
Autorretrato com índios Carajás, 1968
O convite da Dasartes para escolher cinco trabalhos para um percurso longo como o meu, é uma tarefa difícil. Eu comecei cedo, ao mesmo tempo em que trabalhei na Petrobrás, entre 1959 e 1966, e trabalhava a convite de Iberê Camargo em seu ateliê, como seu assistente, por três anos. Minha vivência na Petrobrás me permitiu estar próximo à indústria e, nessa época, começou a indústria química nacional derivada do petróleo. Os acrílicos eram produzidos aqui e não são mais importados, e eu comecei a trabalhar com esses novos materiais que permitiam também novas linguagens, permitia-nos sair a pintura a óleo, da pintura tradicional. Minha geração queria uma pintura que tivesse uma cara brasileira, nova, por isso fizemos a Nova Figuração, a Opinião 65, a Nova Objetividade Brasileira, em 1967. Isso caminhava junto ao teatro, ao Cinema Novo, à vontade de produzir uma coisa com uma “pegada forte”. Assim, o primeiro trabalho que escolhi para este artigo é o Autorretrato com índios carajás, porque, já naquela época, era uma questão nossa, o massacre e a perseguição das etnias indígenas assim como se mostra uma questão tão presente na produção de artistas hoje. Esse trabalho foi feito sobre um molde em acrílico que seria usado para uma placa de posto de gasolina da TEXACO com a intenção de incorporar à pintura uma imagem do cotidiano, do que se via e se passava na rua. Então eu apaguei uma placa da TEXACO pela metade e pintei com tinta acrílica um autorretrato e o retrato de dois índios carajás.

Poder, 1972
A fotografia sempre esteve comigo, desde sempre fotografei e pintei. Ela era também um caderno de anotação ou base para produzir os trabalhos. Essa fotografia que eu escolhi para este artigo, chamada Poder, registrei as margens do bloco Cacique de Ramos, na Central do Brasil. O Cacique de Ramos me interessou também pois trazia uma questão política nos anos 1970. Eu acompanhei muito de perto entre 1970 e 1976. Fiz uma exposição apresentando esse trabalho em 1972, que era para ser uma individual e eu transformei em uma coletiva e chamei amigos como Gerchman, Waltércio e Helio Oiticica, que era muito amigo e foi um grande incentivador dessa minha relação com a chamada arte popular. Na verdade, conversávamos sobre uma dimensão mais profunda do Carnaval, um grande ritual popular de passagem do tempo. Essa foto do Poder mostra a situação em que nós vivíamos politicamente na época e o Cacique escolhia ser uma sociedade horizontal onde todos são caciques. Dos sete mil, eu sou um. Olhar para fora e olhar para dentro sempre foi uma característica da minha ação artística. Não sou um artista isolado do mundo. Essa possibilidade de trabalhar com o Cacique foi muito gratificante e me ensinou muito, aproximou-me da produção anônima, do desejo de discurso político que existe na população como um todo. Uma ação de discurso artístico popular.

Série Grades, 1982
Sempre estive pintando paralelamente ao trabalho com a fotografia. A pintura é um ritual íntimo e constante na minha vida. Mas, durante meu trabalho com o Carnaval, percebia uma coisa interessante: entre o público/plateia e os desfiles, a Prefeitura colocava grades metálicas losangulares, e eu fotografava através dessas grades. A grade se tornava um campo imantado entre esses dois olhares, de quem estava assistindo e de quem estava desfilando. E isso me deu a ideia de produzir pinturas que fossem grades losangulares onde a medição do espaço era feita por tensão de cor. Pinturas feitas com cores que tinha cores por trás. Cores que tivessem uma cor anterior que pudessem ser vistas ou pela transparência ou pelo gesto pictórico. Uma medição emocional feita com cor do espaço pictórico, sem discurso literário. A pintura é o personagem. Essa pintura é o maior painel que fiz dessa série que chamei de Grades e durou até 1989, quando a interrompi decididamente.

Calor, 1989
Quando interrompi a série Grades, decidi reinventar minha pintura e, a partir da amizade com Frans Krajcberg, que me apresentou a região, fui para a área dos pigmentos naturais de Minas Gerais. E fui procurando não só os pigmentos naturais, mas as cores do Brasil. Encontrei, em uma fábrica de cerâmicas que calcinava o óxido de ferro para fazer o vermelhão, as bocas de forno cobertas de pigmento e usei a monotipia como forma de reinventar minha forma de pintar, desta vez quase sem gesto, deslocando a pele do mundo que já estava lá. Colocava cola na tela e registrava o pó de pigmento depositado nas coisas. E é interessante que a pintura brasileira foi inventada com Mestre Ataíde pintando as esculturas do Aleijadinho usando os mesmos pigmentos, no século 17, que, com toda a dificuldade de receber as tintas da Europa, foi descobrindo os mesmos pigmentos. Os Anjos mulatos têm a cor brasileira dos óxidos de ferro e isso também me interessou. E escolhi também para este artigo na Dasartes o trabalho Calor, da série Bocas de Forno, de 1989.

Série Mangue. Natureza inventada
Trinta anos é muito tempo e quase nada. A partir dessa incursão para Minas, fiz diversas outras viagens e me tornei um artista viajante. E, de repente, volta agora o ferro de outra forma. Na pele do aço Corten, na matéria da carne da escultura. E das viagens veio a vontade de trabalhar com o que o Felipe Scovino chamou de Natureza Inventada. Escolhi esse painel que está no Rio de Janeiro e uma série de esculturas que tem essa carne e esse quê de natureza, mas é uma invenção sem nada descritivo e se mantém em pé por si mesmo por encaixe. Os mesmos encaixes que usei na década de 1960 e 1970. A gente inventa coisas, mas há coisas que vão permanecendo, pequenas conquistas que o trabalho nos dá e que vão reaparecendo. De certa, forma em cada trabalho, há toda a minha história. Produzir no espectador esse pequeno susto, essa surpresa, é, na verdade, o gol que quero fazer.
Carlos Vergara • Bolsa de Arte •
São Paulo • 30/3 a 18/5/2019
Natureza Inventada • Refêrencia Galeria •
Brasília • 13/4 a 18/5/2019
Natureza Inventada • CCBB •
Brasília • 14/4 a 28/6/2019