RESENHA DO LIVRO POR Alessandra Affortunati Martins E Carla Milani Damião
Acaba de ser traduzido para o português (do Brasil) o livro de Monique Roelofs, intitulado A promessa cultural do estético. O estético (the Aesthetic) ou a Estética (Aesthetics)? O “estético”, certamente, como uma chave de compreensão de grande interesse em sua teoria que busca ampliar a área da Filosofia, conhecida como Estética, constituída como disciplina no século XVIII no período do Iluminismo (escocês em profundo diálogo com a filosofia francesa do Iluminismo) e afirmando-se com distinção na terceira crítica kantiana. Para além da sensibilidade e da percepção, o estético abarca o elemento existencial, ético e político que se encontra, eventualmente, enunciado nas teorias modernas da Estética, quando estas consideram o público ou a publicidade do juízo estético – formado sensorial e subjetivamente -, na busca por transcender o juízo meramente empírico do gosto. É este alcance do que se quer afirmar universal, mas que necessariamente parte da percepção subjetiva, o que constitui a grande promessa nas teorias modernas que fundamentam o juízo de gosto ou juízo estético.
Monique Roelofs revisita essas teorias de maneira crítica, indicando as exclusões que tornam as promessas teóricas incompletas e ameaçadoras à toda condição que não corresponda ao padrão colonial, racial, cis-heteropatriarcal europeu. O estético ou a “cena estética”, como lemos no prefácio de Denise Ferreira da Silva a essa obra, torna-se o terreno da crítica construída por Roelofs ao materializar as teorias modernas em obras artísticas e literárias que contrariam os pressupostos das promessas excludentes, até alcançar o ponto de esvaziá-las, ao mesmo tempo que demonstra a permanência de recomposição das promessas formadas em teorias contemporâneas nacionalistas, racializadas e generificadas.
Como definir o que temos em mãos? Arriscamos dizer que o livro de Monique Roelofs promove múltiplas experiências de descolamentos ou dissolução de adesões. Essa é uma tarefa dificílima. Embora a autora evidentemente seja suscetível aos efeitos do Belo, por certo ela não é alguém facilmente seduzível. Roelofs é convocada pelos objetos, não refrata diante do chamado que fazem aos seus desejos. Mas de maneira nenhuma ela se perde nos objetos que ama. Bem ao contrário: mantendo sua distância crítica, a autora estabelece análises absolutamente rigorosas em relação à dimensão ética de cada elemento que se propõe a estudar e a observar.
A obra de Monique é uma obra de fôlego quase extenuante, pois descolar das entranhas de nossos corpos e espíritos aquilo que nos constitui exige muito trabalho. E a autora não se esquivou da tarefa, embora provavelmente não se vanglorie pela realização desse trabalho hercúleo – prova de que mantém certa sobriedade sobre o que faz está em algumas denúncias veladas que dirige a Pablo Neruda, quando o poeta recai em certa vaidade ao invés de ser consequente com suas promessas poéticas. Essa sobriedade está igualmente indicada na análise destituída de juízo moral condenatório a uma estética da ignorância. Bem diferente da condenação, ela acolhe o lugar da ignorância como uma espécie de movimento, seja ele de que natureza for.
Nesse sentido, é importante ressaltar, mais uma vez, o imenso ganho para o campo da Estética trazido por esse estudo marcante para os nossos tempos. Essa reflexão estética, absolutamente compromissada com uma dimensão ética, chama cada artista e cada teórico da arte ao seu lugar de responsabilidade em relação às suas promessas. Cada escolha é repleta de consequências e quem se arvora pelos caminhos do pensamento e da forma artística não está em condições de recair em lugares fáceis e irresponsáveis diante das desigualdades de classe, raça e gênero. Monique Roelofs realmente não perdoa saltos inconsequentes. Mas sua denúncia é extremamente fina e generosa – ela costura cada detalhe de suas análises, expõe as minúcias de suas críticas, é incrivelmente paciente com aspectos já inaceitáveis.
Como uma cirurgiã, a autora mostra que não basta ao artista dizer que seu compromisso é com a classe trabalhadora, com os oprimidos pelo sistema ou que é anticapitalista, por exemplo. Toda a obra, em todos os seus detalhes, endereçamentos, promessas, bem como nas redes de relações que promovem, precisam assumir a dimensão ética que lhes cabe no cerne de sua forma. Por isso, as análises de Monique podem ser consideradas como uma espécie de investigação que segue a seguinte pergunta: A obra artística ou o conceito estético cumpre até os mínimos detalhes a promessa emancipatória a que se propõe?
Para responder a isso ela precisa rastrear toda a rede e as mediações das relações de trabalho e de valores que reiteram hierarquias para a manutenção do processo de dominação. Precisa apontar incongruências entre intenções declaradas e proposições concretas de teóricos e artistas. Precisa expor onde materialmente estão calcados conceitos supostamente universais e abstratos que estruturam a esfera epistêmica da estética. E ela não se esquiva de nenhum desses desafios. Mas pode-se perguntar: depois desse processo bonito de dissecação, onde se situa o Belo? O Sublime? Onde situa-se o Gosto? Vemos, com a autora, que esses conceitos absorvem toda uma estrutura de distinção racial e de gênero, na qual o homem branco de classe média/alta figura no ápice da pirâmide e a mulher negra está no mais baixo lugar ou até mesmo destituída de lugar, como vemos nas teorias estéticas do Sr. Edmund Burke.
Essa questão, que parece orientá-la (as obras filosóficas e artísticas cumprem o que prometem em termos emancipatórios?), promove um efeito desconcertante: nenhum objeto paira no ar. Nenhum conceito nasce nas alturas das ideias. É um processo de desilusão contínuo – e é isso que torna a tarefa da autora corajosa e difícil. Pois gostamos de ilusões, gostamos de recair em encantamentos, mesmo que inconsequentes… Entretanto, se aceitarmos esses lugares de modo cego, isso não deixa de promover efeitos nefastos para fins de emancipação – é isso o que ela também nos mostra.
Por isso, ela fareja cada um dos objetos que elege com perguntas como: De onde vem tal e tal beleza? Onde realmente pode nos levar essas promessas utópicas? Perguntas são incômodas, pois nosso ímpeto primeiro é o da adesão imediata ao artista ou filósofo que ansiamos admirar. Em suma: pode-se dizer que Monique Roelofs exigirá de uma obra que ela seja resultado de percursos rentes às questões mais espinhosas de nossa sociedade, sem recorrer a ideais, a saltos inconsequentes, a soluções rápidas ou fáceis para a alegria momentânea do receptor da obra.
O recorte para a análise profícua que faz de textos clássicos de estética se subdivide em duas expressões inovadoras, que pedirei para ela explicar aos que aqui se encontram. Uma delas é a de racialização estética e a outra é a de estetização racial. Ambas podem ser compostas com generificação estética e estetização do gênero, pois a autora trata na mesma linha questões de gênero em suas análises.
Vejamos alguns limites em relação a essas promessas feitas ao léu ou simplesmente malsucedidas. Um limite para uma obra pode recair em certa vaidade (ela não nomeia assim, julgando, como colocamos agora, pois é uma filósofa fina). Neruda promete mundos e fundos de uma utopia igualitária entre objetos, humanos e animais, mas um dos problemas está aqui: “O poeta empresta sua voz como uma prótese ao povo, mas, assim, não renuncia e não pode renunciar à sua capacidade de empregar as palavras deles como uma extensão de si mesmo. Sua estratégia aberta de legitimação apresenta outros como ventríloquos, cujo endereçamento é mediado por sua poesia. No entanto, isso lhe concede a capacidade de contornar esse ventriloquismo, reunindo a suposta voz do povo e dos objetos em seu próprio nome.” (Roelofs, M. p. 30).
Outro exemplo de escorregam em relação às promessas são Fanon e Kincais, ao contrário de Alice Walker e Billie Holiday pelas lentes de Angela Davis que entregam muito bem aquilo que prometem em termos formais estéticos e emancipatórios. Promessas bem podem se converter em ameaças contínuas que se fazem na própria dimensão estética, isto é, na forma, na sensibilidade e nos afetos que atravessam as relações e os endereços de cada um de nossos gestos.
Na análise que a autora faz de Hume, por sua vez, podemos imaginar esse homem solene escutando nossa autora já roxo de vergonha e pigarreando para disfarçar suas incongruências, especialmente em relação ao significado da importância ou na irrelevância do detalhe na estética. Pois fica evidente como o detalhe define quase tudo na própria análise humeana, mas ele resolve, por simples manutenção do poder dos homens brancos de classe média (não há outra justificativa) desqualificar o detalhe. Enaltecido quando convém, depreciado quando ameaça seu lugar, o detalhe assume lugar belíssimo nas análises que Monique faz de Vermeer. Destacando o detalhe da carta e da pérola, ela coloca em jogo todo o relevo desses componentes diminutos na obra artística, mostrando como são eles que expõem medições sociais e estéticas que definem estruturas de classe, raça e gênero e a dinâmica comportamental nas cadeias de poder.
O detalhe também é o único capaz de fisgar o desejo do receptor da obra. É o que reluz, mas é o que perfura a percepção armando enigmas que amarram o sujeito desejante em uma obra. Por outro lado, o detalhe aparece reificado quando é tomado de maneira isolada. Ao invés de sua unidade exclusiva, o detalhe promove abertura quando mostra que absorve e concentra componentes relacionais e endereçamentos colocados em cena. Isso fica muito claro no quadro analisado pela autora.
Ainda outro ponto importante do livro é a implosão do estatuto de beleza ligado ao gênero feminino a partir da personagem Macabéa, de A hora da estrela (Clarice Lispector). Nas análises, Roelofs mostra como Clarice Lispector expõe o lugar da beleza ligado à classe e como camadas e camadas sociais, econômicas e culturais compõem o que é tido como belo. Sendo um detalhe quase invisível, Macabéa é notada não como uma maneira de exaltação da pobreza, mas como modo de tensionar e estremecer as categorias que antagonizam beleza e feiura, delicadeza e brutalidade, lançando-nos à complexidade de questões sociais, materiais e políticas que se concentram no Brasil e em outros lugares do globo.
Retomando esse lastro deixado na análise da obra de Lispector, Roelofs coloca em cena outros filósofos clássicos que também passam vergonha na análise sofisticada de nossa autora. Mas entre senhores obsoletos em termos de uma estética emancipatória, como são Shaftesbury e Burke, ela apresenta a posição de uma das precursoras da primeira onda feminista: Mary Wollstonecraft, que, ao criticar Burke, condena a aparência feminina como algo a ser valorizado, enfatizando a importância de se notar o espírito das mulheres e não a aparência sempre subjugada a agradar fantasias masculinas. Entretanto, Monique mostra como essa posição reitera a valorização da ideia em contraposição ao sensível, já presente em Platão e que, como se sabe, merece olhar crítico.
Indicamos ainda dois pontos curiosos, embora o livro traga inúmeros igualmente interessantes. Queríamos destacar a análise que Roelofs faz sobre a crônica do táxi. Ela confirma a primeira frase do livro: “o estético é um fenômeno generalizado”. O táxi seria, por definição, o veículo da supressão de valores e formas estéticas. Lugar de deslocamento onde estariam figuras anônimas e desconhecidas, o táxi é um dispositivo das cidades. Esse elemento urbano de locomoção, suposto sinal da mais pura impessoalidade, deveria estar destituído de gosto, tons, vibrações e intensidades. Mas nada prescinde da dimensão estética da vida. Como ressalta Duchamp, quem faz a obra é o espectador ou o público. E a obra pode cumprir ou não suas promessas. Então o que pode ser definido como uma obra de arte? Acho que de todas as análises, a mais densa em seu cumprimento de promessas está na cena de Alice Walker, no capítulo 2: “Branquitude e negritude como produções estéticas”. É uma cena que compõe a vida cotidiana. O olhar sobre esses momentos comuns, mas repletos de camadas afetivas, sensíveis e estéticas pode dar a eles uma dimensão artística no curso corriqueiro da vida.
Importante ressaltar que a obra de Roelofs exercita a decolonialiade ao apresentar obras não europeias em contraste com as promessas/ameaças que se revelam na falta, como promessas quebradas, vazias e excludentes que formam o cânone da Estética Moderna, mas não apenas. Chamamos a atenção para a crítica ao espaço de limitação do “mundo da arte” no capítulo 7, intitulado, “Nacionalismo estético racializado”, dirigida à crítica de arte estadunidense Rosalind Krauss e ao filósofo Arthur Danto, e a defesa da série política “Abu Ghraib” (2005) do artista colombiano Fernando Botero. A série reproduz em desenhos os selfies de cenas de tortura que foram postadas em redes sociais por soldados norte-americanos, como exibição de crueldade e desumanidade. Para Roelofs, “Botero reestetiza criticamente a violência maliciosamente estetizada” (p.246). Ao reler a obra do artista colombiano, a autora reconhece os lastros de endereçamento nacionalistas e racializados das teorias estéticas modernas em autores contemporâneos como Krauss e Danto, em uma revisão crítica aprimorada das teorias e das obras.
Por fim, é preciso dizer que, embora ainda se surfe na “onda feminista” (atualmente em refluxo diante de críticas importadas às “feministas brancas” em um país que continua sofrendo brutalmente com feminicídios), os estudos de gênero, o tema da “decolonialidade” (um neologismo bem-vindo, que marca a diferença conceitual, subvertendo a norma da língua portuguesa colonizadora), geralmente relacionados à política e à ética, Roelofs se insere em um grupo de intelectuais feministas que desde a década de 1990 empenha-se em discutir essas questões no campo da Estética. Sua obra é referência do verbete de Carolyn Korsmeyer e Peg Zeglin Brand Weiser, sobre Estética Feminista, recentemente traduzido. (BARBOSA, E. C. Feminismo, Volume I. Série Investigações Filosóficas. Tradução de Alice de Carvalho Lino e Carla Milani Damião. Pelotas, Unipel, 2023). Neste sentido, A promessa cultural do estético, ao considerar o estético, a arte, a literatura, o ético e o político sob o crivo das questões de gênero, étnicas e raciais, é um convite de leitura para diferentes áreas e de grande interesse para o que se configura atualmente nas discussões sobre estética e decolonialidade na “América Latina”.