Um cavalheiro contempla um mar de brumas. Conseguimos vê-lo, de costas para nós, espectadores, e de frente para o precipício. Em sua mão descansa um cajado que o auxiliou na subida íngreme. Quando menos percebemos, estamos nós também absortos com essa visão, sendo-lhes companheiros na sua solidão e também contemplando aquela sublime paisagem. Nosso espírito, tal qual o do cavalheiro, entra em sintonia com a natureza naquele momento e nossa visão agora está em amálgama com a dele. Não sabemos o que o motivou a estar ali, se uma alma conturbada ou apenas uma busca pelo silêncio e pela solidão, mas, de certa forma, somos agora seu vigia e sua única companhia, apesar de que ele jamais perceberá a nossa presença. É bem provável que a mente do leitor lhe tenha remetido imediatamente à obra O Viandante sobre um mar de nuvens. Mais do que um óleo sobre tela de 1818, essa pintura se tornou um ícone da cultura pop, não por ser apelativa ou simples, mas por conseguir conversar com diversos públicos, de diversas épocas e com variadas bagagens culturais. É uma metáfora pictórica da nossa eterna busca por sentido e da nossa tentativa de autoconhecimento. Mas teria o nobre leitor informações acerca do autor desse primordial símbolo daquilo que se convencionou a ser chamado de Romantismo Alemão? Para que não deixemos que Caspar David Friedrich seja uma personalidade tão enigmática quanto o seu aventureiro personagem da pintura, teremos aqui a honra de poder explanar um pouco sobre essa figura importante da História da Arte. Calce suas botas, vista um agasalho, pegue seu cajado, arrume sua mochila e prepare o pulmão para respirar ar puro e a sua visão para grandes vislumbres: iremos explorar montanhas com Friedrich.
Nascido em Greifswald, no mar Báltico, em setembro de 1774, Caspar David Friedrich foi criado pelos pais, Adolf Gottlieb e Dorothea Bechly, mediante o rigor de uma educação luterana. A vida dele foi marcada por constantes perdas familiares desde muito cedo, tendo ficado órfão de mãe e testemunhado a terrível morte acidental de um irmão. Friedrich viria a sofrer o luto por mais três de seus irmãos em outros momentos da vida, o que pode ter fortemente influenciado o notável ar de melancolia que suas obras artísticas viriam a ter. Um contemporâneo seu, o filósofo natural von Schubert, comentou em um livro sobre a personalidade do artista oscilar entre euforia de bom humor e uma tristeza incurável. Aos 16 anos, Friedrich entrou em contato com os estudos artísticos e literários acadêmicos na Universidade de Greifswald, revelando-se um promissor aluno que, como muitos talentos da História da Arte, começou fazendo cópias de obras clássicas, como moldes de esculturas consagradas e algumas pinturas. Mas a maior parte de seu interesse passou a se concentrar na pintura de paisagem holandesa do século 17, as quais ele pode contemplar diretamente quando esteve na Royal Picture Gallery, de Copenhague. Isso o influenciou de tal forma que, como Turner e Constable, cada um a seu modo, David Friedrich viria a se tornar mais tarde um dos grandes nomes da pintura de paisagens do Romantismo.
Mais de 15 anos após seus primeiros estudos artísticos e estabelecido em Dresden, Friedrich produziu, em 1808, uma de suas primeiras obras realmente notáveis, já com a característica de ser um virtuoso pintor de paisagens. Trata-se do incomum (incomum para os padrões do que se conhece como arte cristã) retábulo Altar Tetschen (ou A cruz na montanha), com um solitário Cristo crucificado rodeado por uma exuberante paisagem natural, com destaque para as iluminadas nuvens de tom escarlate. Obra ousada por quebrar (ou seria criar?!) cânones em uma singular convergência entre a arte religiosa e a arte da exaltação da natureza, que inseriu o artista na lista dos grandes nomes da pintura mundial. Dois anos após o polêmico retábulo e depois de conseguir a proeza de ter duas de suas obras vendidas para príncipe da Prússia, Friedrich foi aceito como membro da Academia de Berlim e, mais adiante, em 1824, foi nomeado professor da Royal Dresden Art Academy, onde, graças ao financiamento de seus estudos e produções, o artista conseguiu trabalhar com melhores condições e maior tranquilidade para desenvolver seu potencial criativo. A essa altura, o artista já havia casado com Caroline Bommer, com quem teve três filhos.
