“Fáceis de carregar e armar, escadas são máquinas simples. (De)compõem o esforço do corpo para atingir alturas desejadas pelo olhar. No ritmo dos degraus, cada passo vira alavanca para mover o corpo inteiro, coordenando no plano inclinado a força combinada de braços e pernas.”[1]
Uma das mais importantes artistas brasileiras, Carmela Gross iniciou seu trabalho no fim da década de 1960, e atua hoje com o mesmo fôlego, força e radicalidade. Corpo/máquina e olho se misturam a grafismo/desenho e cidade em sua produção. A relação entre as escalas alcançadas pelo corpo e as escalas que só se alcançam pelo olhar permeiam sua obra, onde o desenho da mão e o desenho da máquina, presentes nos elementos e estruturas da cidade, têm o mesmo peso, e por vezes se misturam, em luta de coexistência entre um eu indivíduo e um eu público, que se perde em meio à multidão.

Us cara fugiu correndo. Instalação na Chácara Lane. Foto: André Fabro
A Chácara Lane, unidade do Museu da Cidade de São Paulo, está tomada por um conjunto significativo de obras que compreendem um recorte de cinco décadas de produção, em uma espécie de retrospectiva, em que períodos distintos da produção de Carmela são pontuados. Ao mesmo tempo, a exposição “Arte à mão armada” propõe uma leitura que ressalte o caráter desafiador do trabalho, o burlar fronteiras entre desenho, máquina e mão/multidão, cidade e indivíduo, que possa destacar suas ferramentas de questionar a ordem estabelecida e seus assaltos imagéticos. E, ainda, apresentar suas armas de enfrentar o mundo e a arte.
A remontagem de instalações e intervenções de grande escala, como “Eu sou Dolores”, realizada para a 4ª edição do Arte-Cidade, e a instalação realizada em 1992 para a Capela do Morumbi, agora remontada na mesma Capela, revelam a ambição de estar na cidade que a obra da artista tem e que aparece rebatida na exposição. Seus trabalhos partem de signos da cidade; voltar-se para ela parece destino certo.

Desenhos preparatórios para A Negra, 1997.
Um possível percurso cronológico da mostra se inicia em “Escada’, de 1968, uma intervenção na paisagem registrada em fotografia. Nela, a artista aparece sobre uma escada desenhada com tinta spray sobre um barranco. É a primeira aparição desse signo que, ao longo dos anos, se repete em seu trabalho. “Durante um período de greve, saí com um grupo de amigos que estudava como eu em uma escola de arte para fotografar pinturas de bares e borracharias, na periferia da cidade. Nesse dia, levávamos também conosco alguns tubos de tinta spray. Decidimos parar em uma zona quase deserta, lá pelos lados de Santo Amaro, onde uma avenida recém-aberta cortava uma área acidentada entre curvas, buracos e grandes barrancos. Um paredão de terra parecia bom para pintar. Um deles, com a terra frisada horizontalmente, funcionava exatamente como uma escada, pela qual podia se subir e descer livremente. Aproveitei para desenhar nele linhas em zigue-zague, como os degraus de uma escada. A coisa observada (barranco/degraus de terra) e a coisa desenhada (risco/esquema), quase na mesma escala, ressoaram uma na outra”, conta Carmela.

Carimbadas e Carimbos. 1977-1978.
A obra “Escada-Escola” foi desenvolvida especialmente para a exposição, e encerra, também com uma escada, a cronologia de trabalhos. Estrutura metálica de linhas e curvas industriais, a obra rompe a barreira que impede o trânsito das crianças da escola vizinha a casa, propondo uma relação mais proveitosa entre escola e museu, com um desvio na lógica de uso engessado dos espaços. É mais uma vez a artista saindo do espaço expositivo, esbarrando nos limites físicos do museu e se voltando para o lugar que mais lhe provoca, o fora, a cidade.
Para Carmela, “a ferramenta do artista para enfrentar o mundo é a mão armada”, sua obra existe no constante exercício de desafiar a lógica estabelecida das coisas. Seu fazer é se desafiar, desafiar o outro, desafiar a arte, desafiar a cidade.
PROCESSO ABERTO
A exposição procura explorar o processo da artista, revelar seu modo de operar, seu pensamento. Por isso, os textos que acompanham as obras são escritos da artista, reflexões sobre os trabalhos realizadas ao longo dos anos. Também estão reunidas pela primeira vez as pastas-projetos da artista. Apresentados em fac-símiles, esse arquivos contêm o conjunto de estudos preparatórios para as obras com suas dúvidas, recortes e acertos.

Escada. 1968. Foto Marcello Nitschegde.
[1] Carmela Gross em “Escadas, relato de uma montagem”. Publicado no catálogo da exposição Escadas, realizada na Casa França-Brasil – Rio de janeiro, de 5 de junho a 28 de julho de 2013.