
Illustrations for Oscar Wilde’s Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate

Illustrations for Oscar Wilde’s Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate
Com pouco mais de seis anos de produção, Aubrey Beardsley não apenas marcou uma época e inseriu seu nome na História da Arte, como abordou em sua obra assuntos que parecem ter cada vez mais espaço nas discussões contemporâneas, mesmo passado mais de um século de sua morte. Isso se evidencia na recentemente reaberta exposição que leva o nome do artista na Tate Britain, em Londres. A maior mostra dedicada a Beardsley nos últimos 50 anos (que encerraria em maio, mas devido ao fechamento da instituição, devido à pandemia, segue até setembro) traz os principais trabalhos do artista, indica suas influências, o quanto sua produção marcou sua geração e o que viria posteriormente na arte e ainda faz paralelos com discussões relevantes para 2020, como sexualidade, gêneros fluidos e muitas outras. De aparência magra, elegante e ostentando certa artificialidade, Aubrey Beardsley exibia uma imagem que fazia com que fosse facilmente associado a certa morbidez presente em parte de sua geração.
Morbidez essa que se refletia em sua obra e se enfatizava por sua própria biografia. Diagnosticado com tuberculose aos sete anos, em toda a vida dele, Aubrey teve que conviver com a sombra da morte o rondando: durante sua carreira, teve ataques recorrentes, chegando a sofrer hemorragias pulmonares que, muitas vezes, o incapacitavam de trabalhar ou sair de casa. Ainda assim, antes de sucumbir à doença de forma precoce, aos 25 anos de idade, trabalhou intensamente e legou ao mundo uma vasta produção com mais de mil ilustrações, chocando e deleitando os espectadores com obras em traços delicados e sinuosos, pelos quais explorava o erótico, o grotesco e o satírico.

How Arthur saw the Questing Beast,1893. Victoria and Albert Museum
Composta por mais de duzentas obras divididas em 15 diferentes núcleos, a mostra na Tate é a primeira dedicada ao artista na instituição desde 1923. Além de suas obras icônicas, os curadores Stephen Calloway, Caroline Corbeau-Parsons e Alice Insley selecionaram diversos trabalhos que lhe serviram de inspiração, influenciando definitivamente sua produção, como as obras de Edward Burne-Jones e Gustave Moreau, e as gravuras japonesas, nas quais buscou referências importantes para seu trabalho, como a exploração de grandes áreas vazias.
Uma das primeiras salas da mostra é dedicada já a um de seus principais projetos, sobre o qual se debruçou por cerca de dois anos: entre 1892 e 1894, desenvolveu 353 desenhos para Le Morte Darthur, uma versão da lenda do rei Arthur, publicada por J. M. Dent, incluindo alguns desenhos de menor escala, outros de páginas duplas e até mesmo cabeçalhos para os capítulos, entre muitos outros. Nesse período, confrontado com o resultado de impressões e reproduções, foi gradualmente adaptando e aprimorando seu trabalho de acordo com necessidades técnicas da época, ao mesmo tempo em que começava a criar um estilo particular e a inserir, aos poucos, figuras grotescas e mitológicas em sua produção.

The Lady with the Rose Verso, 1897. Harvard Art Museums/Fogg Museum, Bequest of Scofield Thayer
Outro grande destaque na mostra vai para as ilustrações de Salomé. Escrita por Oscar Wilde, em 1893, a peça narra a história da personagem bíblica, filha da rainha Herodias, que pede a Herodes a cabeça de João Batista em uma bandeja. Depois de fazer um desenho inspirado pelo espetáculo, Aubrey foi convidado por Wilde (de quem veio a se tornar amigo próximo) e seu editor, John Lane, para ilustrar a publicação do texto em inglês. O material inclui uma série de imagens recheadas de sensualidade, erotismo e flerte com a morte. Os desenhos roubaram a cena a tal ponto que se tornaram praticamente indissociáveis do espetáculo, sendo, muitas vezes, usados como referências imagéticas essenciais para suas montagens ao redor do mundo.
Em uma das principais obras desta série, The Climax, podemos ver o momento icônico em que Salomé segura a cabeça decapitada de João Batista próxima à sua própria. Na ilustração, a delicadeza dos traços de Beardsley se contrapõe à agressividade do assassinato que ali se registra. O contraste se apresenta ainda na forma sinuosa e elegante com a qual o sangue escorre da cabeça do santo católico, desembocando em uma poça com formas curvilíneas, de onde nasce uma singela flor. O uso preciso de grandes espaços pretos e brancos ajudam a dividir a imagem em dois planos e a destacar cada detalhe narrativa. Já em Enter Herodias, Bearsdley se permitiu inserir uma homenagem ao próprio autor da peça e incluiu uma caricatura de Wilde abraçado à própria publicação de Salomé, no canto inferior direito. Essa foi uma das imagens que sofreu com a censura da época (das 18 imagens criadas para a peça, apenas 10 foram publicadas na primeira impressão), obrigando Beardsley a cobrir a nudez de um personagem com uma folha de figueira. Apesar de atender à ordem, o espírito provocador do artista tratou de inserir velas e candelabros em uma alusão direta ao falo encoberto.

