POR SARA ORESTES
Para quem conhece pouco do mercado de arte, esta história contada com exclusividade à Dasartes pode parecer estranha, mas quem circula por alí já sabe de algumas pecualiridades deste circuito. Galerias que vendem obras e não repassam pagamento aos artistas, propostas de venda ou compra fictícias inventadas para testar colecionadores e compradores, lances falsos em leilão para elevar valores de um artista… a lista de ações questionáveis, algumas no limite da moral e até ilegais, é longa, e muitas vezes não há nada o que fazer para se precaver.
Nesta história, a parte prejudicada é o colecionador brasileiro Ricardo, que prefere ficar anônimo. Figura discreta, não apenas mantém uma coleção nacional e internacional de respeito, mas é também um entusiasta e um investidor em projetos que visam promover a cultura e arte.
A história começa em 2022, quando SL, dono da galeria com seu nome e sedes em Londres, Nova York e Hong Kong, entra em contato com Ricardo querendo oferecer sua obra The Comedian na feira Art Basel em Miami. Em 2018, Ricardo ja havia emprestado esta obra – um notável óleo sobre tela de George Condo – para uma exposição de SL sem problemas. O colecionador aceitou a proposta, concordando com o valor de 2,35 milhões de dolares, adequado para um artista que viu o valor de suas obras decolarem nos últimos anos.
Durante a feira, SL comunica uma oferta pela obra e Ricardo aceita, deixando claro que ela só deve ser entregue ao comprador após pagamento. Mas, em janeiro de 2023, sem ter recebido nada, Ricardo pede a devolução da obra. SL informa que o comprador moraria na Ásia e, em função de beneficios fiscais, teria solicitado que a obra fosse enviada à Suíça, onde possui um family office, escritório que cuida de seus investimentos e negócios.
No dia 9 de março 2023, SL envia para Ricardo uma fatura da venda da obra, onde constava a galeria de SL como compradora e os dados bancários para pagamento e com a seguinte condição e observação em destaque:
“o título não será transferido até que o pagamento seja recebido integralmente. Se o pagamento não for recebido nos termos mencionados, a venda será anulada.”
Começa aí uma verdadeira epopéia, com centenas de mensagens trocadas. A cada mensagem de Ricardo exigindo a devolução da obra, SL responde garantindo que o pagamento será feito e justificando o atraso no pagamento com novas informações: a forma de pagamento está sendo negociada, o family office cometeu um erro na transferência, o cliente está esperando receber um valor que atrasou, e assim por diante. Em abril de 2023, Ricardo dá um primeiro ultimato, com prazo de uma semana para o pagamento ou cancelamento da venda. SL responde que foi encontrado um defeito na pintura, causado pela inserção do AirTag, um dispositivo de segurança que permite localizar a obra por meio de GPS. Ricardo acha estranho, já que a obra passara por inspeção antes do envio para a feira de Miami e nenhum dano foi indicado, mas nada pode fazer, pois o AirTag já fora retirado e a uma suposta restauração ja havia sido feita.
As semanas vão se passando sem que o pagamento ocorresse, e as cobranças de Ricardo continuam recebendo as mesmas respostas: o pagamento vai acontecer sempre na semana seguinte, e na data marcada é impedido por uma eventualidade. Em junho, em resposta a um novo ultimato, SL deixa escapar que a obra está na Ásia, para nova surpresa de Ricardo, que não sabia que a obra deixara a Suíça. Finalmente, em agosto, 10 meses após a feira, SL aceita devolver a obra e informa que está iniciando trâmites para devolução da obra à residência de Ricardo em Miami.
Dá-se início a um novo capítulo da novela. Semanas se passam sem que a obra chegue ao destino, pelos motivos mais diversos: feriados, mau-tempo na Ásia, problemas com frete, questões alfandegárias, fatura enviada ao email errado. Dificuldades com as quais SL, que trabalha entre três países em continentes diferentes e expõem em várias feiras ao redor no mundo, deveria resolver com agilidade. É só no início de outubro, em resposta às frequentes cobranças de Ricardo, que SL informa que a obra chegou aos EUA e está com a transportadora Helutrans. Ele passa o telefone do seu oficial em Londres, Michael, mas Ricardo não consegue obter mais informações concretas.
No final de novembro, SL diz que, além do que ja pagou pelo transporte, a Helutrans estaria cobrando mais US$10 mil para completar a entrega, dando a entender que Ricardo deveria arcar com estes custos. Ricardo pergunta se a Helutrans teria sequestrado a obra e SL. Percebendo que a tentativa “não colou”, SL diz que vai quitar a pendência.
A data da entrega é finalmente marcada para o dia 14 de dezembro, mas ninguém aparece. SL diz não saber o que ocorreu e remarca para a semana seguinte, mas novamente nada acontece. Mais respostas demoradas e vagas até que, em janeiro, SL diz que vai abrir um sinistro com sua seguradora para ser reembolsado pelo valor da obra desaparecida.
Ricardo então entra em contato com a Helutrans, que por sua vez disse que havia pedido mais informações a SL, para entender a situação.
Como os leitores podem imaginar, apesar de ter enviado a documentação para o suposto sinistro, Ricardo nunca recebeu nenhuma comunicação da seguradora ou pagamento. E, infelizmente, é pouco provável que receba: em julho de 2023, tornou-se público o pedido de falência submetido à corte britânica pela galeria SL, com mais de 10 milhões de libras esterlinas em dívidas com vários artistas, clientes e galerias parceiras, incluindo uma galeria brasileira.
A pergunta permanece: onde está The Comedian? Ricardo segue querendo descobrir, pois seu interesse não é receber o valor do seguro, mas recuperar a pintura, que atualmente consta na base de dados da Interpol para arte roubada e procurada.
Conhecendo a moral flexível do galerista, que foi revelada no desenrolar de sua falência, é possível que a obra esteja de fato de perdida no galpão de uma transportadora ou mesmo que sua suposta venda tenha se completado. Neste caso, ainda que um eventual comprador tenha sido enganado por SL e desconheça o outro lado desta absurda história, revelar agora que a comprou resultaria em prejuízo, já que SL não era proprietário e portanto não tinha o direito de vendê-la e agiu em desconformidade com os termos da consignação.
Esta história revela mais alguns hiatos na segurança das negociações de obras de arte no Brasil e no mundo. Primeiro, nenhuma seguradora ou seguro cobre o desaparecimento de uma obra em transporte, que constitui um furto simples. Também não há cobertura para a apropriação indébita, ou seja, se um colecionador consigna uma obra a uma galeria e não a recebe de volta, não será ressarcido pela seguradora. Pouquíssimas pessoas sabem disto. Valores incalculáveis circulam de mãos em mãos garantidos apenas pela confiança, nem sempre merecida. A insegurança é grande, em todos os sentidos.