de Arte e Cultura Popular (MACP) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Quase cinco décadas após o início de sua produção, foi-lhe concedido o holofote em um dos principais centros produtores de visibilidade do país, que, além de concentrar parte expressiva do mercado de arte, abriga museus e centros culturais renomados. O que poderia explicar tamanho atraso? O que, na produção de Gervane, interessa à instituição? Tendo em vista que o museu, que se regozija de oferecer ao público a primeira individual do artista na cidade, só incorporou seu trabalho na coleção em 2022. Tal atraso, por sua vez, é um avanço, se comparado com a ausência da obra de Gervane em outros museus da metrópole.
OS LIMITES ENTRE A NATURALIDADE E O ARTIFICIALISMO

Foto: © Gervane de Paula.
“Como é bom viver no Mato Grosso”, individual de Gervane de Paula na Pinacoteca, é uma primorosa síntese de sua prática. As três salas do segundo andar do museu abrigam uma seleção de mais de 50 obras – conjunto que representa uma ínfima parcela de sua prolífica produção. A arquitetura da Pinacoteca possibilita diferentes entradas no espaço expositivo e, consequentemente, diferentes percursos na mostra. De modo que não há nem uma divisão cronológica que deva ser seguida e mesmo os temas sugeridos não permitem fechamentos, mas contaminações, assim como ocorre na prática de Gervane.
A produção do artista resulta de múltiplos atravessamentos, entre o local e o global, o centro e a periferia, o sujeito e seu contexto, o prosaico e a paisagem, o natural e o artificial, o político e o poético, entretecendo conexões múltiplas, cambiantes e abertas. O que sobressai no percurso é a pulsão de Gervane pela pintura. Seu interesse repousa no fazer pictórico como exercício das possibilidades daquele meio produtor de imagens. De tal modo que tudo possa ser tema para sua pintura, assim como tudo se torna superfície para ela.

Foto: © Gervane de Paula.
O artista pinta com diferentes materiais sobre diferentes materialidades. Transita entre estilos – do surrealismo à nova figuração –, gêneros – da paisagem ao político –, e técnicas – da colagem cubista à aguada. Gervane aproxima pintura e objeto – seja na via de fixar artefatos sobre a tela, ou na contramão, empregando-os como suporte pictórico –, quanto na confluência de estilos, tempos e espaços. Revela-nos a objetualidade das imagens de nossa cultura que podem ser continuamente reelaboradas, transgredidas, deslocadas.
Sua destreza revela-se, ainda, nas transições entre as zonas carregadas de matéria e as diluídas, entre as superfícies lisas e as perturbadas por seu gestual enérgico. Sua pintura resulta do prazer que transborda para o observador que se deleita, diverte-se e se intriga ao ser atingido por seu vibrante imaginário.

Foto: © Isabella Matheus.
Cada sala da exposição é demarcada por uma cor que irradia sob os pés dos visitantes. Os pisos e rodapés foram cobertos com material de cor sólida, delimitando cromaticamente os espaços e os núcleos temáticos da mostra. As cores, vermelho, verde e azul, reproduzem o sistema RGB, ulteriormente consideradas as cores primárias, aquelas que, misturadas, geram outras tonalidades e, somadas, originam a luz branca. Tal modelo ainda serve de base para sistemas de representação de imagens eletrônicas cuja materialidade dista daquela da pintura, linguagem central para Gervane, que também confecciona esculturas, objetos e instalações.

Foto: © Gervane de Paula.
ARTE, NÃO INVENTE

Foto: © Gervane de Paula.
Na sala central, onde pulsa o vermelho, observamos o agenciamento de Gervane no sistema artístico. Pinturas como Artista negro, galerista branca e Artista negro, curadoras brancas, ambas de 2018, falam não só da relação e percepção do artista pelo mercado – e vice-versa –, mas também sobre um sintoma que permanece vivo: o da espoliação e apropriação da força criadora de corpos subalternizados pela cultura dominante e seus agentes, assim como da fetichização de suas práticas. O artista denuncia, com ironia, práticas do sistema de arte contemporâneo que dão visibilidade a certos produtores a partir de sua classificação conceitual em uma categoria de exceção.
A escolha das obras não só referência um conjunto relevante da produção do artista, mas se torna um gesto – um aceno público – de autocrítica institucional. Afinal, a Pinacoteca não deixa de ser uma instituição majoritariamente branca que se beneficia da exibição de artistas racializados. Gervane pode até viver no Mato (Grosso), mas não é ingênuo. Reconhece, como posteriormente nos explicitou Paulo Nazareth, a sobredeterminação de seu corpo como imagem de um homem exótico. Isso pode até relegá-lo às margens da história da arte cosmopolita, mas basta olhar para sua produção para perceber sua inegável atualidade e alinhamento com as questões do campo da arte dos últimos cinco decênios.
Seu excelente manejo de referências extraídas e torcidas da tradição artística é prova de um olhar sofisticado, atento e compreensivo. Ele reelabora a tradição, ao tomar de empréstimo a iconografia de grandes mestres, como vemos em O Fuzilamento (1982), que revisita O Três de Maio em Madri (1814) de Goya, reelaborado, também, por Picasso na tela Massacre da Coreia (1951). A apropriação como forma de elogio, crítica e desdobramento de práticas que o antecederam, aparece também no seu uso das figuras encapuzadas de Philip Guston, em telas da década de 1980.
Gervane não dialoga apenas com os ídolos do passado, mas também com seus contemporâneos, indivíduos que se tornaram epítomes da arte brasileira recente, como Leonilson e Leda Catunda; além do colecionador Gilberto Chateaubriand. É possível encontrar, ainda, remissões a outros arautos da arte nacional, como Antonio Henrique Amaral, Antonio Dias e Hélio Oiticica. Gervane, nesse sentido, desponta como um elemento de ligação entre a pintura de matriz neo-expressionista e subjetiva da década de 1980 e a inclinação pop e política da Nova Figuração dos anos 1960, como deixa transparecer a tela Cenas da vida brasileira (2023).
Gervane não se fia somente na trama canônica da história da arte. Ele narra a sua própria…

