
O Jardim de Amilcar de Castro, CCBB Brasília. Fotos: Vicente de Mello
A história deste jardim está ligada a duas cidades: uma no interior de Minas, outra a “cidade nova”, capital do país, instalada no centro do Brasil profundo. Está também profundamente alicerçada na amizade entre o artista e o maior colecionador particular de suas obras… e à “invenção” de um museu a céu aberto no meio das montanhas de Minas Gerais.
Brasília é contemporânea das pesquisas neoconcretas; a decisão de sua criação convive com o nascimento das obras do mestre do corte e da dobra. Mas as grandes esculturas em aço de Amílcar, curiosamente, não pousaram na capital. Foram exibidas pela primeira vez na capital, em 2000, na abertura do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Agora voltam para formar um jardim em diálogo com os vastos espaços abertos do Centro e com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Esse é um belo e necessário encontro.
O jardim é, então, o lugar onde se pode vivenciar a experiência estética do embate entre as grandes obras tridimensionais criadas pelo artista, encontradas em tantos espaços públicos do país e do exterior, e o corpo do observador. Aqui, ele se transforma em um caminhante que passeia pelos gramados e se encontra com a bela cor de ferrugem das superfícies, que ganham o espaço por recortes e dobraduras em um desafio ao peso do material do qual são feitas. Elas estão entre as árvores, os prédios sinuosos de concreto e o céu de Brasília. Para nós, olhadores, é proposto o percurso entre elas.
Márcio Teixeira (1947-2021) foi colecionador e amigo Amílcar de Castro. Foi também um dos criadores desse projeto, que ele não poderá ver finalizado. Antes deste jardim pousado na cidade modernista – localizado em um espaço que é obra de Oscar Niemeyer –, as esculturas ocupavam outro lugar: a pequena cidade mineira de Dom Silvério, terra natal de Márcio. Sua malha urbana recebeu, a partir do início deste século, grande quantidade das peças monumentais em corte e dobra, da cor do ferro oxidado. No caminho que acompanhava o rio do Peixe, nas praças, em frente à igreja ou a outros prédios públicos, podia-se encontrar a forma neoconcreta em diálogo com a arquitetura de matriz barroca. Esse era o princípio do sonho do museu de Amílcar de Castro… que não foi realizado. Assim, por alguns anos, e em homenagem a Teixeira, o museu de Dom Silvério é aqui.
DO CAMINHO DO RIO ÀS VEREDAS DO JARDIM
“Faço esculturas para participar do espaço público”.

O Jardim de Amilcar de Castro, CCBB Brasília.
Fotos: Vicente de Mello
Certo espelhamento do percurso proposto na urbe de filiação colonial agora é trazido para a outra, modernista. Somos convidados a ver um conjunto de obras que dialogam com a natureza e com o desenho urbano proposto. Diferentemente de suas versões monumentais em praças, parques e prédios públicos, onde oferecem sua visão solitária, elas agora podem ser vistas em conjunto. E o que esta visão nos propõe? Talvez o jogo das formas que se complementam, ou as diferentes possibilidades do embate entre artista e material, infinitas… Toda cidade é um possível palco para a arte. Abrigando um conjunto significativo de obras, ela democratiza a percepção da articulação de pensamento do artista.
As esculturas de Amílcar de Castro não têm títulos nem numeração. O que tal anonimato das formas pode nos dizer? Talvez possamos tracejar o caminho de sua concepção. O escultor-poeta joga com as configurações. Ele nos diz: “Eu não tenho plano, sou improvisador do momento”; porém, há o rigor da figura geométrica. Sem qualquer rastro de narrativa, o foco é a apreensão sensível da obra. Não há nada além da experiência de desdobramento da matéria original. O que a peça nos desafia a perceber é a relatividade entre a massa, o peso e a luz que atravessa a forma, deformando-a, transformando-a. Daí que todo o embate com a obra se dá entre a decodificação e a suposição. Geometria da invenção.