Quase 10 anos após a venda ao herdeiro prússio, o artista ainda conseguiria a venda de duas de suas paisagens para Nikolai Pavlovich, grão-duque russo. Em 1835, Friedrich viria a sofrer um derrame, do qual nunca conseguiu se recuperar totalmente, e, ainda, um segundo derrame em 1837, deixando-o quase completamente paralisado. A reputação artística dele, tal qual o movimento romântico, estava em declínio, dando lugar ao realismo, donde Courbet e Millet viriam a ser grandes nomes. Ele morreu em 7 de maio de 1840, e foi enterrado no cemitério da Trindade, em Dresden-Johannstadt, em 10 de maio daquele ano.
Por um certo tempo, o trabalho de Caspar David Friedrich foi esquecido, vindo a ser novamente revalorizado no século 20 e sua reputação de grande artista continuaria a se fortalecer no século 21, tanto que o Hamburger Kunsthalle anunciou, em verdadeiro festejo e com muito orgulho, a exposição retrospectiva que comemora o 250⁰ aniversário do artista. A exposição CASPAR DAVID FRIEDRICH: arte para uma Nova Era (em tradução livre do alemão) é uma abrangente e justa homenagem dedicada ao principal artista do romantismo alemão, composta por mais de 50 pinturas e por diversos desenhos de Friedrich. As obras revelam o novo modo como o artista passou a trabalhar a relação entre o homem e a natureza em suas obras, tais como a impressionante Escolho rochoso junto à costa, de 1825, onde está representada uma exuberante formação rochosa com seus dentes pontiagudos, cerceada por uma faixa costeira e água gélida, coberta por um céu com nuvens distantes. O conjunto é capaz de modificar o estado de espírito do observador da obra. Onde estaria qualquer vestígio de presença humana nessa paisagem deserta e fria? Apenas nossa alma pode ser tocada pelas águas desse mar cinzento e alcançar as isoladas ilhas, caminhar por essa costa e escalar até o cume daqueles picos. Ou talvez, mesmo com essa possibilidade de viagem imaginária, queiramos apenas respirar o ar frio e contemplar de longe a imensidão desse espaço, sentindo-nos, apesar de minúsculos em relação a toda essa exuberância, uma pequena parte que se conecta a esse ambiente.
Essa conjugação entre a ideia de liberdade e a sensação de melancolia ganha grandes dimensões também em Paisagem nas montanhas da Silésia (c. 1815-1820). Agora, além do frio e da solidão, somos arrebatados por um vento que sopra levando e trazendo pensamentos. As árvores desfolhadas, a névoa distante e o céu com um azul que esmorece formam uma poesia visual e sensorial que nos cria um sentimento de isolamento e solidão tocantes. Como bem disse Gombrich ao comentar que as paisagens de Friedrich refletem o espírito da lírica poética de seu tempo, também nós, ao contemplarmos tais obras, conseguimos compreender esse espírito da época, ainda que as olhemos pela perspectiva do momento presente, onde é comum o sentir-se só mesmo estando em multidão e em um mundo onde as conexões tecnológicas cada vez mais buscam nos aproximar, paradoxalmente nos afastando fisicamente. Somos o viandante que contempla as brumas e acaba se sentindo tão pouco sólido quanto as nuvens que as formam. Talvez nossa miserável solidão venha a ser amenizada por uma companhia, como em Dois homens contemplando a Lua (c. 1825-30), onde há a luz do satélite que ilumina a noite e onde outro alguém pode nos ajudar a olhar para a infinidade da natureza que nos rodeia e servir como um paliativo que naquele momento combate a solidão que nos afeta.
É possível que não fosse a intenção de Friedrich nos fazer sentir tão pequenos e insignificantes diante do esplendor da natureza e nem que sua atitude de representar tais paisagens viesse a nos trazer a melancolia quase inevitável que acompanha o ser humano desde aquele tempo até hoje. O que motiva um artista, o que o inspira, o que o guia a criar e recriar pode ser a antítese do subjetivo “infectado” pelo espírito geral da época e do lugar, mas também é algo maior: a própria continuação dessa virtude do espírito humano que não pode parar: a arte tem que existir! Ela continua a ser presente e continua a se modificar, mas é sempre bom olharmos para trás e enxergar o caminho percorrido para que não nos esqueçamos da nossa própria trajetória. Daí a importância de retrospectivas como esta, que estará disponível na galeria Hamburger Kunsthalle até o dia 1º de abril de 2023, rememorando o melhor de Friedrich e revelando sua influência na arte moderna por meio da obra de artistas inspirados por ele.
Edvaldo Carvalho é professor de arte na rede estadual
de ensino do Estado do Amapá, MBA em História da
Arte e Mestrando em Educação Profissional e
Tecnológica pelo ProfEPT/IFAP.
CASPAR DAVID FRIEDRICH: ARTE PARA UMA NOVA ERA
• HAMBURGER KUNSTHALLE • ALEMANHA •
15/12/2022 A 1/4/2023