Conjunto de Esculturas, 1988. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg

DASARTES 121 /

FRANS KRAJCBERG

MOSTRA ANTOLÓGICA EM HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE FRANS KRAJCBERG, NO MuBE, SÃO PAULO, TRAZ A UNIÃO ENTRE ARTE, NATUREZA E ARQUITETURA E MARCA O INÍCIO DOS TRABALHOS DE PRESERVAÇÃO E DINAMIZAÇÃO DO ACERVO E DO SÍTIO NATURA, DOADOS PELO ARTISTA AO GOVERNO DA BAHIA

“A minha preocupação é penetrar mais na natureza. Há artistas que se aproximam da máquina; eu quero a natureza, quero dominar a natureza. Criar com a natureza, assim como outros estão querendo criar com a mecânica. Não procuro a paisagem, mas o material. Não copio a natureza.”

Frans Krajcberg, 1976

 

 

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg

Diante da catástrofe socioambiental e da barbárie sociopolítica vivenciadas cotidianamente, chegou o momento certo de compreender em magnitude o legado do artista Frans Krajcberg (Kozienice, Polônia, 1921 – Rio de Janeiro, Brasil, 2017) – judeu polonês de origem e brasileiro por escolha. Se, em 2021, não nos foi permitido celebrar seu centenário por razões mais do que conhecidas, agora, em um esforço coletivo, propomos uma mostra antológica e histórica, capaz de difundir seu legado monumental de caráter estético, político e ambiental. E nada melhor do que confrontá-lo no espaço emblemático do Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), projetado por Paulo Mendes da Rocha.

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcber

Ao ter em perspectiva a atuação de nosso maior artista ecólogo, para além de seu projeto estético, sua obra foi eminentemente ética, como um dia escreveu o crítico Frederico Morais – responsável por um texto essencial acerca da produção do artista – e, da mesma forma, anos depois, reiterou o cineasta Walter Salles, realizador que se debruçou sobre a produção do artista em dois documentários distintos.

Krajcberg lutou no front pelo exército russo durante a Segunda Guerra e perdeu toda a família em campos de concentração. Reconheceu como poucos o ethos da destruição e da morte, tangível em toda a sua produção artística, esta, aliás, marcada pelo antagonismo premente entre a vida e a morte.

O Brasil, país para o qual imigrou na segunda metade dos anos 1940, foi o lugar escolhido para renascer e fazer florescer sua prática artística – foi onde conseguiu escapar do mundo físico sombrio do pós-guerra, embora tivesse guardado em seu âmago os traumas da guerra e do Holocausto. Paradoxalmente, a memória do horror foi a força motriz de sua sobrevivência e reinvenção. Em certo sentido, foi aqui que ele ganhou outra adjetivação: passou a ser o artista errante, que conheceu como poucos a paisagem, a terra e a flora brasileiras em suas várias formações e em seus climas diversos. Enfim, em Nova Viçosa (BA), em seu sítio cuidado e construído aos poucos, ele encontrou sua redenção em meio ao ambiente da Mata Atlântica. Tornou-se, por conseguinte, o artista da casa na árvore, em permanente relação quase que simbiótica com a natureza.

Conjunto de Esculturas, 1988. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg

Desse modo, é da escala da vivência arquitetônica e ambiental que esta mostra quer contar. É do abrigo e aconchego da natureza, da própria arquitetura que dela nasce e cria espaços que permeiam as formas, estruturas, materiais, texturas e cores que o artista nos legou. Trata-se de um universo criativo, que partiu da composição bidimensional da pintura e seguiu incessantemente gravando os contornos do mundo cada vez mais dissociados da figura humana, ganhando força tridimensional e rompendo a escala, o equilíbrio e as formas da tradição escultórica. Em seu trabalho, há um ímpeto permanente de ascensão selvagem, força compositiva e encontro direto e cru com a natureza. Uma violência que se faz necessária.

Como escrevi em outro momento, Krajcberg, à sua maneira, respondeu à exuberância e à diversidade do ambiente local, por vezes preservado, mas em risco, ora denunciando as agressões ao meio ambiente, ora transmutando os elementos de lá extraídos – colocando-o em polo oposto às tendências majoritárias das vanguardas locais que constituíram o oficialismo da arte brasileira na segunda metade do século 20.

É fato também que o artista nos defrontou com a experiência da época geológica do Antropoceno, em um exercício permanente de resistência e invenção diante da destruição de não mais retorno. Como muitos teóricos, filósofos, cientistas políticos e ambientalistas aludiram nos últimos tempos, estamos em uma luta de nós contra nós mesmos. Não há o que culpabilizar para além. Na verdade, é chegada a hora de agir: é o início de uma obrigação moral pela sobrevivência, colocando-nos diante de uma arquitetura da natureza, sábia e resiliente.

