Sem título, 1970. Coleção Diógenes Paixão. Foto: Cortesia MASP.

DASARTES 120 /

ALFREDO VOLPI

MOSTRA VOLPI POPULAR, NO MASP, ABRANGE CINCO DÉCADAS DA CARREIRA DE ALFREDO VOLPI E TEM COMO ENQUADRAMENTO O CONTÍNUO INTERESSE DO ARTISTA POR IMAGENS, NARRATIVAS E PERSONAGENS DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA

VIDA E OBRA

Bandeiras, 1960. Foto: Cortesia MASP.

Com um caráter panorâmico, esta exposição abrange diversos períodos da carreira de Alfredo Volpi (1896-1988) e conta com 96 pinturas. A mostra tem como referência o contínuo interesse do artista por temas do imaginário popular brasileiro – leitmotiv de sua obra – e está organizada nos seguintes núcleos: Santas e santos; Retratos; Marinhas; Temas náuticos e lúdicos; Cenas urbanas e rurais; Fachadas; Bandeirinhas, mastros e faixas.

A trajetória de Volpi gerou um repertório complexo e abundante de experiências e influências, dando origem a uma mescla bastante particular entre a tradição moderna e os elementos da cultura popular. Essa trajetória transita entre o trabalho artesanal, o cuidado com a manufatura das tintas e telas e o interesse por festas populares, temas religiosos e pelo casario vernacular, chegando às referências do modernismo brasileiro, com sua sintetização formal, e da história da arte europeia, com sua vasta tradição pictórica. É importante notar que sua obra foi povoada não só por referências e citações da cultura popular brasileira, como também por sua origem humilde e operária e sua biografia marcada por um contato profundo com técnicas manuais, pelo desalinhamento em relação às vertentes em voga do modernismo, por sua vivência fora do eixo Rio-São Paulo – como Itanhaém, litoral paulista, e Mogi das Cruzes, cidade do interior de São Paulo – e também por uma socialização distinta da de seus pares – artistas brancos descendentes de europeus. Além disso, Volpi foi casado com Benedita da Conceição (1909-1972), uma mulher negra conhecida como Judite, com quem constituiu uma grande família, com filhos biológicos e adotivos, em uma relação que durou mais de 36 anos entre namoro e casamento.

Fachada com bandeiras, 1959. Acervo MASP, doação Ernst Wolf, 1990. Foto: Cortesia MASP

Volpi nasceu em 1896, em Lucca, região da Toscana, Itália, e faleceu em São Paulo, em 1988. De origem humilde, migrou na infância com sua família para o Brasil e foram morar no bairro do Cambuci, em São Paulo. Autodidata, o artista começou a pintar em 1911, mas participaria de uma exposição apenas no ano de 1925. O enfoque de sua produção nesse período inicial está na apresentação de paisagens urbanas e rurais — no entanto, constituem representações ainda bem distantes do estilo que marcaria sua obra. A partir dos anos 1930, Volpi passou a se aproximar de artistas atuantes em São Paulo, sobretudo os do Grupo Santa Helena, mas também de Ernesto de Fiori (1884-1945) e Rossi Osir (1890-1959), que era proprietário da azulejaria Osirarte e convidaria Volpi a pintar azulejos, grande parte deles com temas da cultura popular brasileira.

O interesse pelo popular ganhou corpo a partir da década de 1940, quando passou a produzir retratos religiosos, representações de festejos populares e das fachadas de arquitetura vernacular e colonial brasileira. No campo estético, sua obra caminhou cada vez mais para a sintetização formal, flertando com a abstração, ainda sem perder o referencial da figuração. Nesse período, sua pintura se estruturou mais em espaços planificados, com campos cromáticos bem delimitados com contornos irregulares, marcados por um uso excepcional da cor, algo que se tornou uma marca do artista, bem como a característica áspera da textura de sua têmpera.

A partir da década de 1950, o artista se inseriu cada vez mais no sistema das artes, participando das bienais de São Paulo, ampliando, assim, o diálogo com o meio artístico nacional e tendo como interlocutores Mário Pedrosa (1900-1981) – que o descreveu em um artigo como “o mestre de sua época” – e Walter Zanini (1925-2013), com quem viajou à Europa, onde entrou em contato com as obras dos artistas italianos do período medieval e renascentista, influências importantes em sua produção artística. Foi também a partir da década de 1950 que Volpi passou a sintetizar cada vez mais as composições, geometrizando a figuração com padrões, formas e temas que repetiriam até o final de sua carreira – por exemplo, as bandeirinhas, os mastros, as faixas, as fachadas e as ogivas.

Sem título, da série de painéis para
Companhia de Navegação Costeira
1962. Foto: Cortesia MASP.

