Meu paraguai. © Alex Červený, cortesia Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabela Matheus.

DASARTES 136 /

ALEX ČERVENÝ

O TRABALHO DE ALEX ČERVENÝ FAZ ANALOGIAS A UM MUNDO FANTÁSTICO DE MISTURAS ENTRE PERSONAGENS BÍBLICOS E MITOLÓGICOS, FAUNA, FLORA E PAISAGENS SURREALISTAS. SUA EXPOSIÇÃO PANORÂMICA, NA PINACOTECA DE SÃO PAULO, REUNE OBRAS DOS MAIS DE 40 ANOS DE CARREIRA DO ARTISTA E NOS FAZ VIAJAR POR SEU UNIVERSO ICONOGRÁFICO ÚNICO

MIRABILIA

Aquífera, 2021. © Alex Červený, cortesia Pinacoteca de São Paulo. Foto: Ding Musa.

Capere mundum. Ao observar tudo o que nos envolve, Alex Červený, artista e ilustrador nascido em São Paulo, com uma respeitável trajetória no meio das artes, guarda em sua mente todos os traços dos acontecimentos da existência. Parte do que se debruça a ler, do que se estende em vivenciar, aos seus sonhos, sejam esses os durante a vigília, sejam os em seu repouso. O termo em latim “capturar o mundo”, com o qual inicio este texto, é uma expressão que abarca sua jornada. A arte é um instrumento para que possa delinear e abarcar o mundo em suas minúcias. Inicialmente, na figura de suas ações ou contemplações, as representações figurativas de suas pinturas e esculturas de bronze são formatadas para se inserirem em posições estabelecidas navegando pela subjetividade do que se definirá presente no entorno do desenho ou do espaço. Aos poucos, quando a pintura ganha forma, o que se vê são vastos territórios em que o olhar parece ser conduzido para longas distâncias. A vastidão então é ocupada pelo artista com escritas que enumeram as mais infindáveis listas de coisas que habitam seus pensamentos e os nossos, por conseguinte, e transcreve versos, poesias e dizeres populares que podem habitar desde as mais remotas inscrições feitas pelo homem, até o que pode ter ocorrido em uma notícia recente publicada e lida pelo artista.

Terceira Margem, 2022. © Alex Červený, cortesia Pinacoteca de São Paulo. Foto: Ana Pigosso

Mirabilia. Este é o título da exposição individual do artista na Estação Pinacoteca com curadoria de Renato Menezes, que foi recentemente aberta com a presença de diversas produções de sua trajetória, desde trabalhos seus dos anos 1980 até obras feitas especialmente para a mostra. O título em latim veio a se ramificar na língua portuguesa em palavras como milagre, miragem e maravilha, conforme traz o texto curatorial. O termo também registra os efeitos interiores e exteriores associados à visão e aos seus impactos que se dão na imaginação humana. Contemplar a natureza no que há de mais transcendental. Admirar a beleza dada pelos corpos de homens e mulheres. Encantar-se por reflexos contidos em retratos do mundo feitos em obras de arte. O que habita as pinturas de Červený são alegorias carnavalescas, espetáculos circenses de grande euforia (o próprio artista na década de 1980 integrou a Academia Piolin de Artes Circenses, e, em seguida, o Circo Escola Picadeiro), cartografias de uma arqueologia de tempo e espaço. Ao inventariar letras de canções, discos, novelas, filmes, lugares, livros, poesias, nomes, planetas e tudo o que possa existir, o artista produz um labirinto, um trabalho hercúleo de preencher uma pintura com descrições sobre uma produção de conhecimento que não se acaba. Se em Arthur Bispo do Rosário, as inscrições sobre objetos davam conta do que havia no mundo como um inventário do que a humanidade fez e realizou para um novo tempo a surgir, Červený descreve todas as coisas que já ocorreram como um dispositivo de sua memória para esse tempo, com afeto e olhar crítico, sem deixar de transparecer bom humor e ironia.

Quem não chora não mama. © Alex Červený. Foto: Isabella Matheus.

