MOSTRA DE GEORG BASELITZ EXIBE SEIS PINTURAS HISTÓRICAS DOADAS PELO ARTISTA AO METROPOLITAN MUSEUM OF ART. FEITAS EM 1969, ESTÃO ENTRE AS PRIMEIRAS OBRAS EM QUE BASELITZ EMPREGOU A ESTRATÉGIA DE INVERSÃO, ABORDAGEM QUE CONTINUA A TER INTERESSE PARA ELE. AS PINTURAS MARCAM UM MOMENTO CRÍTICO NA CARREIRA DO ARTISTA, QUE BUSCOU ELIMINAR O RECORRENTE CONTEÚDO NARRATIVO E A EXPRESSÃO PARA SE CONCENTRAR NA PRÓPRIA PINTURA
Talvez um dia você ouça, por acaso, em uma roda de “conversa intelectual”, em um barzinho qualquer da vida, alguém erguer um pouco a voz acima dos outros presentes e dizer que o Neoexpressionismo morreu com o jovem Basquiat, em 1988. Você então se vira para a pessoa e diz: “O Neoexpressionismo não morreu, apenas está de ponta-cabeça!” Se a pessoa não entender a referência, ela provavelmente não conhece o artista alemão Georg Baselitz. O pintor, escultor e artista gráfico do pós-guerra Georg Baselitz, cujo nome verdadeiro é Hans-Georg Kern, nasceu em 23 de janeiro de 1938, em Deutschbaselitz, de onde vem o sobrenome que ele adotou. Ignorando a abstração, que vinha reinando soberana nas artes, Baselitz desenvolveu um estilo voraz, peculiar e bruto, usando de uma paleta intensificada e criando imagens provocadoras para repassar sentimentos e emoções de forma espontânea e crua. Junto com Joseph Beuys, Baselitz instituiu um revival do Expressionismo alemão, movimento que foi um grande desafeto dos nazistas, e iniciou uma série de trabalhos com uma estética agressiva e cáustica.

Elke, 1965. © Georg Baselitz
Artista controverso, foi expulso da escola de arte na então Alemanha Oriental. A Academia de Arte Visual e Aplicada em Weissensee alegou que o aluno “não tinha maturidade sociopolítica adequada” para a instituição. De 1957 a 1964, Baselitz estudou na Academia de Artes da Berlim Ocidental, onde obteve o título de mestre e onde teve como professor Hann Trier. Em 1961, divulgou um manifesto chamado Primeiro Pandemônio, e, em 1962, o Segundo Pandemônio. Chegou a ser bolsista da Villa Romana, em Florença, em 1965, onde conquistou o prêmio Villa Romana. O Círculo Cultural da Federação das Indústrias Alemãs também lhe concedeu uma bolsa, em 1968.

Die große Nacht im Eimer, 1963 © Georg Baselitz
Foi ainda na década de 1960 que Baselitz começou a distorcer cada vez mais suas figuras, investindo em uma deformidade conscientemente exagerada, com muitos traços, riscos e cores que deixavam seus retratos e personagens intencionalmente caricatas e monstruosos.
A crítica começa a se interessar por Baselitz em 1963, com a estreia da ultrajante pintura Die groβe Nacht im Eimer (algo como “Grande noite pelo ralo” ou “Grande noite perdida”), atualmente na coleção do Museu Ludwig, em Colônia. A obra, que não passou despercebida pelo judiciário alemão, acusando-o de “violação da moral pública”, trata-se de uma figura, provavelmente um garoto, segurando um grande e desproporcional falo. Há teorias que afirmam ser uma referência ou “ofensiva homenagem” ao dramaturgo alcoólatra irlandês Brendan Behan.

Portrait of Thordis Möller, 1970 © Georg Baselitz
A partir de 1969, Georg Baselitz iniciou uma série de pinturas que acabou se tornando a marca registrada dele e demarcou definitivamente a carreira: o artista começou a representar figuras, nus e paisagens de cabeça para baixo com o intuito de mostrar o desprezo dele pelas convenções: “É o melhor modo de libertar a representação do conteúdo!”. Mas há bem mais do que isso nesse ato: pintar as figuras de ponta-cabeça é desestruturar a perspectiva comum, é destruir o ponto de vista tradicional, é inverter, além da figura, o modo de encarar a arte, a beleza, a estética. O artista não perdeu o interesse por esse tema com o tempo e continuou a desenvolvê-lo e explorá-lo. O observador dessas obras precisa de concentração e tempo para absorver o máximo possível essa forma de representação nada convencional. Alguns colegas artistas o acusaram de apenas querer chamar atenção por meio de um “truque” de inverter as imagens, mas Baselitz diz que a ideia surgiu em uma época em que ele, de fato, não era percebido pelo mundo artístico e buscava um diferencial: “Pintar obras de cabeça para baixo é uma boa maneira de criar imagens diferentes das que já existem”. Esse ato se tornou seu triunfo, em uma carreira de mais de 60 anos.

