Quando eu fiz a primeira ESCADA (a de 1968), aquilo era quase um jogo. A escada estava lá. Eu só consegui subir por aquele barranco íngreme porque havia sulcos na terra, feitos possivelmente por uma máquina motoniveladora, que passou por ali para abrir a avenida. E o barranco ficou, então, recortado com “degraus”. Já estava dado – era fazer sobre uma coisa, ela mesma, só que do ponto de vista conceitual. Era simples, sem qualquer outra problemática, além de desenhar com linhas uma escada sobre a outra escada. Uma reverberava na outra: escada-percepção e escada-ação. A primeira foi experimentada por mim como escada real, o que obviamente não era, e a segunda, a desenhada, foi feita para confirmar a primeira. O que fiz foi só uma operação bem-humorada sobre o conceito de desenho. Percepção e criação.
A maior parte dos meus trabalhos surge primeiro como projeto desenhado. Depois, eles são construídos em outra materialidade, outra consistência. Poucos trabalhos vêm de uma experimentação, em que a obra se constitui diretamente no fazer.
Às vezes, o projeto é um molde, como nos BURACOS. O ponto de partida era um desenho pequeno, uma anotação. Depois, esse desenho foi ampliado e transferido para o chão, com moldes específicos para cada buraco. Às vezes, é o projeto de uma praça, uma coisa urbana. Pode-se passar por cima dele, caminhar sobre ele. E todo o espaço passa a ser uma experiência corporal.
No caso d’A NEGRA (1997), aquela massa esponjosa preta está apoiada em um carrinho, uma pequena plataforma com rodas e uma haste metálica que serve de puxador, para deslocá-la de um lugar para outro. Entre outras questões (mas não vamos falar delas agora), há o carrinho… E aquele carro é uma espécie de citação do carrinho manual do entregador de mercadorias, do vendedor ambulante, do catador de papel. É uma alusão a um tipo de trabalho de rua, desqualificado.
Esse trabalho foi feito para a rua, mas, mesmo agora, no museu, a haste e a manopla estão presentes. Elas apontam para o carrinho, para a máquina. E, mesmo se noutra escala, há ainda um resíduo de carro alegórico, extraordinário monumento sobre rodas, nos desfiles das escolas de samba – um maquinário social, um trabalho coletivo, simples e complexo ao mesmo tempo.
Pra mim, palavra e rua são duas coisas que estão ligadas. Por exemplo, em FIGURANTES, fiz duas versões, com materiais de rua. Pode-se dizer que são arruaças. A primeira foi feita como letreiro eletrônico luminoso, desses de posto de gasolina, anunciando produtos e serviços. Só que os serviços, no caso, eram do naipe daqueles oferecidos pelos adjuntos de Luís Bonaparte, descritos por Marx, em O 18 de Brumário: TRAFICANTES, HERDEIROS DECADENTES, BATEDORES DE CARTEIRA, EX-PRESIDIÁRIOS, VIGARISTAS, DONOS DE BORDEL… enfim, uma turma que conhecemos bem. A segunda versão de FIGURANTES foi feita de placas metálicas, dessas usadas para indicar nomes de rua, que celebram nomes e datas memoráveis. São placas esmaltadas a fogo, na cor azul-escuro. Em letras brancas vai a tipologia estudada por Marx…
O mundo real aparece como motor e operador de uma situação, mas o resultado disso é de outra ordem. Podemos pensar em uma operação de condensação, que transmuta os elementos do real para uma condição que se pretende mais aguda… poder falar para mais gente… revelar um processo, amplificar o som daquele objeto. A operação parte do mundo real, mas desmancha o mundo, para armá-lo noutro plano. E, como não há o domínio dessa máquina/mundo, o trabalho é feito por aproximações. Vai buscando sentidos possíveis, alguns significados, arranhando o mundo.
CARMELA GROSS: QUASE CIRCO • SESC POMPEIA •
SÃO PAULO • 27/3/2024 A 25/8/2024