Sem título, 1981-1985. Foto: © Gervane de Paula.
Todavia, Gervane não se fia somente na trama canônica da história da arte. Ele narra a sua própria e a inscreve na narrativa oficial, levando consigo os seus. Pinturas como Ateliê Livre (1978) e Dalva e o Ateliê Livre (1980-1990) narram o início de sua trajetória artística, valorizando, ainda, seus mestres e colegas, assim como o espaço que habita. Este, por sua vez, refulge nas telas da sala à esquerda, tomada pelo tom azul.
Ali, encontra-se um conjunto significante de pinturas que expressam o território geográfico de Gervane, tais como cenas cotidianas de brincadeiras, festividades; cenas de rua e paisagens – nas quais sempre se percebe o impacto da presença humana; além de naturezas mortas. Destacam-se, naquele ambiente, as cenas aquáticas da década de 1980, além dos materiais bibliográficos sobre Gervane, expressão de sua importância para a cena artística de sua região e dos poucos olhares “de fora” que se lançaram sobre suas obras.
À direita da sala central, delimitada pela cor vermelha, encontramos uma reunião de trabalhos proeminentemente políticos. Gervane faz da sua pintura um espaço à reflexão das urgências de seu próprio tempo e do espaço em que habita. Os trabalhos ali expostos denunciam a diversidade das formas de violência que perpassa nossa sociedade. Além da incontornável questão ambiental – afinal, ele reside em um Estado cuja natureza tem sido remodelada agressivamente pela indústria agropecuária –, o artista fala de problemas urbanos, como a violência policial e o tráfico de drogas.
A disputa territorial, contudo, não diz respeito apenas ao espaço físico, mas também simbólico. Afinal, Gervane está e contribui para os debates artísticos e políticos de nosso tempo. Arte, não invente (2014), trabalho presente na sala, lembra-nos que a citação e o revisionismo são alguns dos motores da prática contemporânea, sem deixar de apontar para a depreciação e fuzilamento da criatividade na atualidade.
ARTE É PRA QUEM NÃO TEM MEDO

Foto: © Gervane de Paula.
Como é bom viver no Mato Grosso, mais do que o título da mostra, torna-se uma espécie de mantra que reverbera na afirmação que o artista faz de suas escolhas no mundo. A frase, e suas variações, pontuam diversas obras, assim como o formato do Estado, após a divisão territorial que fundou o Mato Grosso do Sul, em 1979. Este conforma tanto os suportes da pintura, feitos sobre placas de madeira cortadas no formato de suas divisas – como nas duas versões de Mapa (2005 e 2016) –, quanto prolifera, como signo, em suas telas.
Sua individual na Pinacoteca de São Paulo, mesmo celebratória, revela os modos como o fascínio pelo exótico, pela figura de alteridade dentro de um sistema, encontra-se internalizada em políticas e discursos institucionais que, mesmo bem intencionados, contribuem para a manutenção de seu estatuto. Ainda que tenhamos nos esforçados para recuperar e valorizar as personagens relegadas à margem, ainda temos muito trabalho pela frente, inclusive no sentido de combater nossos próprios modelos e clichês discursivos.

Foto: © Gervane de Paula.
Enquanto as questões iniciais deste texto permanecem no campo especulativo, resta a certeza de que Gervane de Paula é um artista sem medo. Não teme a história, nem o esquecimento. Enfrenta a pintura e a política. Não treme, mas goza e faz rir. Gervane é um artista atento, que não se fecha em si, mas filtra o mundo pela sua subjetividade e nos convida ao mesmo exercício.
[1] A Fundação Cultural de Brasília (FCB) foi criada na nova Capital em 1961 para promover iniciativas artísticas. Em 1999, fundiu-se à Secretaria de Cultura do Distrito Federal.
[2] Conta-se que a inserção se deu por indicação de Paulo Herkenhoff ao jovem Marcos Lontra Costa, organizador da mostra, levando Gervane e Adir a ingressarem já próximo ao final da mostra.
[3] Conta-se que a inserção se deu por indicação de Paulo Herkenhoff ao jovem Marcos Lontra Costa, organizador da mostra, levando Gervane e Adir a ingressarem já próximo ao final da mostra.
André Torres é Mestre em Linguagens
Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ (2016) e
Doutor em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela PUC-Rio (2023).
GERVANE DE PAULA: COMO É BOM
VIVER EM MATO GROSSO • PINACOTECA
DE SÃO PAULO • 23/3/2023 A 1/9/2024