Guanabara. Céu azul horizontalmente em tons dégradés de paleta forte no topo até ganhar tons esbranquiçados no horizonte próximo ao meio da pintura. Nas laterais, há relevos sinuosos marcantes na paisagem do Rio de Janeiro e, sob o fio de céu branco para baixo até a extremidade da pintura, tons azulados marcantes e saturados e, de repente, o completo escuro na derradeira parte de baixo da pintura. Estamos no oceano vivo e pulsante. Ilhas solitárias circundam o mar com mais vegetações. No cume, seres humanos nus, uns com os braços erguidos para o alto, um mais distante se manteve com eles abaixados. Em uma das ilhas, um coelho de pé com os bracinhos erguidos imitando os humanos. “Quando eu penso na Bahia. Elizabeth Cardoso Cyro Monteiro”, lê-se na pintura dentre as muitas inscrições contidas sob o extenso céu, essa do lado esquerdo no alto logo abaixo do título da obra tomando todo o alto, a palavra em destaque: guanabara, que abre este parágrafo. O termo tem a sua origem no tupi guarani guaná-pará, que significa seio-mar. Foi também um Estado do Brasil, de 1960 a 1975, que existiu no território correspondente à atual localização do município do Rio de Janeiro. Em sua área, esteve situado o antigo Distrito Federal. Voltando à pintura a óleo sobre tela de 2011, vemos desenhos de olhos abertos, chamas que caem, rostos que se olham e soltam o que parecem ser nuvens. Um desenho de um corpo dissecado e aberto por dentro. Também no alto, quatro pessoas nuas, com braços presos e amarrados, parecem sofrer algum tipo de punição. O virtuoso artista arremata uma obra aqui, dentre as muitas presentes na exposição, com a capacidade de nos deixar admirados pelo labor, mas, para além disso, pelas muitas camadas sobre a imagem que produz. A leitura de suas obras requer cuidado e dedicação, dois fatores que serão muito bem recompensados aos que dedicarem tempo diante de suas criações. Outros destaques aqui são duas pinturas panorâmicas realizadas para a mostra na Estação Pinacoteca: Para Cándido López e Luz Del Fuego, ambas deste ano, além de obras em azulejos, cerâmicas policromadas e gravuras.

Glossário dos nomes próprios, 2015. © Alex Červený, cortesia Pinacoteca de São Paulo. Foto: Ding Musa

© Alex Červený, cortesia Pinacoteca de São Paulo. Foto: Renato Parada.

Posaûsub. Termo derivado do tupi-guarani cujo significado é sonhar com algo. Ao percorrer o espaço expositivo com a devida atenção, é possível perceber o quão oníricas são as produções de Alex Červený. O surrealismo surge como ponte de suas proposições, dos corpos definidos por suas silhuetas e expressões que ecoam uma arte dita popular brasileira. Surgem seres antropomorfos e bem delineados que evidenciam um expressivo erotismo. Sejam em telas, sejam em azulejos ou outros suportes, os pincéis criam movimentos cirúrgicos, os desenhos beiram o perfeccionismo. O deslumbre em suas obras está na aproximação do indivíduo para com o que se vê, seja diante de uma tela pequena, seja diante de uma grande tela.

© Alex Červený, cortesia Pinacoteca
de São Paulo. Foto: Ding Musa

Foram mais de cem trabalhos escolhidos para a mostra, localizada no segundo andar da Estação Pinacoteca. Com o passar das décadas, tornou-se também um notório ilustrador em colunas dos jornalistas Carlos Heitor Cony, Joyce Pascowitch e Barbara Gancia para a Folha de São Paulo, além de estar presente em diversas capas de livros, tais como os do escritor angolano José Eduardo Agualusa, publicados no Brasil pela Tusquets, selo da editora Planeta dos Livros. Aos leitores, muitos já conheciam de sua produção através desses espaços.

Alex Červený revela nessa exposição individual mais uma continuidade linear de sua maestria do que uma grande evolução propriamente, com o passar dos anos. Sob um caráter de retrospectiva, mas embaralhada acertadamente em seus períodos de produção, a visita permite observar o rigor e a grandiloquência de sua genialidade ao inscrever e assim emular algo tradicional na história da arte: onde os sonhos do mundo habitam, resta-nos registrá-los.

João Henrique Andrade é técnico em
museologia, curadoria e montagem de
exposições pela EAV Parque Lage.

ALEX ČERVENÝ: MIRABILIA •
PINACOTECA ESTAÇÃO •
SÃO PAULO • 16/9/2023 A 10/3/2024

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