
Sem título, década de 1960-1984. Foto: Eduardo Ortega.
Em 14 de maio, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) abriu a exposição Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo. Estão reunidas no museu 119 peças de Conceição, escultora de origem indígena, cuja obra e vida ainda são bastante desconhecidas. A pesquisa para a exposição foi realizada ao longo de um ano pelo Brasil, muito embora apenas duas instituições culturais no país, o Museu Afro Brasil e o Itaú Cultural, tenham obras da artista em seus acervos. A exposição foi montada sob a curadoria de Fernando Oliva e Amanda Carneiro.
Além da mostra, que estará aberta ao público até janeiro de 2022, também foi elaborado um catálogo bilíngue (português e inglês), com as 119 obras reproduzidas em quatro cores, uma entrevista realizada nos anos 1970 com a artista, pela pesquisadora Aline Figueiredo, o texto inédito Uma artista Kaingang, escrito pela pesquisadora indígena Naine Terena, e outros textos ainda. É o primeiro livro dedicado à obra de Conceição dos Bugres, e a primeira exposição com essa dimensão e quantidade de peças reunidas.

Sem título, década de 1960-1984.
Foto: Eduardo Ortega.
Nascida Conceição Freitas da Silva, em 1914, em Povinho de Santiago, no Rio Grande do Sul, com apenas seis anos de idade Conceição migrou para Campo Grande, atual Mato Grosso do Sul, devido à perseguição aos índios no Sul, no início do século 20. No Centro-Oeste, Conceição muito provavelmente conviveu com índios das etnias Terena e Guarani, mas, apesar de ter sido criada em uma família indígena, não há documentos suficientes que possam comprovar isso.
Como muitos outros artistas indígenas (e artistas populares, artistas mulheres, artistas negros), a obra de Conceição sofreu o já conhecido processo de apagamento da história “oficial” da arte brasileira. Ao fazer uma pesquisa para escrever este texto, encontrei Poética dos Bugres, uma incursão sobre arte, identidade e o outro, a dissertação de mestrado de Isabella Banducci Amizo, publicada em 2018, e o catálogo da exposição Conceição dos Bugres, o índio na estética mínima de Conceição, que ocorreu em 2017, em São Paulo, na galeria Estação. Mas não há outras publicações disponíveis sobre ela.
Conceição teve um reconhecimento parcial de sua arte já no fim da vida. Falecida em 1984, aos 70 anos, ela se tornou uma das artistas mais importantes do Mato Grosso do Sul, somente em meados dos anos 1960. Isso só foi possível devido à 1ª Exposição de Pintura dos Artistas Mato-grossenses (1966), realizada na Rádio Clube de Campo Grande, e graças aos esforços da curadora Aline Figueiredo e do artista Humberto Espíndola, que lideraram o movimento. Hilton Silva, filho de Conceição, também participou da exposição, que no ano seguinte deu origem à Associação Matogrossense de Arte (1967).

Sem título, cerca de 1970. Foto: Eduardo Ortega.
No entanto, as obras de Conceição ainda hoje não ocupam a grande maioria das instituições culturais no Brasil. Essa é uma questão bastante relevante para pensar a preservação de Conceição na história da arte brasileira. Pois, se as obras e os documentos sobre a vida da artista não estão presentes nesses espaços, e acessíveis ao público e aos pesquisadores, a obra se torna virtualmente inexistente.
Conceição era autodidata e começou a criar seus “bugres” nos anos 1960. Na já citada entrevista que ela deu a Aline Figueiredo, em 1979, Conceição contou que certa vez viu uma cepa de mandioca, que tinha cara de gente: “pensei em fazer uma pessoa e fiz. Aí a mandioca foi secando e foi ficando com uma cara de velha. Gostei muito”” Desde então, a artista recolhia tocos de madeira que encontrava na floresta e, usando uma machadinha ou um facão, dava forma às estruturas, que ficaram popularmente conhecidas como “bugres” ou “bugrinhos”.

Sem título. Foto: Eduardo Ortega.
É importante entender a origem do termo “bugre”, pois, embora ele componha o nome à própria artista, sua definição mais imediata tem caráter pejorativo: indígena rude, violento, incivilizado. Pode se referir, ainda, à mistura do índio com o branco. Contudo, “dada a origem da artista, é difícil desconsiderar o significado de ‘índio perseguido’ pelos ‘bugreiros’, personagens da formação cultural sulista”, como aponta Miguel Chaia no catálogo da exposição de 2017. Se os bugreiros formavam milícias particulares para perseguirem e matarem os índios da região em que instalavam sua colônia, em Conceição, o termo “bugre” deixa evidente esse passado violento e, ao mesmo tempo, enquanto apropriação, reafirma a força de uma identidade indígena a ser valorizada.

