No barragan no cry, 2002. Foto: © Anri Sala

DASARTES 126 /

ANRI SALA

ANRI SALA E SEU TRABALHO MULTIMÍDIA, INCORPORANDO MÚSICA, CINEMA EXPANDIDO, PINTURA E A PRÓPRIA ARQUITETURA QUE CIRCUNDA AS INSTALAÇÕES, PARECE DOBRAR E DISTENDER A FINA PELÍCULA ESPAÇO-TEMPORAL QUE CHAMAMOS “PRESENTE”, POR MEIO DE UMA EXPERIÊNCIA SINGULAR DA DURAÇÃO E DA MEMÓRIA

ANRI SALA E A DURAÇÃO DO ESPAÇO

Transfigured Moth, 2015. Foto: © Anri Sala.

Até janeiro de 2023, a Pinault Collection dedica salas do museu da Bourse du Commerce, em Paris, à exposição Une seconde d’éternité (Um segundo de eternidade), juntando 18 artistas cujos trabalhos se debruçam sobre a possibilidade de gerar outros espaços-tempos no interior do museu. Apesar da rica variedade de peças e abordagens, este texto trata especificamente das obras de um desses 18: o albanês Anri Sala, que conclui a mostra.

Anri já ganhou diversos prêmios internacionais de artes, incluindo o Prêmio de Jovem Artista na Bienal de Veneza, de 2001, e o último Vincent Award, concedido pelo Gemeentemuseum Den Haag, em 2014. Em 2013, ele representou a França na Bienal de Veneza, onde voltou a expor em 2017. Também participou das bienais de São Paulo (2010) e de Berlim (2006). Mais recentemente, fez exibições solo em diversos países, contando com Áustria, Estados Unidos, Espanha, Luxemburgo e Itália só nos últimos três anos. O artista emergiu do pós-guerra civil da Albânia (1997), sendo descoberto pelo mundo da arte com Intervista (1997), obra com a qual concluiu seus estudos de cinema em Paris, ao retomar e reconstituir uma entrevista concedida por sua própria mãe na década de 1970, traçando uma densa discussão sobre história, linguagem, memória e representação. Desde então, fixou a relevância de seu nome no cenário internacional da arte contemporânea.

Resting Spells, 2018. Fotos: © Anri Sala.

Le Clash, 2010. Fotos: © Anri Sala.

Os três meios principais em que caminham os trabalhos do artista são a música, o cinema e a arquitetura (ou o espaço). Por meio desses três, o artista cria outros modos de ouvir, ver e estar. Como em Air Cushioned Ride (2006), onde caminhões enfileirados em um estacionamento ao ar livre, por seu tamanho e organização espacial, afetam as frequências de rádio no carro e mudam espontaneamente a música tocada no automóvel – o vídeo de Sala capta audiovisualmente esse movimento sonoro-arquitetônico. Ou ainda como em Le Clash (2010), em que o som de The Clash, tocado por uma máquina de música à manivela, faz vibrar todo um prédio colorido que amplifica a canção pelos arredores. Ou, enfim, como em Answer Me (2008), no qual a tensão de um relacionamento heterossexual preenche um espaço percussivamente por meio dos sons de um kit de bateria, das tentativas de conversa por parte da mulher e de um Doldrum – instrumento inventado pelo próprio Sala, em 2008, que se toca sozinho. Formado em cinema, seus vídeos costumam ser mais narrativos e cinematográficos do que o que se costuma encontrar em museus – vide o brilhante Long Sorrow (2005). E apesar de contar também com esculturas, pinturas e outros elementos, talvez a espinha dorsal de sua obra esteja mesmo nas relações entre som e imagem, som e espaço, som e memória/história.

Mas nenhuma das obras citadas anteriormente consta na mostra da Pinault Collection deste ano. Ali, encontraremos, por exemplo, o trabalho pictórico Untitled (Maps/Species) (2018-22), onde Anri Sala pintou mapas distorcidos de países e os coloca em relação com ilustrações de peixes “exóticos” feitos por exploradores do século 19. A “arquitetura” da folha de papel, seu tamanho e forma de emoldurar representações, obriga os antigos exploradores e o próprio Sala a contorcerem suas ilustrações para que caibam na página. Assim, os dípticos acusam uma gama de tensões no interior do dispositivo ocidental da representação.

Na mostra, encontraremos também Nocturnes (1999), vídeo em que Sala entrevistou dois homens, um ex-soldado apaixonado por peixes e um jovem viciado em videogames; entre planos da interação do primeiro com a fauna aquática de um aquário e planos das mãos ansiosas do outro, desenvolvem-se falas que nos levam a uma reflexão sobre a solidão no mundo contemporâneo.

Há ainda Take Over (2017), em que duas telas imensas mostram as mãos de pianistas que tocam músicas diferentes. Em uma delas, La Marseillaise, na outra, A Internacional. A letra desta última havia sido concebida em 1871 para ser cantada por sobre La Marseillaise; ganhando arranjo próprio apenas em 1888. Assim, são justapostos dois hinos políticos canônicos, revolucionários, que, no entanto, sofreram múltiplas transformações em seus sentidos ao longo da história – por exemplo, com o patriotismo da extrema direita francesa, ou com a queda do muro de Berlim.