No entanto, suas experiências profissionais na juventude já indicavam certos caminhos que o artista trilharia, evidenciando especialmente o apreço pelo trabalho artesanal. Antes de dar início à carreira artística, Volpi foi aprendiz de marceneiro na infância; na adolescência, tornou-se aprendiz de tipógrafo; por fim, estabeleceu-se no ramo da construção civil, como encanador e marceneiro, especializando-se posteriormente na pintura decorativa de paredes. Essa experiência com o trabalho artesanal e, sobretudo, com a fabricação das tintas, mostrar-se-ia fundamental na elaboração da técnica de pintura tão particular da obra de Volpi. Os chassis do artista eram construídos por ele, bem como as molduras, e ele também fabricava a têmpera de suas pinturas, dando cor e textura únicas que marcaram a estética de seu trabalho.

SANTOS E SANTAS

Sem título (Madona com menino), 1947. Coleção Orandi
Momesso, São Paulo. Foto: Cortesia MASP

De acordo com aqueles que conviveram com ele, o interesse de Volpi pela confecção de santos ocorreu mais por uma questão formal e pela tradição da representação de imagens religiosas na história da arte do que propriamente pela fé, algo que Tavares de Araújo mencionou em seu livro Dois estudos sobre Volpi, além de relatar que o artista deu início à pintura de santos em meados da década de 1930 como forma de subsistência. Eram imagens feitas para reprodução em retrogravuras, e Volpi não as tomava como um trabalho autoral. Mas essa tipologia das imagens religiosas acabou se embrenhando em sua produção artística na década de 1930, composta com traços filiados a uma tradição de representação popular das imagens católicas, ou seja, “ao gosto dos santeiros populares” — como escreveu Mário Pedrosa.

Sem título (Santa Rita de Cássia), 1960. Coleção Ana Elisa e Paulo Setúbal, São Paulo. Fotos: Cortesia MASP

Entre as imagens-chave do cristianismo, a figura de Maria com Jesus menino foi, sem dúvida, a mais escolhida por Volpi para ser representada, algo que talvez reflita a popularidade da fé pela virgem Maria no Brasil, como também a recorrência dessa representação na história da arte. Nesta exposição, a pintura mais antiga do gênero é Sem título (Madona com Menino) (1947), uma representação radical de Maria e do menino Jesus negros, algo incomum na tradição pictórica dessas figuras. Por outro lado, Volpi lançou mão de certas simbologias típicas do cristianismo, como a presença das coroas — que sinalizam Maria como a rainha dos céus e Jesus, o rei dos homens — e o globo que o menino segura na mão esquerda, sugerindo que ele seja a sustentação do mundo todo. No campo pictórico, remete-se às imagens simplificadas dos santeiros populares paulistas e também à pintura do Trecento italiano, como os campos de cor estruturados e os elementos geometrizados.

Sem título, 1964. Acervo Arquidiocesana de São Paulo

A pintura de 1947 da Virgem e do menino Jesus negros se tornou um modelo que Volpi desenvolveu na segunda metade da década de 1950 e também ao longo dos anos 1960.

Ainda no campo das imagens religiosas, importante ressaltar duas representações de são Francisco, santo muito apreciado nas devoções populares; a figura de são Benedito, um santo negro, com o menino Jesus; e outra pouco usual representação de são Sebastião, pintado com a pele mais escura do que a cor presente na iconografia tradicional, onde é representado sempre na cor branca.

 

FACHADAS

Sem Título (Casario de Santos), 1952. Coleção Ronaldo
Cezar Coelho, Rio de Janeiro. Foto: Cortesia MASP.

Na trilha do vernacular e do interesse pelo imaginário da cultura popular brasileira na obra de Volpi, duas localidades são fundamentais: a cidade interiorana de Mogi das Cruzes e a região litorânea de Itanhaém, ambas localizadas no Estado de São Paulo. Volpi tinha uma chácara em Mogi das Cruzes que, conforme os registros da escritura do imóvel, foi comprada 1943, mas o artista já frequentava a região antes dessa data, e a cidade inclusive foi objeto de diversas pinturas produzidas por volta da segunda metade da década de 1930. Nesse período, ainda pintando a óleo, Volpi produziu paisagens com representações tanto das áreas rurais da cidade (Sem título (Lavadeira de Mogi), cerca de 1937) quanto da parte urbana, onde predomina o casario colonial (Sem título, década de 1940, e Rua de Mogi com gente, 1934), que mais tarde o artista sintetizaria em sua extensa série de fachadas. De modo geral, são cenas corriqueiras do cotidiano de uma cidade de interior, como duas pessoas que conversam em uma esquina, mulheres que carregam roupas na cabeça para lavar, um vendedor de pipoca com seu carrinho e pessoas que caminham pelas ruas.

