Moça com brinco de pérola
Setembro de 2013
Este é um ano bom para Berna Reale. Depois de ter vencido o prêmio Pipa Online 2012, a artista foi uma das finalistas do Prêmio Pipa 2013, está em exposição no MAM Rio junto dos demais finalistas e inaugurou em setembro outra grande individual no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). Nascida em Belém, no Pará, a artista tem cada vez mais atenção da crítica especializada e dos meios de comunicação articulando fotografia, vídeo e performances no espaço público. Graduada em Artes Visuais pela UFPA e atuando profissionalmente como perita criminal, seus trabalhos geralmente são interpretados através da dor e da violência.
O título desse texto parte do meu encontro com Soledade, novo vídeo a ser mostrado no MAR. Após a câmera capturar um grupo de porcos, o espectador vê a imagem de angulação aberta da artista sobre uma biga dourada, conduzida por esses animais que chafurdam sobre a lama. Uma das imagens posteriores na edição é do detalhe de sua orelha, portadora de um brinco de pérola. Do meu desejo por produzir um texto que não abordasse a obra da artista nem por uma perspectiva da “poética paraense”, nem por colocar sua utilização do corpo como ponto fulcral (senso comum no que tangencia a performance), esse eco da tradição clássica me pareceu um estopim.
De cabelo em tamanho médio, conjunto azul e um discreto batom nos lábios, a artista desfila junto aos seus porcos na rua Soledade, via de uma região de tráfico de drogas conhecida como Buraco Fundo, em Belém. Longe do glamour de um Charlton Heston no filme Ben Hur (1959), Berna parece encarnar a imagem de uma das muitas mulheres que atualmente se encontram em posições de liderança – Dilma, Kirchner, Merkel, Elizabeth, dentre outras. Independentemente do nome próprio que poderíamos atribuir a ela aqui, pergunto-me: seriam essas pérolas de verdade? Objetos preciosos ou aquisições de camelô? É possível se sustentar nesse falso cortejo imperial ou a queda sobre a sujeira é garantida?
Ao olhar para as imagens produzidas por Vermeer, pintor do quadro que dá título a este texto, é perceptível a dimensão do uso de pérolas por mulheres na história da arte. Ao conversar com Berna sobre essa possível leitura do trabalho dela pelo viés do corpo feminino, ela me disse que: “Para mim, meu trabalho não trata disso – homem, nem mulher, nem memória. Se você viu isso, é algo das suas referências, não das minhas”.
Intrigado com a resposta, procurei outros caminhos de leitura para esse objeto que me interessava. Talvez na biologia e no próprio procedimento de como as pérolas são produzidas, há elementos que, longe de uma carga cultural sobre questões de gênero, podem ajudar a pensar sua poética.
As pérolas nascem de ostras. Para minha surpresa, esse nascimento se sucede quando o molusco aciona seu mecanismo de defesa, ou seja, é preciso que ele seja estimulado e que seu organismo inflame através do contato com corpos estranhos para que seu manto produza camadas de néctar sobre o elemento externo e surjam as pérolas. Perguntei-me: e não seria o processo artístico de Berna Reale um tanto quanto parecido? Como ela conversou comigo a respeito das silenciosas violências do mundo contemporâneo que a afligem, a percepção e a recodificação através de seu corpo e da arte não são semelhantes à inflamada, mas produtiva, estrutura de uma ostra?
É preciso criar situações de violência perante o olhar do público e da câmera – à espera da bicada dos urubus em Quando todos calam, a correr como uma atleta dentro de um presídio em Americano ou a ser transportada como um pedaço de carne em uma de suas performances sem título – para que as pequenas pérolas, isto é, os objetos artísticos, possam vir à tona. Do mesmo modo como as ostras levam cerca de três anos para produzir uma joia, Berna também tem que se preparar e aguardar pelo crescimento do cabelo ou a mudança de sua silhueta a fim de chegar à imagem que irá, como ela mesma disse, “funcionar simbolicamente e atingir visualmente o espectador”.
Muitos me parecem os modos de sutura crítica de Berna Reale. Parece-me importante que, como toda boa costureira, o observador seja capaz de produzir tanto costuras retas, quanto em zigue-zague – que suas relações com a história da arte, com a linguagem da performance, com o barroco (essa “pérola imperfeita”, em sua etimologia) e até mesmo com o corpo feminino e Belém do Pará não sejam pontos cegos, mas parte do processo de reflexão.
