Quando Susan Sontag fala que fotografia é sobre dor, ela fala sobre Arte. Quando Susan afirma que “fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota”, está falando de uma arte que tem relação e influência direta ao espectador, que o provoca e o faz sentir. Mas sentimentos como dor, angústia e medo eram representados desde muito antes da jovem Sontag pensar fotografia.
Em 1500 ー quando os artistas ainda estavam extremamente preocupados com proporções, simetrias e a estética do belo ー, eles nem imaginavam que cerca de três séculos depois um quadro ‘tão grotesco’ como “Saturno devorando um filho” de Francisco Goya, estaria sendo cultuado dentro de um museu. Tanto pela inexistência de um espaço conhecido como museu (que veio a surgir apenas no século XVII), quanto pelos ideais artísticos da época.
Apesar de termos investido trezentos anos para uma mente criar algo como “Saturno devorando um filho”, a representação do medo e do grotesco na arte não estava tão distante assim dos pintores e escultores da renascença. O artista visual, Renan Archer, explica que a produção artística da Idade Média conta com uma presença muito forte de figuras que representavam o medo ou sentimentos considerados negativos. “O artista medieval estava mais preocupado com a mensagem que existia na obra”, diz.
Archer complementa que especialmente a representação do medo nesse período tinha um propósito além do estético: “Esse tipo de mensagem traz o medo como um reforço da mensagem religiosa. O maior exemplo que pode ser utilizado são os retratos que eram feitos do que seria o inferno. Isso servia como uma tentativa de manter fiéis perto da igreja, servia para os educar e para os amedrontar”, afirma o artista.
Izabel Telles, terapeuta e autora do livro “Feche os Olhos e Veja”, explica que a tática da imagem como instrumento para educação ainda é utilizada na contemporaneidade. “As imagens permeiam a totalidade de nossa existência e se relacionam com os nossos sentimentos, seja afeto, amor, medo, tristeza ou qualquer outro. Tudo o que vemos passa a fazer parte do nosso inconsciente e passa a pertencer ao nosso universo referencial de imagens”, afirma. Para Telles, um exemplo claro disso é o 11 de setembro, “Quando se fala do evento, que imagens vêm na sua mente? Como você se sente?”, demonstra.

A arte enquanto reforço da mensagem religiosa na obra “Demons tortures a sinner” de Rogier van der Weyden
Ruptura do gráfico, pertencimento ao tema
A História da Arte é movida por rupturas, sejam elas materiais ou narrativas. Da mesma forma que a invenção dos tubos de tinta possibilitou que os pintores impressionistas saíssem de seus ateliers para pintar ao ar livre e consequentemente terem uma visão diferente da luz que seria retratada, a temática abordada pelos movimentos artísticos também fazem parte deste ciclo, e a professora de artes Luciana Pacheco Favoretto, explica como ele é formado. “Ao analisar a história da arte de maneira linear, podemos facilmente perceber que sempre que algo novo surge na arte, significa que houve rompimento com a estética anterior. Isto significa que existiu um intenso buscar por novas formas de expressão e representação, e a abordagem de sentimentos ditos “negativos” não escapou a isso, pois também passou por mudanças estéticas e ruptura com academicismos anteriores”, afirma Favoretto.
É difícil delimitar um momento na História da Arte no qual a temática do medo parou de ser usada como ferramenta educacional e se tornou algo estético, uma vez que se trata de processos lentos e de adaptações.
Apesar de concordarem nesse aspecto, os pesquisadores do campo das artes discordam de um momento específico no qual aconteceu a mudança de abordagem do assunto. Para Renan Archer, a nova forma de representação aconteceu com a aproximação da arte moderna: “Mesmo com todas essas minis subversões, vai ser só na arte moderna que os artistas estarão fazendo isso sem estar muito preocupados com as noções clássicas de beleza que eram reforçadas pelas academias”.
Por sua vez, Luciana Pacheco Favoretto acredita que a mudança começou pelo Romantismo Europeu. “Esse foi especialmente o movimento artístico que trouxe para o universo pictórico o interesse pelo tema e também a representação do macabro, do oculto e do sobrenatural. Neste momento da arte, a representação do medo pertence a diversas obras do período”, afirma.
Nas telas e para além das telas
Nas artes visuais, Favoretto destaca o Expressionismo Alemão, que trouxe representações macabras, de figuras que parecem assombradas pelo medo, especialmente nas telas de seu precursor Edvard Munch. “Toda a obra do artista passa pela temática do medo, em uma constância. A vida pessoal de Edvard Munch foi extremamente conturbada e rodeada por tragédias e acontecimentos tristes, o que pode estar evidenciado na perturbação que sentimos ao contemplar seus trabalhos”, justifica Luciana.
Além disso, a professora levanta nomes como Henry Fuseli, que fez registros do oculto e do sobrenatural, retratando e causando medo; Francis Bacon, que assim como Munch teve uma vida conturbada e deixa todo horror transparecer nas suas telas; e Otto Dix que, entre outras temáticas, retratou o medo e a guerra.
Por fim, o espanhol Francisco Goya aprisionou o medo em suas telas com excelência, como pode-se notar na obra “O Grande Bode”, nas séries de gravuras “Desastres da Guerra” ー na qual abordou cenas violentas de guerra, loucura e desastres ー e, ainda, na série “Caprichos”, na qual retrata o medo e a obsessão.
Mas não é só de tinta e pincel que sobrevive a temática. Luciana Pacheco Favoretto reforça que, apesar de terem nascido e se desenvolvido nas artes plásticas, esses movimentos tiveram uma forte influência em outras áreas. “Vale lembrar que a estética expressionista, por exemplo, influenciou o cinema alemão após a Primeira Guerra Mundial, e o cinema expressionista alemão serviu de inspiração para as tramas macabras. Bem como para alguns cineastas estadunidenses das décadas posteriores, influenciando a indústria Hollywoodiana de cinema, como a conhecemos hoje”, conclui Favoretto.

Cena do filme de horror “Gabinete do Dr. Caligari”, clássico do cinema expressionista alemão.