Há 100 anos nascia Antoni Tàpies, lendário artista catalão que impulsionou a vanguarda europeia do século 20 graças à sua surpreendente habilidade pictórica, cuja poética sempre foi propiciada pelos acontecimentos da história e também pela sua própria vida, interrogando-se profundamente a respeito do sentido da existência durante os últimos anos da sua carreira.
Tàpies, hoje, está glorificado tanto na sua Espanha quanto na Bélgica: no BOZAR – Palais des Beaux-Arts de Bruxelas, onde se iniciou a itinerância da retrospectiva La práctica del arte, a mais completa exposição dedicada a ele até esse momento, recém-chegada em março em Madri – no Centro de Arte Reina Sofia – e seguindo e fechando o ciclo na sede da Fundação dele em Barcelona, no próximo mês de janeiro.
Levando o nome do livro homônimo do artista, publicado pela editora Ariel, em 1973, nas salas do Reina Sofia condensam-se mais de 220 trabalhos, cuja poética encara a luta pela liberdade contra as armadilhas das políticas totalitárias: antifranquista, fervente promulgador da independência da Catalunha, participante dos movimentos estudantis principiados em toda a Europa após o “Maio Francês” de 1968, Tàpies denuncia os crimes da Segunda Guerra Mundial e também, quase 50 anos depois, a limpeza étnica e o genocídio que houve nos Bálcãs, a partir de 1991.
Como em uma partitura musical, La práctica del arte é um crescente de obras de tirar o fôlego, rigorosamente dispostas: curada pelo ex-diretor do Reina Sofia, Manuel Borja-Villel – antes diretor da Fundação Tàpies desde a sua abertura, de 1990 a 1998, e, também, cocurador da última Bienal de São Paulo, a exposição não conta com um desacerto.
Solene, como os temas alcançados pelo artista em seu percurso geral, a mostra mexe com nossa percepção, onde esbarramos diante das formas de telas que se transformam em esculturas, visões de inúmeros abismos pertencentes à condição humana.
Aproximando-se à arte devido a uma doença pulmonar que o obrigou a ficar em um sanatório, onde passou o tempo copiando obras de artistas, tais como Pablo Picasso ou Vincent Van Gogh, Tàpies se formou em Direito; mal exercitou a profissão de advogado, criando, em 1948, em Barcelona, o grupo artístico Dau al Set. Em seu nome, cujo significado é “A sétima face do dado”, já se escancarava a aura enigmática de uma criação ansiosa que queria ir além do sensível. Aproximando-se ao Dadaísmo e logo ao hiper-realismo e ao existencialismo, Dau al Set sempre teve nele o maior rigor político em recusar a ditadura, pretendendo agitar a sociedade intelectual catalã.
Nos primeiros anos da década de 1950, a pintura de Tàpies seguiu, exatamente, os padrões do Surrealismo – o movimento criado em 1924, por André Breton – quer na dimensão onírica dos sujeitos representados, quer no estilo: vê-se claramente na homenagem feita ao poeta espanhol Frederico García Lorca (1951), figura que acompanharia o artista em toda a sua trajetória.
Influenciado pela filosofia de Nietzsche, pelas visões de Jean-Paul Sartre, pela literatura de Dostoiévski, pela música do Romantismo e Richard Wagner, pelas teorias sobre a arte de Martin Heidegger, Antoni Tàpies deixaria em breve a figuração para transformar sua pintura em corpos abstratos. Acercou-se rapidamente das formas do pintor italiano Alberto Burri, Mestre do Movimento Informal, com o qual compartilhava as ideias antifascistas e a vivência da Segunda Guerra Mundial em primeira pessoa, mesmo a Espanha tendo uma política neutral. Como as obras de Burri iam se compondo por feridas, costuras, queimaduras, rachaduras, espaços da cor de sangue, eis que as de Tàpies se tornavam “pinturas da Histórias” utilizando os mesmo materiais pobres e industriais: concreto, areia, madeira, verniz que, inclusive, iam deformando as telas, desafiando a força de gravidade com o peso da consciência que o artista jogava à parede, sem medo das reações, tanto do público quanto das forças opressoras do país, outrora sob a ditadura de Francisco Franco.
Já internacionalmente reconhecido no começo da década de 1960, Tàpies participou da terceira Documenta, em Kassel, em 1964; hoje, no Reina Sofia, podemos admirar algumas das grandes telas pintadas sob “encomenda” do professor Arnold Bode, cujo intuito deu à luz a manifestação alemã, em 1955.
Destaca-se, entre as outras, Ocre para Documenta, uma grande pintura criada misturando areia e cimento, hoje pertencente à coleção permanente do Museu Luisiana em Copenhagen, na Dinamarca. Na mesma sala também está a misteriosa Pintura azul com arco de círculo (1959): noturna, o azul brilhante relembrando o tom criado pelo artista francês Yves Klein, essa pintura nos permite alçar a magia e toda a empatia que, de vez em quando, as grandes obras abstratas trazem consigo.
Ecler com violino (1956) é exatamente o que representa: alguém poderia rever nela mais uma semelhança com outro artista italiano da vanguarda de 1960, Jannis Kounellis, mas, de certo, o Manifesto da Arte Povera veio só em 1967 e os violinos do artista grego, que escolheu Roma como sua casa, apareceram na sua produção somente na década seguinte.
Tàpies foi precursor, e atrevido também, continuamente desafiando – do princípio da sua carreira até o fim – o abismo que divide a realidade e a abstração, quase como se suas formas viessem criadas por uns devaneios, adivinhando as possibilidades, soprando na poeira do mundo para lhe oferecer uma fisionomia alheia: moderno demiurgo.
Enfim, La práctica del arte não é somente um título, mas o começo para uma aventura: é um ato corajoso, ainda mais precioso nesses anos de conflitos sacudindo a área europeia e a do Oriente Médio; é um hino para resgatar a dignidade da palavra “política” associada à criação; é o despertar da importância de não nos calarmos para interagir com energia contra os abusos e a falta de liberdade utilizando as nossas peculiaridades, a nossa identidade.
Ilumina-se na nossa mente a figura do jornalista Pereira, diretor da página cultural de um jornal português na época de Salazar, protagonista do romance Afirma Pereira, do escritor italiano Antonio Tabucchi: uma nova consciência vinda graças aos encontros com dois jovens “revolucionários” durante uma breve temporada, em 1936, levaria o covarde Sr. Pereira a sair do pavor e da indiferença à ditadura, vingando de vez todas as vítimas do regime por meio de… um necrológio, isto é, golpeando no silêncio das mansas regras caladas do alto.
É o que a arte faz, por vezes.
Matteo Bergamini é jornalista, crítico
e escritor especializado em Arte
Contemporânea. Colabora com a
revista italiana ArtsLife e com a
portuguesa Umbigo Magazine.
ANTONI TÀPIES: THE PRACTICE OF
ARTE • MUSEO REINA SOFÍA • VENEZA
• 21/2 A 24/6/2024
FUNDACIÓ ANTONI TÀPIES •
BARCELONA • 17/7/2024 A 13/1/2025