Por fim, vida longa à Berna, pois, como pude aprender também, não é toda ostra que produz pérolas, mas apenas algumas espécies – e o ato de retirá-las é fragilíssimo.
Entrevista com Berna Reale
Por Raphael Fonseca
– Você deu uma entrevista recente para um programa de TV dedicado aos artistas do Pará. O que você acha da sua produção ser interpretada como parte de uma cultura local?
Nunca fui interpretada como parte de uma cultura local, por isso demorei muito a chegar a São Paulo e Rio de Janeiro, pois na grande maioria das vezes quando curadores iam visitar Belém, procuravam artistas que de uma maneira ou de outra bebessem na fonte dos signos locais e a partir deles expandissem seus conceitos. Paulo Herkenhoff conheceu meu trabalho em 2005 e aí as coisas começaram a mudar para mim. Veio o Rumos agora em 2012 com a curadoria geral de Agnaldo Farias, e aí pronto, cheguei a São Paulo. Você precisa entender o que é expor na Paulista; todo mundo vê.
– Como você enxerga a relação entre artista e curador?
Eu penso que é maravilhoso ter um curador para discutir seu trabalho, esse foi um sonho que sempre tive e que agora posso desfrutar de vez em quando, se eu tivesse dinheiro eu pagava um curador para discutir comigo todos os meus projetos. Acho o papel dos curadores sérios fundamental em um processo de arte; o problema não é o curador, o problema muitas vezes é o artista que não sabe dialogar, ou se revolta ou é subserviente ao ponto do curador pensar que o trabalho do artista seria melhor com ele nu e o cara vai logo tirando a roupa… isso que não é bom, mas quando há trocas maduras penso que a relação curador-artista é perfeita.
– Muitos artistas contemporâneos utilizam elementos de linguagens mais tradicionais como desenho, pintura e gravura. O seu trabalho, por outro lado, se utiliza da fotografia, do vídeo e da performance. Em algum momento essas opções artísticas ficaram claras para você?
Eu comecei pintando na universidade, mas nunca fui boa de perspectiva. Depois optei por um dos meios artísticos mais antigos que existe, a cerâmica. Gostei do tridimensional e de mexer com elementos da terra, sou de uma família numerosa de agrônomos, doze, e na minha família somos terrenos literalmente, mas logo percebi que a cerâmica não dava conta de fazer o que eu queria, pois o material tem suas especificidades e limitações. Aí comecei a fotografar a terra e daí, me interessei pela imagem, pois, pensando bem, meu interesse é pela imagem, quer seja fotografia ou vídeo ou mesmo performance já que penso em como os elementos que escolho – figurino, cabelo, pele, ambiente – funcionam simbolicamente e como vão atingir visualmente o espectador.
– Sobre “Ordinário”, você comentou que os ossos que utiliza na performance eram humanos. Tendo esse exemplo em mente, qual o compromisso do teu trabalho com a ideia de verdade e sinceridade?
Eu penso que arte não necessariamente tenha que ter um compromisso com a verdade. Temos artistas maravilhosos que abordam outro viés, penso sim que o artista tem que ser sincero com o que faz, verdadeiro, isso sim, penso que só comprometido com seu objetivo o artista é capaz de alcançar as pessoas, quer seja falando do passado, presente ou tecendo relações ficcionais.
– Você costuma dizer que seu trabalho é sobre a violência nos dias de hoje. Quais violências que mais te afligem?
A violência silenciosa ou a que é observada em silêncio, sem dúvida é a que mais me angustia. Silenciosa no sentido mais amplo possível, silenciosa no que diz respeito à tortura, aquela cometida entre paredes, a silenciosa por parte dos espectadores e silenciosa por meio do poder. Por exemplo, Guantánamo, aquilo para mim é inadmissível e está ali aos olhos de todos, de todo o mundo, de milhões de espectadores em silêncio… é o exemplo da violência em todos os sentidos, por isso fiz o trabalho “Enquanto todos olham a lua”.
– Tem sido muito comentada na Internet uma parceria recente entre Marina Abramovic e Lady Gaga. Como você vê esses cruzamentos entre arte contemporânea e cultura pop?