Sem título, década de 1960-1984. Foto: Eduardo Ortega.
Essas esculturas aparentemente simples, talhadas em madeira bruta, carregam em si uma complexidade sutil. Conceição usava peças únicas de madeira, por isso seus bugres têm diferentes tamanhos. Como em um pedido de licença para criar suas figuras a partir daqueles fragmentos, ela talhava a madeira seguindo suas formas naturais. Depois de encontrar a matéria-prima, com poucas ferramentas e poucos golpes a artista desenhava olhos, boca, pés, formando um corpo. Alguns detalhes, como os cabelos e os olhos, eram pintados com tinta preta. Depois de prontas, Conceição “vestia” as peças com cera de abelha.

Sem título, década de 1960-1984. Foto: Eduardo Ortega.
Os bugres criados pela artista nasceram de um processo de repetição, que durou mais de 30 anos. Com uma evidente semelhança entre si, as peças são, ao mesmo tempo, fartas de detalhes que as diversificam. As 119 peças apresentadas na exposição estão sobre uma mesma bancada, onde é possível ter uma visão mais geral (e privilegiada) da obra de Conceição. Com forte conexão à tradição artesanal, a maior parte das obras não têm título sequer registro de data – e também por isso parecem formar um só corpo.
Ao olhar todas as peças juntas nesse mesmo espaço, vemos bugrinhos de 10 cm e totens de mais de um metro de altura. Percebemos os diferentes tons de pele, os cabelos lisos e retos de algumas peças, olhares que apontam para várias direções, braços que se abrem como se fossem asas, outros que parecem questionar o espectador, e outros ainda que se juntam como se fossem rezar; uns sentados, outros de pé, com expressões serenas ou olhar fantasmagórico – corpos que se comunicam ativamente com quem passeia diante deles.

Sem título, década de 1960-1984. Foto: Eduardo Ortega.
Também faz parte da exposição uma tela que exibe o curta-metragem Conceição dos Bugres (1979), de Cândido Alberto da Fonseca, o único cineasta a filmar a artista. Na época, Cândido ganhou um prêmio da Funarte (Fundação Nacional das Artes), a partir do roteiro do filme. O curto documentário tem 10 minutos, foi filmado na casa de Conceição, em película 35 mm colorida. Ele foi exibido em circuito comercial no Rio de Janeiro nos anos 1980, sob a Lei do Curta, que tornava obrigatória a exibição de curtas-metragens brasileiros antes de qualquer longa-metragem estrangeiro no cinema.
O filme tem imagens raras de Conceição produzindo seus bugres, e trechos com depoimentos da artista. Mas durante muito tempo foi considerado perdido, pois parte dos negativos originais de câmera se deteriorou. Recentemente, em 2016, o curta foi recuperado, digitalizado e se tornou patrimônio do Estado do Mato Grosso do Sul. Assim como o filme de Cândido, a obra de Conceição parece ter sobrevivido por um fio. Assim como ela, outros artistas também pouco conhecidos tiveram exposições dedicadas recentemente no MASP, como Maria Auxiliadora e Djanira Motta e Silva.
Conceição produziu durante pelo menos três décadas e não se tem ideia de quantas peças ela fez. A maior parte dos itens presentes nessa exposição pertence a coleções particulares, como a de Edmar Pinto da Costa, que doou duas obras originais de Conceição para o acervo do MASP. Desde a morte da artista, a família continuou a obra dela: Abílio Freitas da Silva, marido, Sotera Sanchez da Silva, nora, e Ilton Silva, filho de Conceição, seguiram com a produção dos bugres. Hoje é Mariano Antunes Cabral Silva, neto de Conceição, que caminha pelos passos (e traços) da avó.

Sem título, década de 1960-1984. Foto: Eduardo Ortega
A exposição no MASP é importante para pensar que o acesso às obras dos artistas, bem como os documentos que são fundamentais para mapear suas trajetórias, estão profundamente ligados à prática da preservação. Como coloca Ray Edmondson, “a preservação não é uma operação pontual, mas uma tarefa de gestão que não acaba nunca. Nunca se termina de preservar uma obra; na melhor das hipóteses, ela está sempre em processo de preservação”.[1]
Nesse sentido, a exposição Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo é um dos muitos passos nesse processo interminável de conservação, tanto das obras quanto da memória. Um processo que remete à repetição vista nos bugres da artista e, em última instância, à própria conservação da natureza e do mundo. Um impulso voltado ao cultivo e à manutenção das vidas e das histórias que brotam da arte.
Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na
Redes da Maré. Atua como fotógrafa e é preservadora
audiovisual voluntária na Cinemateca do MAM-Rio. É
graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUCRio. Membra da Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual (ABPA).
CONCEIÇÃO DOS BUGRES: TUDO É DA NATUREZA DO
MUNDO • MASP • SÃO PAULO • 14/5 A 30/01/2022

