A arte de Gonzalez-Torres pode ser lida como uma crítica ao conservadorismo social, atitudes homofóbicas e um alerta sobre a ascensão do conservadorismo de direita. Suas obras desafiam o espectador por meio da aplicação de códigos e estratégias clandestinas, como pelo uso sutil da linguagem em seus títulos, que em alguns casos se torna uma espécie de senha, ou pela recorrência de objetos empilhados, que, como um símbolo de igualdade e de “amantes perfeitos”, podem simultaneamente aludir ao amor homossexual e fugir da censura.
Doces, pilhas de papel, relógios, espelhos, cortinas e outdoors são alguns dos materiais que Felix Gonzalez-Torres costuma usar em suas poderosas obras e poéticas que desafiam os espectadores, encorajando-os a construir sua própria narrativa. A exposição As Políticas de Relação reúne quarenta de suas obras no MACBA e explora uma nova interpretação da obra de Gonzalez-Torres, destacando uma leitura política com ênfase na sua relação com a localização desta exposição em Barcelona. Esse novo projeto curatorial coloca a obra de Gonzalez-Torres em relação ao discurso pós-colonial com suas muitas questões pessoais, enquanto também sublinha a influência decisiva de seu trabalho na estética queer.

Untitled (Perfect Lovers), 1987–90. © Felix Gonzalez-Torres. Fotos: Courtesy of the Felix Gonzalez-Torres Foundation.
UMA LEITURA POLÍTICA DE SUA OBRA
A primeira sala da mostra aborda a ampla política na prática de Gonzalez-Torres no que se refere às ideias de autoridade de julgamento e memória/amnésia. As obras estão ligadas por meio de referências oblíquas a autoritárias ou cultura estabelecida, ao fascismo e conservadorismo social, bem como a repressão à comunidade homossexual e atitudes homofóbicas que poderiam se referir aos EUA durante a crise da AIDS, nos anos 1980 e 1990, mas que também pode ser conectado à Espanha e uma repressão equivalente durante a ditadura do Regime de Franco. Existe uma ligação visual e ideológica imediata através das cores vermelho, preto e branco. Essa seleção deixa claro que o projeto de Gonzalez-Torres era profundamente antifascista. Enquanto as peças poderiam fazer referência a uma era particular da política dos Estados Unidos, no cerne da obra de Gonzalez-Torres estava sua intenção de ser atemporal e maleável com o contexto e, portanto, elas se aplicam igualmente às recentes histórias evocando os anos de polarização política americana. No entanto, em Barcelona, elas podem sugerir uma interpretação diferente: a da história da República Espanhola, o apoio de Barcelona a esse governo legítimo durante a Guerra Civil Espanhola e as repercussões durante os anos subsequentes de ditadura, a amnésia da Espanha sobre a irresolução de seu próprio passado fascista e ressonâncias contemporâneas na ameaça da extrema direita e do ressurgimento do populismo. O próprio tempo, conforme referenciado por algumas das obras, também pode ser visto como político aqui, até porque, desde Franco, os relógios da Espanha estão alinhados com os da Alemanha em vez de seu fuso horário geograficamente padronizado.

Untitled, (Blue Mirror), 1990.
A NOÇÃO DE CASAL
Os trabalhos da segunda sala apresentam ideias de acoplamento, toque, duplicação, igualdade e equilíbrio. Eles demonstram a importância de Gonzalez-Torres em fornecer uma linguagem sutil e, muitas vezes, intencionalmente enigmática da cultura queer combinando simultaneamente com imagens da ideia mais ampla de igualdade. Eles também mostram como ele reformulou o vocabulário do minimalismo e da arte conceitual como veículos de conteúdo afetivo, uma de suas contribuições mais importantes para novas formas artísticas. Este, no entanto, é também um de seus mais políticos gestos, visto que reconheceu que essa abordagem lhe permitiria falar sobre homossexualidade, especificamente para abordar o desejo homossexual, amor e vulnerabilidade, enquanto ilude a extrema-direita e os conservadores e seus esforços para censurar tal conteúdo. Ao mesmo tempo, o caráter aberto da sua linguagem torna seu trabalho acessível a todos os espectadores; abrange a especificidade da identidade individual ao mesmo tempo que oferece uma imagem de equivalência, comunidade e bens comuns.
A cor azul muitas vezes representa amor ou beleza em seu trabalho, bem como medo, e a imagem dos anéis pode ser lida como alianças de casamento, referenciando o uso do círculo e da figura 8 ou ∞ (infinito) como símbolos da eternidade ou amor duradouro. Esse tema, junto com o de dois objetos circulares idênticos (como espelhos, relógios, anéis de metal ou lâmpadas) e o uso de simetria, ocorre frequentemente na obra de Gonzalez-Torres como um símbolo de “amantes perfeitos”. Muitas das obras de Gonzalez-Torres fazem referência à crise da AIDS, à fragilidade do corpo físico e à presença eterna de nosso efeito no mundo, engajando-se em uma nova reformulação da estética de Minimalismo – por exemplo, transformando uma grade minimalista em uma reflexão sobre saúde, vida e morte, ou representando a presença e ausência física ou material.