Em relação à cidade de Itanhaém, o motivo pelo qual Volpi passou a frequentar essa região se relacionava a Judite, sua esposa, e ao processo de recuperação de uma doença que ela enfrentava. Por recomendação médica, a partir de 1939, ela passou a morar em um hotel no litoral. De acordo com Tavares de Araújo, “Volpi descia aos sábados, ficava três ou quatro dias, fazia algumas telas, e vinha vender uma ou outra em São Paulo. Essa rotina durou três anos”. Nesse período, Volpi pintou marinhas e os casarios de Itanhaém, Santos e São Vicente. O contato com a paisagem marítima e com a luz do litoral, e a convivência com Emídio de Souza (1868-1949), pintor nascido em Itanhaém, autodidata, frequentemente inserido na categoria que se convencionou chamar de “arte popular”, modificaram de modo substancial a produção pictórica de Volpi. Foi justamente na virada da década de 1940 para a de 1950 que o artista passou a utilizar a têmpera, algo que mudou radicalmente a fatura de suas pinturas, ganhando luminosidade nas cores e uma textura única. É desse período também seu crescente interesse pela criação de campos de cor mais bem delimitados e pela justaposição desses campos cromáticos.

 

BANDEIRINHAS

Sem título, 1950. Coleção
particular, Rio de Janeiro .
Foto: Cortesia MASP.

Nos trabalhos de Volpi, a maior solução de síntese entre tema e forma foi, sem dúvida, a bandeirinha. Com ela o artista criou uma imagem que simultaneamente alude ao imaginário popular brasileiro das bandeirinhas de festa de são João e resume suas experimentações formais e estéticas no campo da pintura. A gênese das bandeirinhas é um ponto em aberto e existem várias versões de como Volpi chegou a essa imagem e à sua repetição obsessiva. Em um de seus textos sobre o artista, Tavares de Araújo apresenta o seguinte relato:

“Conhece-se o episódio do qual as bandeirinhas resultaram. Um dia, em começos da década de 1950, Volpi chegou de madrugadinha em Mogi das Cruzes, onde possuía um sítio, e encontrou a cidade toda engalanada para uma festa junina. Ainda sob o impacto dessa emoção, realizou depois, no atelier, um quadro onde duas carreiras de bandeirinhas se sobrepunham a um conjunto de casas. Mas atentamos para a data, 1953, 1954. Nessa época, Volpi já se libertara inteiramente da representação natural […]. As bandeirinhas se acrescentam a um tipo de composição que ele vinha desenvolvendo há mais tempo — as fachadas —, e com a mesma função dos outros elementos dispostos no espaço para construir o quadro: paredes, tetos, janelas e portais. Foi apenas como uma forma geométrica muito simples que a bandeirinha fascinou Volpi.”

Por outro lado, o interesse de Volpi pelas bandeirinhas pode ter sido ocasionado por um desenvolvimento formal do desenho econômico dos telhados dos casarios de Itanhaém e de Mogi das Cruzes, que cria um desenho que lembra o formato das bandeirinhas. Em uma gravação de áudio para um programa de audioguias do MASP, Sônia Salzstein discorreu sobre a mencionada Fachada com bandeiras (1959) da coleção do museu e desenvolveu outra possibilidade de gênese das bandeirinhas, indicando que “esses telhados se emancipam e se tornam um elemento geométrico autônomo na obra do Volpi e eles são paralelogramos, que, por distorções visuais, formam ângulos agudos”. Nesse áudio, entretanto, ela não descarta que as bandeirinhas possam ter sua origem na visualidade popular.

Assim, nas bandeirinhas que tomam conta da produção de Volpi dos anos 1950 em diante, não poucas vezes as fachadas acabam se tornando um pano de fundo em que são adicionados elementos não só como as bandeirinhas, mas também figuras religiosas, flâmulas, faixas e mastros de festas populares, como na pintura Bandeiras e mastros (década de 1960), da coleção do MASP.

Nesse processo, como tema, as bandeirinhas se descolam das fachadas e ganham autonomia, elaboradas em complexos jogos de cor, constituindo uma síntese de suas operações formais, construtivas e cromáticas, e um panorama do vocabulário do imaginário popular brasileiro criado e pintado por Volpi.

Bandeiras e mastro, 1970. Comodato MASP Banco Central. Foto: Cortesia MASP.

Tómas Toledo é filosofo,
pesquisador e curador-chefe
do MASP desde 2018.

ALFREDO VOLPI: VOLPI POPULAR
• MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO
(MASP) • 25/2 A 31/7/2022

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