Quando Vincent van Gogh chegou a Arles, em 1888, ele buscava mais do que luz provençal e paisagens idílicas — ansiava por uma conexão humana que desse sentido à sua solidão. Foi ali que encontrou Joseph Roulin, um carteiro de feições marcantes e convicções políticas ardentes, descrito pelo pintor como alguém com “uma cabeça parecida com a de Sócrates”. Roulin e sua família não apenas posaram para Van Gogh: tornaram-se um elo afetivo, quase familiar, que reverberaria em uma das séries mais íntimas de sua produção.

À esquerda, Joseph Roulin, 1902. Foto cortesia da Fundação Vincent van Gogh. À direita, “Postman Joseph Roulin”, 1888, de Vincent van Gogh. Crédito: © Museum of Fine Arts de Boston.
A exposição Van Gogh: The Roulin Family Portraits, em cartaz no Museum of Fine Arts de Boston até setembro, reúne pela primeira vez boa parte das 26 obras dedicadas a Roulin, sua esposa Augustine e seus três filhos. Esses retratos, espalhados por coleções do mundo todo, revelam uma rara continuidade afetiva na obra do artista — algo que transcende o estudo formal e beira a construção de uma pequena mitologia doméstica. O carteiro, de uniforme azul e olhos pequenos, surge como figura de autoridade serena; sua esposa, em tom maternal e calmo; os filhos, em poses ternas e discretamente idealizadas.

“Augustine Roulin and Baby Marcelle”, de Vincent van Gogh, 1888. Imagem cortesia do Philadelphia Museum of Art.
A importância dessa relação vai além da tela. Quando Van Gogh sofreu seu famoso colapso mental e mutilou a orelha, foi Roulin quem o visitou diariamente no hospital e manteve correspondência com sua família, em um gesto de fidelidade quase fraternal. Van Gogh, por sua vez, continuou escrevendo ao amigo mesmo após deixar Arles, demonstrando um apego raro em sua biografia marcada pelo isolamento. A mostra, fruto de uma colaboração com o Museu Van Gogh de Amsterdã, reúne também cartas, retratos feitos por Gauguin e fotografias históricas dos Roulins, ampliando a compreensão desse vínculo artístico e afetivo.

À esquerda, Camille Roulin, 1909. Imagem cortesia do Museu van Gogh de Amsterdã. À direita, “Portrait of Camille Roulin”, 1888, de Vincent van Gogh. Imagem cortesia da Vincent van Gogh Foundation.
A relação de Vincent van Gogh com a família Roulin transcendeu a mera busca por modelos, oferecendo ao artista um período de refúgio. A série de retratos resultante atesta essa procura por estabilidade emocional, caracterizada por pinceladas intensas, uma paleta vibrante e uma sensibilidade que navega entre a representação fiel e a idealização. A reunião dessas obras proporciona ao espectador a oportunidade de observar um momento crucial na trajetória do artista, onde a arte parece assumir um papel de amparo.