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ALICE NEEL: PEOPLE COME FIRST É A PRIMEIRA RETROSPECTIVA EM NOVA YORK DA ARTISTA AMERICANA ALICE NEEL (1900–1984) EM VINTE ANOS. ESTA AMBICIOSA PESQUISA POSICIONA NEEL COMO UMA DAS PINTORAS MAIS PROFUNDAS DO SÉCULO, UMA CAMPEÃ DA JUSTIÇA SOCIAL CUJO COMPROMISSO DE LONGA DATA COM OS PRINCÍPIOS HUMANISTAS INSPIROU SUA VIDA, BEM COMO SUA ARTE   O […]

ALICE NEEL: PEOPLE COME FIRST É A PRIMEIRA RETROSPECTIVA EM NOVA YORK DA ARTISTA AMERICANA ALICE NEEL (1900–1984) EM VINTE ANOS. ESTA AMBICIOSA PESQUISA POSICIONA NEEL COMO UMA DAS PINTORAS MAIS PROFUNDAS DO SÉCULO, UMA CAMPEÃ DA JUSTIÇA SOCIAL CUJO COMPROMISSO DE LONGA DATA COM OS PRINCÍPIOS HUMANISTAS INSPIROU SUA VIDA, BEM COMO SUA ARTE

 

O Metropolitan Museum of Art sedia uma importante retrospectiva de Alice Neel, uma das pintoras mais radicais e irreverentes do século 20. À primeira vista, pode parecer pouquíssimo coerente introduzir dessa forma uma artista que pintava retratos em meio à efervescência de uma cena cultural que favorecia a abstração. Uma retratista nostálgica nadando sozinha contra a maré das tendências na arte? Definitivamente não. De fato, ela ressuscitou um gênero da pintura que há muito havia sido considerado ultrapassado e fora de moda. Mas Alice não pintava apenas retratos, pintava pessoas. Aliás, a própria pintora foi além ao dizer que colecionava almas, sem que isso soasse exagerado. A americana colocou o corpo humano no lugar de manifestação de um estado psicológico amplo e complexo. No rosto de cada um, expôs camadas profundas da psique. Obcecada por uma abordagem humanística na pintura, afirmou, em 1950: “para mim, as pessoas vêm primeiro”, declaração que agora dá nome à mostra do MET.

Benny and Mary Ellen Andrews, 1972. © The Estate of Alice Neel

As figuras de Alice Neel têm nome e endereço. Ela pintou a família, os amigos, assim como artistas, escritores, ativistas e vizinhos do Harlem Espanhol, onde morou em Nova York. Jamais deixou de notar os que estavam ao seu redor, e com ela de alguma forma conectados. Empática, tratava a todos com a mesma seriedade e intensidade, fosse Andy Warhol ou apenas Antonia e Carmen, duas garotas pobres da vizinhança do Harlem. Mas, em verdade, deve nos importar mais como ela pintou do que quem ela pintou. “Se eu não fosse uma artista, poderia ter sido uma psiquiatra”, disse certa vez. Alice fazia as pessoas se acomodarem sentadas de um jeito confortável e presente, assim como em um divã. Conversava até que estivessem suficientemente à vontade, quando ela podia explorá-los em toda a sua complexidade. Aqui talvez resida a explicação para as poses e posturas não tradicionais nos retratos, obras pelas quais é mais conhecida. As linhas são fortes e, as pinceladas, exuberantes e muito reveladoras. Sem adereços, decorações ou distrações, ela nos convida a atravessar olhares penetrantes. O resultado dessa epifania humana é íntimo e de uma franqueza agressiva, às vezes nada lisonjeira. Afinal, quando vistos por dentro, é assim que somos. Vulneráveis, indefesos. E Alice sabia disso. A humanidade era imperfeita para ela.

Black Draftee (James Hunter), 1965

A arte de Alice Neel é também uma extensão do seu ambiente em Nova York, onde morou por quase sessenta anos. Os retratos oferecem um documentário visual da época, da condição injusta dos residentes de uma cidade em que se lutava diariamente por sobrevivência, igualdade e justiça social. Para ela, o drama individual é em igual medida o mal-estar geral da cultura americana e suas desumanidades. Alice era simpatizante dos ideais comunistas e, sobretudo, uma criatura política. E, por isso, ao longo de toda a carreira, pintou como se fosse criatura política. Em Nazis Murder Jews, o desfile de Primeiro de Maio de 1936 virou assunto de trabalho. Na pintura, uma multidão de manifestantes marcha pacificamente contra as crueldades do regime nazista. Quase trinta anos depois, a representação do sofrimento em vários rostos vira o de um só em Black Draftee (James Hunter), de 1965, quando pintou um rapaz negro que conheceu por acaso. O jovem foi convocado para a guerra do Vietnã e não houve tempo para uma segunda sessão. A despeito de ter preenchido apenas parte da cabeça e das mãos do modelo no retrato, ela assinou o verso e decidiu que, assim mesmo, estava concluído. Nessa obra, a genialidade da pintora está exatamente naquilo que não se vê: o corpo incompleto de alguém enviado para morrer por um país que jamais teria se importado com a vida dele.