Penso que se dois artistas se unem isso é bom. Fui ver o vídeo que está na internet com as duas, gostei, não vi nada de negativo, só penso que poderia ser algo novo. Penso que as duas poderiam ter se unido para fazer um projeto juntas. Se fosse famosa, queria muito ter a oportunidade de convidar alguns artistas brasileiros para pensar junto um projeto de arte. Já pensou ter a Rita Lee pensando junto um projeto de artes visuais, um Ney Matogrosso, por exemplo? Esses artistas são maravilhosos em tudo, para mim infinitamente superiores a Lady Gaga – aliás, nem temos parâmetros de comparação, estão em outro nível. Só que Berninha não é Abramovic e nem conhece pessoalmente essas feras, mas sou fã deles, assim como das musicas de Caetano. Aliás, queria dar à Caetano “Palomo”, pela música “Império da lei”, que fez para o Pará… alguém pode me apresentar Caê? Seria um sonho (risos).
– Relações de poder são ecoadas a partir do teu trabalho. Usando dessa mesma palavra, qual o poder da arte no que diz respeito ao estado das coisas atualmente?
Não sei se a arte pode muito, só sei que é o único instrumento que tenho para protestar contra o que eu penso ser injusto. Espero que a arte consiga alguma coisa, mas tenho minhas dúvidas, pois penso que ela ainda tem um alcance mínimo.
– Em “Americano”, você corre segurando uma tocha dentro de um presídio de segurança máxima. Ao final do trabalho, você pendura a tocha no final de um corredor. Há luz no fim do túnel ou a condição humana estaria mais próxima daquele corpo que espera pelo ataque dos urubus?
Você quer saber se sou otimista ou pessimista, né? Eu sou otimista, odeio quem se lamenta, quem fica se vitimizando. Tento sempre reagir, digo sempre que posso ir para a solitária, mas vou gritando, mas sou realista e com essa politica que temos no mundo, com os ditadores tomando o poder em vários pontos do globo, matando milhares de pessoas como estamos vendo no Egito, por exemplo, penso que estamos todos sendo servidos aos urubus “enquanto todos calam”.
Tochas não apagam na água
Por Daniela Labra
Em janeiro de 2013, recebi o convite de Paulo Herkenhoff, curador e diretor artístico do MAR, para fazer a curadoria de uma individual de Berna Reale no museu. Seria a primeira mostra solo da artista e a segunda temporada de exposições de arte contemporânea no andar térreo da nova instituição. No entanto, embora já admirasse as fortes e enigmáticas imagens de Reale, eu estaria residindo em Barcelona e não poderia encontrá-la nem para sermos apresentadas. Mas, tendo a promessa de receber todo o apoio necessário do MAR para desenvolver o projeto da exposição à distância, aceitei o desafio. Além disso, o fato de a artista viver em Belém era quase um consolo, pois indicava que nossa comunicação inevitavelmente sempre se daria, sobretudo, virtualmente.
Então, dias após o convite, eu e Berna começamos um longo, constante e prolífico processo de conversas e trocas semanais, via e-mails, Facebook e Skype. Em nosso primeiro encontro virtual, teci algumas considerações que achava pertinentes sobre sua obra: o modo como abordava questões de gênero, o feminino, o feminismo, o corpo… e, em um minuto, ela me cortou discordando, explicando entre risos que não se preocupava com nada disso, e que tinha até certo “horror” a tais interpretações, para ela umas “chatices”. E assim iniciou-se um trabalho repleto de franquezas, reflexões, ironias, insights, humor e alguma apreensão que aumentava conforme as obras inéditas eram negociadas e produzidas.
Para a exposição Vazio de Nós, a artista apresentou cinco performances filmadas, sendo três delas produzidas com meu acompanhamento. Berna Reale, como eu, prefere o risco ao terreno estável, e, em cada ideia surgida, o incentivo era imediato e o entendimento mútuo. Da última obra realizada, Americano, filmada no Complexo Penitenciário de Americano, fui praticamente coautora, tendo estimulado seu projeto e colaborado na edição. Tudo a distância, mas com seriedade e parceria. Diante do cenário de um museu recém-inaugurado, Berna repetia que havíamos sido lançadas ao mar juntas, mesmo distantes, porque saberíamos navegar na tempestade e chegar à terra firme. Por fim, chegamos e apresentamos no MAR o conjunto de obras mais contundente que já acompanhei como curadora.
Vazio de Nós – Berna Reale
De 3 de setembro até 28 de novembro de 2013
MAR – Museu de Arte do Rio
Exposição Pipa 2013 – Cadu, Camila Soato, Berna Reale e Laercio Redondo
De 8 De setembro a 10 De novembro
MAM-RJ – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro