Um espelho aberto para o mundo
O quanto a arte nos ajudou durante esta pandemia! O confinamento nos retirou o direito de aproveitar os espaços culturais, porém, para citar o grande Alberti, a pintura é uma janela aberta para o mundo. Com isso em mente, museus do mundo inteiro abriram suas portas virtuais para todos os usuários da internet, permitindo-nos sonhar com um amanhã que continua incerto.
Enquanto os espaços culturais abrem suas portas progressivamente, uma exposição unindo arte e ar livre nos dá a oportunidade de restaurar nossa relação com o mundo exterior. Anish Kapoor at Houghton Hall, em Norfolk, curada por Mario Codognato, abre sua casa e seus jardins para o público, onde uma mostra das esculturas do artista é prolongada até o primeiro de novembro. O universo de Kapoor é exposto nos jardins e, dentro da casa de Houghton Hall, 24 esculturas, desenhos e outros trabalhos confrontam o espaço e a arquitetura clássica da casa.
Similar à exposição nos jardins do palácio de Versalhes em 2014, Houghton Hall repete o mesmo esquema onde a confrontação desse tipo de arquitetura secular com as esculturas de Anish Kapoor fortalece a noção do espaço criando ademais um diálogo entre ambas. Sky Mirror (2018) transforma e reflete o céu de cabeça para abaixo em um espelho de cinco metros de diâmetro. Sua monumentalidade poderia nos parecer excessiva, entretanto, o sentimento de infinito borra sua forma no mesmo instante.

Sky Mirror, 2018. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins
O que sempre impressiona com a disposição das obras de Anish Kapoor em um espaço aberto desse tipo é a capacidade de criar uma visão digna de ficção científica. Quando olhamos para Untitled (1997), instalada em frente a Sky Mirror em uma grande planície, imagens de Duna (1984), de David Lynch; Melancolia (2011), de Lars Von Trier, ou ainda 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrik, vem à mente. O mesmo pode ser dito de Eight Eight (2004) e Rectangle Within a Rectangle (2018), inclinadas entre formas geométricas, brutas e orgânicas, todas se fundem às árvores e aos arbustos minuciosamente podados dos jardins. A fachada monumental, típica da arquitetura palladiana no uso da ordem colossal combinada à ordem iônica, continua se destacando das obras monolíticas.

Untitled, 1997

: Eight Eight, 2004.
© Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins
Dentro, espelhos circulares de cores variadas refletem o interior da casa também invertido. Posicionados em cima de volutas, eles se fundem dificilmente ao lado dos bustos e da arquitetura de estilo clássica. Esses gazing mirrors (ou balls), reminiscentes da obra de Jeff Koons, são apenas um pretexto: cores que lembram a cultura e a origem indiana do artista, objetos que refletem a história colonial da Grã-Bretanha, os espelhos coloridos de Kapoor convidam e induzem o espaço interior de Houghton Hall. Passando em frente a eles, as cores mudam progressivamente, dando-nos um sentimento de vertigem. Houghton Hall foi construída por Sir Robert Walopole, primeiro ministro da Grã-Bretanha, em 1722. Ele conta com a ajuda dos grandes arquitetos Colen Cambell e James Gibbs, e ambos vão criar um dos melhores exemplos de arquitetura palladiana do país. Passados para a família Cholmondeley no final do século 18, a casa e os jardins, nacionalmente premiados, estão abertos ao público desde 1976. Se a história de Houghton Hall e a obra de Anish Kapoor parecem opostas, a Houghton Art Foundation tem uma missão precisa. O propósito da HAF é criar uma coleção de arte contemporânea e mostrá-las em um décor histórico; esta exposição de Kapoor vem depois de outras como James Turrell (2015), Richard Long (2017), Damien Hirst (2018) e Henry Moore (2019).

Untitled, 1997

Untitled, 2018, granite. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins

Cobalt Blue to Apple and Magenta mix 2, 2018. Spanish and Pagan Gold to Magenta, 2018. Garnet
to Apple Red mix 2 to Pagan Gold to Spanish Gold, 2018. Spanish Gold and Pagan Gold mix, 2019.
© Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020

Anish-Kapoor-Grace-Imminence
Um aspecto interessante dessa exposição reside no diálogo entre a obra de Anish Kapoor e as ideologias arquitetônicas de Andrea Palladio. De fato, na tradição renascentista, a casa e seus diferentes componentes devem se organizar como o corpo humano e ser um reflexo de nosso modo de viver. Outro aspecto da filosofia palladiana é a continuidade entre o interior e o exterior da casa; a decoração e as ordens (dórica, iônica, toscana, coríntia, colossal…) devem corresponder não só aos arredores da casa e da natureza, mas também ao status social do proprietário. Nesse sentido, os espelhos de Kapoor refletem o exterior e o interior para formar um espaço só onde os dois se apoiam e dialogam. De fato, como diz Palladio em seus Quattro Libri dell’architetura (1570), o arquiteto tem que aplicar toda sua diligência, de maneira que todos os edifícios tenham fundações da natureza e outras que demandam o uso da a arte, onde entra Anish Kapoor.

Sophia, 2003.
© Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020
ANISH KAPOOR EM HOUGHTON
HALL • LONDRES • REINO UNIDO •
12/7 A 01/11/20
Leonardo Ivo é estudande em
história da arte em Sorbonne,
Paris e colaborador de mídias
sociais do artista Gonçalo Ivo.