É essa arquitetura então que gostaríamos de enunciar. É a arqué, o fundamento de tudo, os elementos básicos de constituição da natureza vital que Frans Krajcberg nos conclama a olhar, contribuindo para uma nova consciência universal em prol da natureza, de seu uso sustentável e, enfim, de nossa sobrevivência. Sua produção artística também grita: ainda há (algum) tempo.

Sem título, 1970. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

 

SOBRE UM CAMINHO PELA OBRA DE FRANS KRAJCBERG

O desafio que se coloca nesta exposição de tamanha abrangência é o de como pensar o legado artístico de Krajcberg à luz de um posicionamento ético e estético, sem perder de vista a própria história da arte.  Nesse sentido, surgem dois pontos prementes: uma radicalidade plástica que comparece no diálogo franco com a natureza bruta, viva ou em destruição, e uma exuberância da monumentalidade, que faz explodirem as escalas e os suportes tradicionais da arte. Em uníssono, esses pontos são um grito que rompe o trato do plano pictórico e desconstrói a razão doméstica da escultura.

É esse movimento de crescente transformação e elevação que esta exposição sublinha. Para tanto, quatro temas conceituais, ancorados na história, configuram a seleção de obras e suas aproximações formais. Eles se encontram distribuídos pela mostra e a ela integrados, servindo de norte para o espectador que se encoraja na grande floresta arquitetônica do artista.

 

GESTAÇÃO, PENSAMENTO E TRAÇO

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

São três conceitos que orbitam as obras seminais da trajetória do artista no Brasil e sua inserção institucional. Os trabalhos evocam uma boa relação dicotômica entre abstração e figuração, bi e tridimensionalidade, gesto e estrutura, conceito e matéria. As práticas pictóricas e gráficas permearam todos os seus anos de produção, em seu labor cotidiano de observação do mundo.

 

ARTE, AMBIENTE E PRESENÇA

 

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

Corresponde a uma tomada de consciência quanto ao ambiente que Krajcberg escolheu para estar e vivenciar. Essa tríade de palavras-chave pode ser percebida nos próprios trabalhos, que sugerem uma movimentação de escala e ganham qualidade escultórica na medida em que são agregados materiais diversos, extraídos dos substratos da terra e dos resquícios da natureza. O artista desenvolve uma produção escultórica em que a matéria-prima é o movimento sinuoso das madeiras, das raízes, dos retalhos, etc. Aqui, vemos um caminho de ascensão e crescimento, além de um real acolhimento do que a natureza oferece. O que parecia refugo, sobra ou sinal de um fim de ciclo é, na verdade, a potência primeira da obra de arte. Como o crítico Jayme Maurício escreveu em 1976, no catálogo da exposição do artista na Galeria Arte Global, “Frans Krajcberg é como vento – espalha-se entre a selva, o mar e o sertão do continente brasileiro”.

 

ARQUITETURA, ECOLOGIA E VIDA

Sem título. Vista da exposição no MuBE.
Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg

Neste tema, o encontro simbólico entre ecologia e arte ganha sua máxima força e encoraja uma explosão escalar. Está representado por peças por vezes sinuosas, ou lânguidas, monumentais, de cores fortes. A escultura é ampliada e faz contraponto ao espaço normatizado e hierarquizado da vida urbana. Os conjuntos de “Bailarinas”, “Coqueiros” e “Gordinhos” representam bem essa produção, assim como a obra icônica Flor do Mangue. Os trabalhos ambientais em cipó, vistos aqui de maneira inédita, apesar de sua condição efêmera, são exemplos bem-acabados em que a técnica ancestral, os valores radicais da escultura e a consciência ambiental se encontram. Também não podemos esquecer os troncos retrabalhados, esculpidos e pintados, que formam grandes figuras totêmicas resistentes ao ambiente dito civilizado.

 

RECORDAÇÃO, LUTA E RESISTÊNCIA

Sem título. Vista da exposição no MuBE. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg. Imagens: © Frans Krajcberg. Cortesia MuBE

A denúncia e o engajamento na luta socioambiental colocam o artista na “linha de frente” da defesa do meio ambiente. Destaca-se o vasto repertório de fotografias que retratam a ação violenta do homem contra a riqueza natural. Aponta-se em sua arte, muito além da denúncia, uma vontade civilizatória que comunga com uma vida sustentável, o que se vê refletido em seu vasto repertório fotográfico e em seu engajamento na produção escultórica mais recente. As próprias carcaças de baleias, tratadas e apresentadas de forma intacta por ele, mostram indícios de uma sobrevida, ao mesmo tempo que são uma recordação física e traumática de uma morte. A obra de Frans Krajcberg sublinha a fragilidade da natureza, em contraponto à memória do artista e à resistência material dessa mesma natureza.

Diego Matos é curador-chefe do
Museu Brasileiro de Escultura e
Ecologia (MuBE)

FRANS KRAJCBERG: POR UMA
ARQUITETURA DA NATUREZA
• MuBE • SÃO PAULO •
7/5 A 31/7/2022

 

 

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