Andy Warhol, 1970.
© The Estate of Alice Neel

Alice foi também uma sobrevivente. Não pintou por encomenda, vendeu pouco e nunca conseguiu dinheiro suficiente para bancar o próprio estúdio. Do primeiro casamento com o pintor cubano Carlos Henriquez, restaram apenas duros traumas pessoais: a primeira filha do casal, Santillana, morreu de difteria pouco antes de completar um ano de vida; e a segunda, Isabetta, foi levada pelo marido para Cuba, em uma viagem cujo pretexto era apresentar a criança e conseguir algum dinheiro com a família do rapaz, mas ele não retornou a Nova Iorque. Após um colapso nervoso grave, chegou a tentar suicídio e ficou hospitalizada por quase um ano. A produção desse período envolve a maternidade em uma atmosfera de morbidez, perda e ansiedade. Alice Neel não se casou novamente e teve mais dois filhos, Richard e Hartley, de quem cuidou e sustentou sozinha. No apartamento em que viviam, telas se acumulavam por todo o ambiente. O curioso é que ela sabia bem o espaço que poderia ocupar no mundo da arte, e, também do ponto de vista pessoal, espaço era justamente pelo que batalhava todos os dias. Amava os filhos, mas queria desesperadamente pintar. Um ano após perder a primeira filha, teve contato com um artigo de jornal que noticia o estrangulamento de um bebê entre as grades do berço enquanto a mãe passava roupas. A tragédia, somada às suas, inspirou Futility of Effort, de 1930, uma tela revolucionária e comovente, não só pela economia de meios, que não é típica da pintora, mas também por transformar em assunto legítimo uma maternidade crua, não romantizada, e que por ninguém queria ser vista. Nessa mesma fase, produziu uma série de aquarelas eróticas, cenas honestas de amantes nus, sexo e sexualidade, o que ninguém esperaria de uma mulher, e, por esse motivo, sem precedentes na história da arte ocidental.

Nancy and Olivia, 1967. © The Estate of Alice Neel

Alice Neel sempre esteve comprometida com a própria independência. Por isso não é surpreendente que tenha ousado explorar imagens tão poderosas de maternidade, até então desconhecidas para a arte. Foi uma pintora extremamente engajada com o nu, mas é no da mulher grávida – ela pintou um número considerável deles – que reside a beleza extraordinária do seu legado. Essas pinturas, iniciadas no início da década de 1960, trazem sua costumeira franqueza e estão entre as imagens mais emocionantes da experiência feminina na arte. Ela foi insistente na representação explícita do corpo pré-parto, para o qual a sociedade sempre preferiu fechar os olhos e ignorar. Atributos como olheiras, seios volumosos, mamilos protuberantes e pés inchados, deixam ainda mais em evidência a nuance emocional da espera apreensiva de uma gestação. Também não perdeu de vista os conflitos entre maternidade e carreira. Em Linda Nochlin and Daisy, 1973, Alice retrata a renomada estudiosa feminista sentada ao lado da filha. Ela tem a mão direita apoiada no colo da menina, enquanto a outra segura com força o braço do sofá e tem os tendões praticamente saltando da pele. A obra é uma espécie de testemunho de bravura da jornada dupla de mãe e profissional, que à pintora era muito familiar.

Pregnant Julie and Algis, 1967 © The Estate of Alice Neel

Apenas quando o retrato, enquanto gênero, e Alice Neel emergem da obscuridade, em parte impulsionados por um retorno do figurativismo e pelas ondas feministas nos Estados Unidos, foi possível compreender o equívoco da sentença de esquecimento que havia sido direcionada aos dois. Finalmente, em 1974, teve seu trabalho acolhido e aclamado por uma retrospectiva pelo Whitney Museum of American Art. Mas ela não parou por aí. Embora tenha atravessado sete décadas pintando retratos e nus de outras pessoas, foi apenas no final da carreira, aos 80 anos de idade, quando a reputação dela estava no auge, que resolveu se despir a si mesma. Em um raro autorretrato – um dos dois únicos da carreira –, Alice Neel é uma senhora envelhecida de seios flácidos, sentada em uma poltrona com ar de despreocupação, vestindo nada mais que a própria dignidade e inteligência. O momento da pintura é uma escolha consciente, simples e genial. Mais uma vez, retorna à exposição subversiva de um corpo não idealizado e sem espaço, reafirmando o recado que queria deixar para a arte das próximas gerações. Em um momento em que as redes sociais criam um ambiente de projeção de visões a respeito de como somos percebidos e nos condicionam a não investir em quem verdadeiramente somos, o clamor de Alice Neel por liberdade de expressão parece cada vez mais necessário. Filtros não são tudo que nós temos. E, nesse ponto, Alice nos ensina a não desistir de nós mesmos.

Self-Portrait, 1980 © The Estate of Alice Neel.

ALICE NEEL: PEOPLE COME FIRST • THE MET FIFTH AVENUE • NOVA YORK • 22/3 A 1/8/2021

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