Acervo Cabra, Coleção Márcio Teixeira.
Foto: Vicente de Mello.
Uma proposição simples pode demandar enorme complexidade. A transformação da chapa metálica plana em volume, operada pelo artista, o corte diagonal, perpendicular ou paralelo na superfície – e o aquecimento do aço para torná-lo dobrável – exige uma operação precisa e extremamente delicada (apesar da matéria-prima). E recria o exercício de ateliê com o papel – do desenho ao recorte e à dobradura, na execução da maquete – em matéria muito mais resistente. Seguindo o mesmo princípio, na escultura não há solda nem parafusos ou arrebites. Não há necessidade da base. A imensa chapa recortada e dobrada toma o espaço; sustenta-se em seu próprio equilíbrio. Pura leveza. O artista afirma: “Tenho fé na forma que não deixa resto”.
Observando o jardim de esculturas, é possível depreender o repertório do artista marcado por quadriláteros e círculos, de onde parte a subversão dos planos de sua conformação original. Nos círculos, as incisões e dobraduras se dão predominantemente em linha reta. Já nas formas ortogonais, o corte introduz a incisão em linhas paralelas, diagonais ou curvas. Algumas dessas obras trazem também outro experimento: nos quadriláteros originais, há recortes obtidos por um desenho geométrico, onde Amílcar traça linhas possíveis entre duas formas primordiais (por exemplo, um círculo e um quadrado) obtendo, assim, novas configurações irregulares, recortadas e dobradas a seguir.

O Jardim de Amilcar de
Castro, CCBB Brasília.
Fotos: Vicente de Mello.
Há um conjunto específico de esculturas feitas em aço de 12 polegadas que parecem propor um contraponto às demais. São uma volta ao pensamento a partir dos blocos de madeira, que experimentara previamente, e aos quais voltará mais tarde. Se a matéria trabalhada pelas mãos do artista, de forma geral, subverte seu peso em um leve pouso sobre o chão, no caso dos blocos de aço, é pura confirmação da imobilidade de um monolito. Elas desafiam nosso olhar com recortes, pequenos deslocamentos de suas partes e espaços negativos. Quando pequenas, elas se oferecem a diferentes configurações. Quando em grande escala, o olhar terá que traçar as possibilidades. Assombrosamente.

Cobre, 1952.
Foto: Instituto Amílcar de Castro.

Foto: Instituto Amílcar de Castro.
Aço Inox, Década 1960
O ARTISTA E SUA OBRA
“Gostaria, sim, de mostrar o espaço
ainda não visto
o espaço reinventado de assombros
e sem alarde.”
Amílcar de Castro (1920-2002), um dos artistas maiores do Brasil, foi escultor, gravador, pintor, desenhista, diagramador, cenógrafo e professor. Depois de estudar pintura e escultura figurativa, encontrou-se, nos anos 1950, com as formas concretas de Max Bill e passou a pesquisar geometria e abstração. O resultado seria exposto na Bienal de São Paulo, em 1953, assim como em outras bienais, posteriormente. Formou, com Ferreira Gullar e artistas fundamentais como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Franz Weissmann, o Movimento Neoconcreto, que propunha a ênfase no caráter sensível da abstração geométrica. É autor da histórica reforma gráfica do Jornal do Brasil. Viveu alguns anos nos Estados Unidos, onde desenvolveu sua proposta artística. Voltou ao Brasil e começou a ensinar arte, em Belo Horizonte. Sua escultura passou a compor a paisagem urbana de várias cidades brasileiras e no exterior. Dessa época, touxe a predominância de sua matéria-prima: um tipo de aço que propicia certa ferrugem superficial, marca de seu trabalho (e que o artista sempre associou ao ferro que, em conjunto com o carbono, produz o metal e “… parte do solo e da alma do mineiro”). Desenvolveu seu projeto de transformação do plano em volumetria espacial até o final da vida, com formas de dimensões monumentais e leveza incomparável.
Marília Panitz é mestre em Teoria e História da Arte
pela UnB, é professora do Instituto de Artes da
mesma Universidade. Desde 1991, atua como
pesquisadora e coordenadora dos programas
educativos de grandes exposições.
O JARDIM DE AMÍLCAR DE CASTRO: NEOCONCRETO SOB O CEÚ
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02/2022 A 01/2023