Afresco, 2020 (Detalhe).

DASARTES 101 /

EDU DE BARROS

O JOVEM ARTISTA CARIOCA EDU DE BARROS TEM EM SUA PRÁTICA MULTIPLA E VISUALMENTE ENVOLVENTE, FONTES DO SIMBOLISMO CRISTÃO E ESOTÉRICO. SUAS PINTURAS FIGURATIVAS EM GRANDE ESCALA E INSTALAÇÕES SÃO REPLETAS DE AMBIGÜIDADE COM PITADAS DE IRONIA SOBRE FENÔMENOS CULTURAIS E POLÍTICOS

 

Sem título, 2017. Cortesia Sé Galeria. Foto: Guigo Sorbello.

“Repleto do Espírito Santo, Jesus voltou do Rio Jordão, e era conduzido pelo Espírito através do deserto. Aí ele foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4, 1-2). Para iniciar este texto, abro o armário para recorrer a uma Bíblia já empoeirada pela falta de manejo através dos anos. Mas, pensar nos quarenta dias no deserto do Cristo, foi quase inevitável ao me deparar com a quarentena do artista Edu de Barros.

4 cavalos, 2020. Cortesia Sé Galeria. Foto: Guigo Sorbello.

Formado em Design pela PUC-Rio, Edu vê na arte mais do que um ofício, uma religião, palavra aqui não tomada apenas como metáfora para um fazer intenso e devoto. Conhecido como “profeta”, Edu é um dos fundadores da chamada Anoiva, a Igreja do Reino da Arte, entidade criada por artistas que acreditam em seu processo como uma maneira de acessar o divino. Parte indissociável de seu trabalho, elementos da religiosidade, sobretudo judaico-cristã, fazem-se presentes em sua produção. Sua mais recente exposição, Cropped, exemplifica bem isso: estavam na Sé Galeria obras que utilizam de toda uma sorte de elementos sacros, sem, no entanto, deixarem de lançar mão de uma fina dose de ironia. Se biblicamente o som das trombetas anunciam eventos apocalípticos, a galeria recebia trombetas verdes e amarelas que, nos últimos anos, parecem anunciar o fim dos tempos no país; assim como uma série de esculturas formadas a partir da fusão de ex-votos, peças de cera comumente usadas em promessas e agradecimentos pela graça recebida. O principal projeto de Edu durante a pandemia, no entanto, ganhava destaque na exposição. O artista saiu da Favela da Rocinha, onde mora, para ficar duas semanas em São Paulo, onde faria uma espécie de retiro para sua individual. Uma vez na cidade, instaurou-se o apocalipse: o avanço da pandemia de COVID-19 fechou a galeria, cancelou a abertura da mostra e fez os ônibus interestaduais pararem. Edu não tinha como voltar. Foi então que, passadas as duas semanas previstas, o artista, literalmente, mudou-se para a galeria. Dormiu em colchonetes no segundo andar e tomou banho de balde (e água fria) na área externa. Ali, em confinamento quase monástico, pintou. O projeto, que originalmente levaria duas semanas, ampliou-se. Ao longo dos dias, transmitia ao vivo seu processo de imersão criativa. Em Afresco, que tomava paredes e teto da galeria, objetos sacros dividem espaço com cadeiras de bares, pombas (da paz?) se misturam a cachorros vira-latas, querubins se relacionam com todo tipo de gente, corpos, os mais variados, os mais marginalizados. Em tempos de novo extremismo religioso, Edu parece profetizar que nenhum paraíso pode existir sem que haja uma roda de bar e garrafas de cerveja aos montes.

Afresco, 2020. Cortesia Sé Galeria. Foto: Guigo Sorbello.

A obra Afresco atualmente faz parte da Artissima Fair XYZ, cujas obras podem ser vistas pelo site xyz.artissima.art. Outra obra de Edu, um arco-íris (símbolo bíblico da aliança divina com a humanidade e também da comunidade LGBTQIA+) feito de cadeiras de bar, ganha destaque no último videoclipe da cantora Ludmilla, “Rainha da Favela”, em que a cantora se reúne para uma ceia com outras funkeiras que antecederam seu trabalho.

Menino do Rio, 2017. Cortesia Sé Galeria. Foto: Edu de Barros.

Tornado I, 2020. Cortesia Sé Galeria. Foto: Edu de Barros.

Cabum, 2020. Cortesia Sé Galeria. Foto: Edu de Barros.

“Jesus voltou para a Galileia, com a força do espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza” (Lc 4, 14).

Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural.
Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em
História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual
foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural

Compartilhar:

Confira outras matérias

Reflexo

Carmela Gross

Quando eu fiz a primeira ESCADA (a de 1968), aquilo era quase um jogo. A escada estava lá. Eu só …

Do mundo

PINO PASCALI

Nascido em Bari – no extremo Sul da Itália, em 1935, Pino Pascali se mudou para Roma – onde frequentou …

Flashback

MARÍA BLANCHARD

María Blanchard nasceu no dia 8 de março em Santander, em uma família da nova burguesia da cidade. Filha de …

Alto relevo

GERVANE DE PAULA

Gervane de Paula, que só agora recebeu uma individual em uma prestigiada instituição paulista, a Pinacoteca de São Paulo, debutou …

Do mundo

ANTONI TÀPIES

Há 100 anos nascia Antoni Tàpies, lendário artista catalão que impulsionou a vanguarda europeia do século 20 graças à sua …

Flashback

MARY CASSATT

A história da arte é sempre viva. Ela muda de tempos em tempos. Artistas, temas e técnicas voltam ao debate, …

Reflexo

MARCELA CANTUÁRIA

 

Em 1° Salão Latino-americano y Caribeño de Artes / Salão das Mulheres (depois de Willem van Haetch), estabeleci um posicionamento …

Capa

Bienal de Veneza

Quando o tema da Bienal de Veneza foi anunciado, confesso que fiquei desanimada: Estrangeiros em qualquer lugar (somos todos estrangeiros). …

Alto relevo

Francis Bacon

Poucos pintores do século 20 se opuseram de forma tão marcada às interpretações de suas telas e, no entanto, tiveram …

Entrevista

Carlos Cruz-Diez

Esculturas e pinturas que mudam de acordo com os movimentos do espectador são a marca registrada de Cruz-Diez, artista venezuelano …

Matéria de capa

KATHARINA GROSSE

COR, RUÍNA E UTOPIA
O Staatliche Museen zu Berlin, gigantesca instituição cultural alemã, traria entre abril e outubro de 2020 a …

Destaque

CECILIA VICUÑA

Cecilia Vicuña, que nasceu em Santiago, Chile, em 1948, vive e trabalha em Nova York há quarenta anos. Recebeu em …

Do mundo

ROBERT INDIANA

“Minha arte é como um mergulho de alta disciplina – um voo alto, simultâneo e policromático, uma exaltação do verbal-visual… …

Reflexo

JOSÉ BECHARA

O artista constrói espaços geométricos que oscilam entre o rigor formal e ocorrências randômicas. Aprofundando-se na sua técnica de oxidação, …

Destaque

YOKO ONO

1933-1945

Yoko Ono nasceu em 18 de fevereiro de 1933, em Tóquio. Passou a maior parte de sua infância no Japão, …