nvolute II, 1956. Foto: Barbara Hepworth © Bowness

DASARTES 108 /

BARBARA HEPWORTH

EM COMEMORAÇÃO AOS 10 ANOS DA GALERIA THE HEPWORTH WAKEFIELD, ESTÁ ABERTA A MAIOR EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA DE BARBARA HEPWORTH, PIONEIRA BRITÂNICA DA ESCULTURA MODERNA

Orpheus, 1956. Foto: Barbara Hepworth © Bowness.

Intitulada Barbara Hepworth: Arte e Vida, a exposição conta com obras canonizadas, como as esculturas em madeira, pedra e bronze, e também trabalhos menos célebres, como desenhos e pinturas, juntamente com alguns elementos biográficos da artista. Além disso, as artistas contemporâneas Tacita Dean e Veronica Ryan foram convidadas pela galeria para produzir obras específicas para esta exposição, explorando, cada uma, pontos de encontro entre suas obras e a de Barbara Hepworth.

No percurso escultórico da artista, cujo trabalho de vanguarda desponta nas décadas de 1920-1930, um traço que parece unir as obras, por mais distintas que pareçam ser, é um encanto pela materialização do vazio, isto é, pelo dito “espaço negativo”. Desde as produções em madeira e pedra, pelas quais a artista inicia sua frutífera carreira, até aquelas em bronze, estas, posteriores, pensadas para o mercado internacional das artes (já na década de 1950), o que vemos, de modo geral, é um tratamento cauteloso, dedicado, manual, orientado tanto ao volume quanto ao vazio.

Barbara Hepworth trabalhando no gesso para Single Form, 1962, na fundição Morris Singer. Foto: Barbara Hepworth © Bowness.

A exposição na The Hepworth Wakefield facilita essa visão global devido à sua magnitude. Ali notamos como, em Hepworth, o volume não se acaba onde começa o vazio: pelo contrário, ele parece se abrir e se multiplicar infinitamente, como em uma interação viva com o vão. Assim, de modo mais fundamental, o que descobrimos em Barbara Hepworth é a corporalidade do próprio espaço, em sua misteriosa e insidiosa microfísica. Excitado pelas esculturas da artista, o espaço vibra e mostra de que é feito: de um bailado incessante entre “aquilo que vemos”, o volume, e “aquilo que nos olha”, o vazio, como já colocou certa vez Georges Didi-Huberman.[1]

Nascida em Wakefield, em 1903, Barbara Hepworth se destacou como estudante de artes desde antes de iniciar a carreira. Já na década de 1920, no Royal College of Arts, em Londres, Hepworth e seu colega Henry Moore defendiam a noção da “verdade do material”, que rejeitava o tradicional planejamento da escultura em modelos de argila. Eles esculpiam diretamente na matéria-base e mediante as características dessa matéria – deixando-a guiá-los em vez de conformá-la a um projeto prévio. Após a conclusão dos estudos em Londres, passou dois anos na Itália, onde aprendeu a esculpir em mármore com Giovanni Ardini. Em 1931, ela passou a implementar em boa parte de suas esculturas um gesto chave que irá persistir, de um jeito ou de outro, ao longo da carreira: a perfuração da forma esculpida, o vazio no meio do volume – um recurso que mais tarde também aparecerá na obra de seu colega Moore.

Inside the night (You put your arms around me), 2018.

Em 1933, Hepworth fez uma viagem decisiva a Paris, onde entrou em contato com artistas como Pablo Picasso, Constantin Brancusi e Jean Arp. Influenciada por este último, como atesta Rosalind Krauss, a artista conseguiu sistematizar algo que já estava de certo modo presente em seu trabalho mesmo antes da ida a Paris: a noção vitalista da escultura, compreendendo-a como a concretização de um vivente; escultura-criação como criações são também as pedras, as árvores, os animais – uma ideia que aproxima, pelo métier, o escultor do Criador. A própria Hepworth, em dado momento, apontou que “a vitalidade não é um atributo físico, orgânico da escultura – é uma vida interior espiritual”.[2]

E, mesmo não sendo atributo físico, essa vitalidade acaba sendo sugerida por certas características materiais da escultura. Duas delas, em Hepworth, são centrais: a sinuosidade das formas e, de novo, o desdobramento do volume em seus vazios. Somadas uma a outra, essas duas qualidades principais garantem uma proliferação de vida nesses corpos-esculturas. Percebemos uma organicidade nas curvas, como se as peças fossem mesmo órgãos de um grande corpo, células de um vasto organismo espalhado pelo mundo. E, por meio dos vazios, canalizados aqui e ali por essas mesmas curvas, é possível imaginar uma respiração, uma troca de ares e olhares com o mundo – e conosco.

Figure for Landscape, 1960.

Pierced Form, 1932.

Curve Form (Trevalgan), 1956.

Oval form with strings and color, 1966.

Em alguns casos, por exemplo em Pierced Form (1932), os vãos se apresentam como vazios-orifícios, perfurações que parecem olhos, bocas, poros, ânus. Em outros casos, como em Figure for Landscape (1960), são vazios-volumétricos, largos e expansivos, antivolumes que dão profundidade às peças por lhes sugerirem um “dentro”, por desenvolverem outro espaço no interior do espaço escultórico. A entrada do bronze no repertório da artista, aliás, viabilizou vãos mais largos e uma impressão maior de movimento às esculturas – vide Curved Form (Trevalgan) (1956). Mas, mesmo para além do bronze, no bailado entre os polos espaciais do volume e do vão, a vitalidade buscada por Hepworth parece reluzir pela sugestão iminente do dualismo entre matéria e memória que, para Henri Bergson, caracteriza os seres vivos.