Já no auditório da Bourse du Commerce, mais uma obra: 1395 Days Without Red (2011). Também uma tela grande, posicionada no palco do auditório. O média metragem de ficção, de pouco mais de 40 minutos, leva-nos pelas ruas de Sarajevo, acompanhando uma musicista a pé, a caminho de um ensaio com a Orquestra Filarmônica da cidade. O espaço e a arquitetura da cidade, contudo, não são seguros, dado o contexto do cerco à capital da Bósnia – que historicamente durou quatro anos (1.395 dias). Nas encruzilhadas, portanto, é preciso passar correndo, pois há atiradores de elite posicionados. A tensão e as diferenças de ritmo na caminhada são acompanhadas pelo primeiro movimento da Sinfonia nº 6 em B menor, de Tchaikovsky, Pathétique – cantarolada pela protagonista e tocada, depois, pela orquestra reunida. A imagem manifesta os níveis social e subjetivo do conflito armado em planos abertos da cidade e close-ups da “heroína”, tanto quanto o som os manifesta por meio do som dos tiros e da obra do compositor russo.

Mas o coração da mostra de Anri Sala no museu da Bourse du Commerce é, de fato, Time no longer (2021), vídeo exibido também em uma grande tela, acompanhado de som e efeitos luminosos. A curvatura do longo ecrã ao mesmo tempo acompanha e desafia as características arquitetônicas circulares da Rotunda, sala onde está o trabalho. Na imagem, feita de computação gráfica realista, vemos uma vitrola flutuando erraticamente em gravidade zero dentro de uma cabine espacial inabitada. Sua agulha volta e meia sai do disco que está sendo tocado, interrompendo a música constantemente. Assim, as notas tocadas por um clarinete solitário parecem se perder entre seus próprios ecos e os ruídos graves das vibrações da cabine estelar inóspita.

Esses sons se espalham fisicamente pela Rotunda da Bourse du Commerce, contaminando-a. O tamanho da tela nos impele a nos perdermos na imagem, experimentando-a não só com os olhos, mas de corpo inteiro. É como se o ecrã inventasse uma janela de ficção científica pós-apocalíptica e pós-humana no meio da arquitetura classicista da sala. O contraste é gritante, transforma o espaço. A abóbada de vidro que cobre a sala deixa de ser um elemento clássico, ensaiando-se como mais uma janela da nave – e, de fato, é o céu que vemos através dela. Até mesmo a gravidade, se nos entregarmos à imagem por tempo suficiente, parece deixar de operar com rigidez. Dobrando o espaço em si mesmo, vibrando-o e esticando-o pela duração do vídeo, a obra forma um todo angustiante e inóspito, ativa a visão de uma distopia não só do futuro, mas do presente. Restos de uma humanidade já ida, cujas únicas revoluções que sobreviveram são as que o disco de vinil traça literalmente, em torno do próprio eixo.

Anri Sala conta que o gatilho para que ele concebesse essa obra foi conhecer a trágica história de Ronald McNair, astronauta, físico e músico americano que planejava tocar um solo de saxofone em gravidade zero. Essa seria a primeira vez que uma música original seria gravada no espaço. Contudo, McNair era um dos tripulantes da Challenger, ônibus espacial que explodiu 73 segundos após ser lançado, em 1986, não deixando sobreviventes. Diante do desastre, e do próprio caráter trágico da história (que nunca volta), diante, enfim, de um desejo musical que não pôde se concretizar, Anri Sala não buscou reconstituir qual teria sido a música tocada por McNair, ele buscou, segundo palavras do próprio artista à jornalista Judith Benhamou, “qual é a música de uma intenção” não realizada. Assim, ele chegou a um movimento do Quarteto do fim dos tempos, composto por Olivier Messiaen, em 1941, enquanto soldado francês aprisionado pelos nazistas. Intitulado Abismo dos pássaros, o trecho é um solo de clarinete. Interrompido múltiplas vezes pelo deslocamento da agulha de uma vitrola abandonada no espaço, esse solo, ou melhor, seus ecos e fantasmas, atravessam as paredes da Rotunda e os corpos de quem tenta ouvi-lo com visões do Apocalipse antropogênico. É um anticanto da sereia, uma “sirene”, que angustia em vez de maravilhar.

Com as constantes telas imensas e os fartos sons, o caráter oceânico do audiovisual vem à tona. A duração da imagem se “especializa” pela simples imensidão do que vemos e as vibrações sonoras tomam conta do lugar, transformando-o também em outra forma de duração – pois a arquitetura que vibra passa a se mover, deixa de ser só espaço, torna-se também tempo, experiência, memória. É, de certa forma, o dispositivo arquitetônico dos cinemas e das salas de concertos recuperado de outro modo, trazido para o museu; inventando, ali, uma abertura, outro espaço possível.

Nicholas Andueza é editor assistente da revista Eco-Pós,
assistente técnico da Cinemateca do MAM, pesquisador
em cinema, montador audiovisual e câmera. Doutor em
Comunicação pela UFRJ e em História pela Paris 1 –
Panthéon Sorbonne

ANRI SALA: TIME NO LONGER • BOURSE DE COMMERCE
• PARIS • 14/10/2022 A 16/1/202

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