Untitled (March 5th) #2, 1991. © Felix Gonzalez-Torres.

Untitled, (Orpheus, Twice), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.

Untitled, 1990. Morte por arma de fogo. Listados em cada folha estão os nomes de 460 indivíduos mortos por arma de fogo nos Estados Unidos durante a semana de 1 a 7 de maio de 1989. © Felix Gonzalez-Torres.
O EXISTENCIAL
Organizada em torno de algumas das peças de maior orientação existencial de Gonzalez-Torres, que, no entanto, têm um conteúdo político subjacente e uma ressonância contemporânea poderosa, as obras na terceira sala se envolvem com temas de viagem, emigração, exílio, turismo e fuga/liberdade. São imagens de primeiro plano da água, do céu e praias, que funcionam como metáforas poéticas expansivas na obra de Gonzalez-Torres. Na Espanha, historicamente, durante a era da ditadura, viagens e turismo foram cooptados como parte da política narrativa e a identidade construída do Estado. Hoje se tornaram um grande segmento da economia com impacto na própria existência de algumas comunidades e na qualidade de vida em cidades como Barcelona. Vários dos trabalhos manifestam ativamente a ideia de dispersão, com referência a pessoas, mas também na dispersão dos componentes físicos da obra e, portanto, em seu aspecto “viral”. Além disso, no trabalho de Gonzalez-Torres, o tema das viagens, resume o que a curadora Nancy Spector chamou de “nomadismo da mente”. Aqui, as obras estão ligadas por meio de sua gama tonal de branco, azul e cinza, e sua relativa falta de conteúdo baseado em imagem ou foco em um padrão geral, dando ao visitante espaço para refletir.
Embora mantendo uma ambiguidade poética contemplativa, as obras, no entanto, incorporam o confronto com a mortalidade e uma reflexão sobre a própria existência.

Untitled (For White Columns), 1990.

Untitled (Wawannaisa), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.
PATRIOTISMO E MILITARISMO
Essa seleção de trabalhos examina as ideias de patriotismo, militarismo, machismo e desejo homoerótico, e como a nacionalidade de um povo também está enraizada em seus monumentos. A habilidade, para muitos dos trabalhos de Gonzalez-Torres, para não ter uma forma singular, manifesta-se em como ele contestou a ideia fixa de história. Aqui, certas obras sugerem ideias de atração (erótica) por homens uniformizados, especificamente dentro do contexto militar. Em sua Cuba natal e na Espanha, bem como em toda a América Latina, tais obras também evocam a ditadura e uma série de emoções complexas e profundamente contraditórias: do medo inspirado pelo autoritarismo e perseguição à presença, às vezes simultânea, de admiração por um líder forte e poderoso, especialmente entre a direita política. As obras, e sua justaposição, jogam com o erotismo, enquanto enfatizam como o patriotismo e o militarismo podem ser manipulados para desviar a atenção de problemas sociais mais agudos, como a crise da AIDS. Essas obras prescientes também evocam o contexto de protestos recentes e apelos para a remoção dos monumentos coloniais, patriarcais e hegemônicos, como durante o movimento Black Lives Matter. Essas peças reforçam a atual relevância das obras de Gonzalez-Torres em nosso tempo.

Untitled (Go-go dancing platform), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.
Felix Gonzalez-Torres nasceu em Guáimaro, Cuba, em 1957. Ainda criança, em 1971, ele e sua irmã Gloria foram enviados de Cuba para Madri. Pouco tempo depois, os dois viajaram para se juntar a um tio em Porto Rico. Lá, Gonzalez-Torres começou a estudar arte, continuando depois seus estudos em Nova York na Pratt Institute, em Brooklyn. Em 1987, juntou-se ao Group Material, um coletivo de artistas preocupado com questões sociais e aderindo aos princípios de ativismo durante a emergência do HIV, um período que também influenciou seu trabalho. Em 1990, ele realizou sua primeira exposição na Galeria Andrea Rosen, em Nova York. Junto com David Zwirner, a Andrea Rosen Gallery continua a representar o artista até hoje. Em 1991, ele participou da Bienal do Whitney Museum, em Nova York, tanto como artista individual quanto como participante de Group Material. Em 1995, o Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, dedicou uma extensa exposição à sua obra, seguido de uma exposição itinerante do Guggenheim, New York (com curadoria de Nancy Spector), e depois em um terceiro local no Musée d’Art Moderne de la Ville, de Paris.
González-Torres morreu de complicações relacionadas à AIDS no dia 9 de janeiro de 1996, em Miami, cinco anos após a morte de seu parceiro Ross Laycock. Em 2007, ele foi postumamente escolhido para representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza. Em 2020, a ARCO Art Fair substituiu seus país convidado habitual com uma homenagem a Felix Gonzalez-Torres.

Untitled (Para un hombre en uniforme), 1991. © Felix Gonzalez-Torres
Tanya Barson é curadora chefe do Museu de Arte de Barcelona (MACBA).
FELIX GONZALEZ-TORRES: THE POLITICS OF RELATION •
MACBA • BARCELONA • 26/3 A 12/9/2021