Portrait of Elke I, 1969. © Georg Baselitz
Desprezando o conteúdo, que ele diz considerar irrelevante, Baselitz afirma que o interesse principal dele era a pintura em si. Ainda assim, sua arte é, desde o começo, figurativa, mesmo tendo iniciado a carreira de artista, como já afirmado, na época em que o abstracionismo ainda ditava as regras: “sempre odiei a arbitrariedade da teoria da pintura abstrata”. Em 1969, ele pintou, além de figuras humanas, alguns animais de cabeça para baixo. Contraditório, ele afirma que o tema não lhe era de muito interesse, mas, ainda assim, o fez: “Faço pintura de animais quando quero retratar algo sem importância, algo inconsequente, para não dizer, estúpido!”. No fundo, sabe-se que talvez o artista apenas esteja sendo provocador quando parece displicente com seus temas, descartando explicações metafísicas, mas o que interessa é que a arte foi executada e está ali, para ser observada da perspectiva incomum em que foi feita ou para causar torcicolos nos curiosos que tentam vê-la pelo ângulo comum.

Adler, 1977 © Georg Baselitz
Baselitz ajudou a recuperar para as artes, ou, sendo mais exato, para a pintura, o protagonismo da figura humana, com trabalhos em que compõem personagens perturbadores, abusando da quantidade de tinta e criando ásperas superfícies intencionalmente. É possível que algumas dessas obras sejam mais representações de emoções humanas do que dos entes em si, mas, mesmo quando o artista põe algum enfoque no ser, ele o deforma, como em seus quadros de 1977, Nu com três braços (Akt mit drei Armen) e Nu com três pernas (Dreibeiniger Akt), este último sobrepintado em chapa de linóleo. Quando Baselitz não usou deformações, nem por isso as obras deixaram de ser incomuns. Alguns retratos figurativos com modelos reais, pintados em 1969 e hoje pertencentes ao acervo do Metropolitan Museum of Art, são também complicados de absorver e têm aquela poética incômoda da inversão e o uso de cores intensas, que são a essência das obras do pintor.

Kahlschlag, 1970 © Georg Baselitz
O neoexpressionismo de Baselitz aborda temáticas violentas, em telas de grandes dimensões, grosseiramente pintadas com rapidez e intensidade. O grotesco vira tema de arte em suas ousadas obras, que têm a poética do esteticamente desagradável, gerando um desconforto no observador. Os críticos classificavam na época o movimento neoexpressionista como “arte ruim”. Obviamente, era um ruim intencional, que causava ranhuras com golpes de cinzel nos conceitos de estética e abalava a filosofia da arte. Assim como seus predecessores do expressionismo, Baselitz traz para as telas dele as marcas dos traumas que a guerra causou. Em 45, o artista condena eternamente seus personagens pintados de ponta-cabeça a relembrarem consigo o bombardeio de Dresden, em 1945, do qual ele foi testemunha. Essa obra consiste em vinte quadros grandes, de rostos distorcidos de mulheres (de cabeça para baixo) com semblantes aterrorizados, como vítimas de um bombardeio.

Fingermalerai-Akt, 1972
© Georg Baselitz
A natureza dupla do trabalho de Baselitz é a linguagem da oposição, dos contrastes: seu pincel constrói e destrói simultaneamente a figura. Para fazer a leitura de imagens de suas obras, é preciso largar as convenções, pois, em primeiro plano, não está a figura ou a paisagem, mas a confusão, a análise representativa e, acima de tudo, a reflexão acerca da composição. A fase de “ponta-cabeça” nunca acabou de fato. Mesmo quando o artista mudou de ares entre o final da década de 1980 e os anos 2010, ele revisitava seus antigos trabalhos. Nesse intervalo de décadas, vieram nus, autorretratos e os chamados “remixes” de suas obras do começo da carreira. Houve momentos de polêmicas e controvérsias ao longo do tempo, como quando em 1980, juntamente com Anselm Kiefer, ocorreu certo alvoroço devido a alguns de seus trabalhos, expostos na Bienal de Veneza, conterem irônicas referências nazistas.

17th Panel of 45, 1989 © Georg Baselitz
Atualmente, com mais de 80 anos de idade, o artista tem recebido constantes retrospectivas em museus e galerias que o homenageiam e ele faz questão de ir a algumas e ainda tem a gentileza de interagir com o público e dialogar sobre as obras. Baselitz foi, aliás, o primeiro artista vivo a ter uma exposição-retrospectiva na Gallerie dell’Accademia, em Veneza. O trabalho dele veio a influenciar a geração anos 1980 de jovens neoexpressionistas alemães, a chamada “Juventude Selvagem” (Neuen Wilder) e ainda hoje sua influência é notável, principalmente na pintura.
A arte de Baselitz “envelheceu” com dignidade, pois suas obras não perderam nada em personalidade, como provam, por exemplo, os personagens de pescoço alongado de Oberon, de 2005, ou sua provocadora Suíte, de 2008, Mrs. Lenin and the Nigthingale, onde, por meio da repetição composicional, ele ironiza Lenin e Stalin.
Ao que se sabe, Georg Baselitz ainda está em atividade, porém as limitações da idade o obrigaram a inovar: “as telas são grandes e não as pinto mais na vertical, eu as coloco no chão”. Essa mudança não deve fazer muita diferença para quem criou todo um mundo artístico de cabeça para baixo.

Oberon, 2005 © Georg Baselitz
GEORG BASELITZ: TURNO PIVOTAL
MET FIFTH AVENUE • NOVA YORK
28/1 A 18/7/2021
Edvaldo Carvalho é professor de arte na rede estadual de
ensino do Estado do Amapá e MBA em História da Arte