Em outras palavras, os vazios de Hepworth parecem espiritualizar seus volumes. Pois, se estes carregam uma densidade material, aqueles ganham peso de existência através de uma densidade relacional. Em alguns casos, como em Oval form with strings and color (1966), essa densidade relacional chega ao ponto de se materializar por meio de linhas metálicas que atravessam o vazio. Assim, os volumes são o que dá corpo à carga de relações implícitas pelo vão. O resultado é uma expansão dupla da obra: ao mesmo tempo extensiva, pelo volume, e intensiva, pelo vazio – em um movimento que recria constantemente o espaço.

Curiosamente, é uma obra que não traz orifícios nem interiores ocos que parece refletir com a maior clareza essa interação dual. Falo de Three Forms (1935), peça feita em mármore branco, onde três formas arredondadas e distintas entre si são dispostas de modo assimétrico em um plano-pedestal também de mármore. Enquanto duas das formas são mais elípticas, diferindo entre si pelo tamanho, uma das formas é esférica. Carregando o sentido de uma fixidez implicada pela materialidade da pedra, Three Forms parece dialogar com a tradição pictórica da natureza morta, mas de forma bastante destilada: por um lado, os três volumes, sendo cada um absolutamente uniforme e liso, pouco dizem sobre si (não figuram), por outro lado, a relação entre esses três elementos fica posta de modo tão incontornável quanto a presença de tais volumes, pela própria triangulação dos corpos.

Three Forms, 1935. Foto: Barbara Hepworth © Bowness.

Trata-se de uma peça célebre, realizada por Hepworth meses depois de dar à luz trigêmeos. E essa informação biográfica, claro, dá ainda mais densidade à obra, enquanto meditação potente acerca de uma trindade, da ideia do “três” e da relação entre esses três corpos, distintos entre si mas pertencentes ao mesmo plano. Contudo, saber dos trigêmeos também suscita questões sobre o processo artístico, para além do resultado: não só sobre a relação entre esculpir e gerar, que dialoga com aquela ideia vitalista da escultura-vivente, mas também sobre o penoso processo braçal, físico, de polir meticulosamente aquelas formas de mármore até que ficassem perfeitamente lisas pouco tempo depois de parir – e tendo que cuidar dos filhos. Certamente, os dispositivos patriarcais, que já dificultavam o desenvolvimento artístico de Hepworth por ser mulher, pesaram ainda mais mediante a função materna.

Série Skiagram 1949. Fotos: Barbara Hepworth © Bowness.

Série Skiagram 1949. Fotos: Barbara Hepworth © Bowness.

E foi a hospitalização de uma de suas filhas que fez com que a artista desenvolvesse uma série de desenhos que formam uma parte importante da mostra, por estabelecerem um desvio momentâneo, para além da escultura. Ao desenvolver uma amizade com o cirurgião que operou a filha dela ao fim dos anos 1940, a artista notou proximidades entre a sua prática e a do médico – pela forma de olhar e, especialmente, pela forma de manipular. Isso fica singularmente evidente na série conhecida como Hospital Drawings, cujos traços rápidos e leves percorrem toda a cena que apresenta o cirurgião ao centro. Em todos os desenhos, há um enfoque especial dado precisamente aos olhos e às mãos dos médicos.

Pouco depois, em 1949, Barbara Hepworth se instala em St. Ives, ao sudoeste da Inglaterra, onde morou e produziu até seu falecimento, em 1975. Para além de madeira, pedra e bronze, mais tardiamente, Hepworth passou a trabalhar também com outros materiais, tais como cristal e alumínio. Curada por Eleanor Clayton, que é também biógrafa da artista, além de um grande número de obras, a exposição conta com materiais biográficos tais como cadernos, ilustrações e fotografias, que contribuem para uma contextualização da arte em relação à vida da artista. Salvo a primeira sala, focada em formas escultóricas importantes para o trabalho de Hepworth (de pé, em dupla, e fechada), a estrutura da exposição é mais ou menos cronológica.

Curved Form, Bryher II) 1961. Fotos: Barbara Hepworth © Bowness.

Curved Form, Bryher II) 1961. Fotos: Barbara Hepworth © Bowness.

E, diante dessa vastidão, sob o risco de homogeneizar as produções de Barbara Hepworth, bem diferentes entre si, tentei aqui destilar uma questão central para este curto texto: a da dança incessante entre o volume e o vazio na formação de uma vida da escultura. O trabalho de Hepworth ensina não só sobre a possibilidade dessa vida escultórica, mas também que ela só floresce a partir do momento em que o próprio espaço é destrinchado e reinventado por entre curvas e vãos.

Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e
Cultura/UFRJ, com especialização em cinema, corpo e imagem
de arquivo. Mestre em Comunicação Social/PUC Rio (2016).

BARBARA HEPWORTH: ART & LIFE • THE HEPWORTH
WAKEFIELD • INGLATERRA • 21/5/2021 A 27/2/2022

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