The Climax, 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate
Entretanto, se na ilustração para Salomé, Aubrey teve que cobrir os genitais nos personagens, o mesmo não aconteceu em parte considerável de sua produção. Tanto que os desenhos com alto grau de erotismo e nudez mais explícita recebem uma sala só para si na mostra da Tate, incluindo toda uma sorte de genitais, falos gigantescos (como os de The Examination of the Herald e The Lacedaemonian Ambassadors) e até mesmo violência sexual (Juvenal Scourging a Woman). Ainda que com uma vasta produção tendo o sexo como temática principal, a sexualidade do próprio artista permanece um mistério (cercado de indícios paradoxais que vão de incesto com irmã e confidente Mabel, a outros que indicariam assexualidade).

The Examination of the Herald, 1896.

Illustrations for Oscar
Wilde’s Salome,1893.
À direita
Apesar disso, no campo de sua produção, Aubrey se mostrava interessado em retratar diversas formas de sexualidade, incluindo a homossexualidade tanto entre homens quanto entre mulheres. Esta aparecia em suas obras não apenas de forma literal, mas, por vezes, de maneira apenas indicada, como em Black Coffee, em que duas mulheres tomam um café juntas, sentadas lado a lado, mas com diversas insinuações que levam a crer em uma relação afetiva entre elas.

Black Coffee, 1895.
Pesquisadores mais recentes consideram o artista pioneiro em representar o que hoje chamamos de identidade queer, ainda que as nomenclaturas, siglas e discussões atuais sobre as diversas identidades LGBTQIA+ não existissem na Europa de fins do século 19. Sobre esse aspecto, é bastante interessante assistir ao curta The Art of Being a Dandy, disponível no site da Tate, no qual o curador e historiador Stephen Calloway conversa com a drag Holly James Johnston sobre o artista aos olhos da contemporaneidade, utilizando a associação de Beardsley ao dandismo, para suscitar questões de gênero e do universo drag atual, traçando relações entre os artistas de hoje e a imagem pública que o artista forjou para si em sua época. Cabe ressaltar que o canal da instituição no YouTube também disponibiliza uma visita pela mostra, acompanhada de um bate-papo entre as curadoras Caroline Corbeau-Parsons e Alice Insley sobre a produção do artista. Ambos os vídeos foram recursos utilizados pela Tate para manter a exposição ativa enquanto mantinha as portas fechadas devido à pandemia do novo coronavírus.
Outro ponto fundamental da biografia de Beardsley enfatizada na exposição datada do ano de 1894, quando cofundou e se tornou editor da Yellow Book, revista que se tornaria a publicação mais icônica da década. Seu primeiro volume foi instantaneamente um sucesso que não deixou de gerar inúmeras controvérsias devido ao seu teor ácido, que unia arte e literatura. Em seus primeiros números, Beardsley atuou como editor de arte e produziu grande parte das ilustrações da revista, até que sua relação com Wilde (condenado à prisão por “cometer atos imorais com rapazes”) e uma suposta associação deste com a Yellow Book, levou Aubrey a ser injustamente demitido. Nos anos seguintes, seguiu trabalhando em publicações como a revista The Savoy, e ganhou ainda mais notoriedade com a publicação de The Rape of the Lock.

The Cave of Spleen
Feitas já na fase final de sua vida, essas obras permitem perceber o alto grau técnico e de detalhamento que o artista foi adquirindo ao longo dos anos, e foi se tornando cada vez mais marcante em sua produção. Nesse sentido, pode se pensar na obra The Cave of Spleen, que surpreende por sua riqueza de elementos e mostra o alto nível e domínio técnico que adquiriu ao longo de tão curta trajetória.
Em decorrência da tuberculose, Beardsley morreu no ano de 1898, em Menton, na França, menos de uma década depois de ser contratado para seus desenhos do rei Arthur. Mesmo com um período tão curto de produção, sua obra refletiu sua época de forma tão contundente, que influenciou o trabalho de diversos artistas que vieram posteriormente, como os simbolistas franceses e muitos artistas da Art Nouveau. Sua existência foi tão marcante que a década de 1890 até hoje é chamada por muitos de Período Beardsley.

Self-Portrait, 1892.
British Museum
Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e
Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da
Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.
AUBREY BEARDSLEY •
TATE BRITAIN • REINO UNIDO •
4/3 A 20/9/2020