Na madrugada de 13 de março de 1973, o artista Hélio Oiticica estava em seu loft no centro de Nova York, no alto da cocaína, com seu amigo, o cineasta e conterrâneo brasileiro Neville D’Almeida. Ele buscou a coisa mais próxima à mão para cortar outra linha – Weasels Ripped My Flesh, um LP de Frank Zappa e as the Mothers of Invention – e, enquanto usva a droga, o artista notou como as manchas de pó borrifavam na ilustração de um homem com o rosto lacerado. Essa interrupção transgressora do que já era uma imagem violenta atraiu a dupla, que acertou na ideia de usar a droga como “tinta” para desfigurar as imagens de uma série de ícones da cultura pop.
Decidimos transformá-la de cocaína em ‘cor branca’. Não era mais cocaína, era só uma cor, era como uma transubstanciação. Diz D’Almeida, hoje com 82 anos, sentado no jardim de sua casa no Rio de Janeiro, em entrevista o The Guardian.
Oiticica – que morreu de AVC, aos 42 anos, em 1980 – e D’Almeida adicionaram pilhas da droga à capa de uma biografia de Marilyn Monroe com um retrato do atriz; a um perfil de jornal do cineasta Luis Buñuel; e ao livro Grapefruit, de Yoko Ono. Estes, por sua vez, foram fotografados e projetados em grande escala em salas repletas de adereços e música alta. O 50º aniversário do que se tornou a série Cosmococa – instalações imersivas, antes que esse estilo de arte fosse comum – está sendo celebrado agora no Pavilhão De La Warr, em Bexhill-on-Sea.
Todo mundo apontou o dedo para a gente porque a gente usava cocaína. Demorou 20 anos para que nosso trabalho fosse exibido em uma galeria. Neville D’Almeida

Hendrix-War, Hélio Oiticica e Neville D’Almeida instalação de Cosmococa na Pinacoteca de São Paulo, 1973. Foto: Cortesia de César e Claudio Oiticica
Imagens de Jimi Hendrix adornado com uma máscara de cocaína vão encher o pavilhão modernista, e os visitantes poderão ouvir os riffs do guitarrista sentados em um rede de descanso. (Embora grande parte da obra de Oiticica tenha sido destruída em um incêndio em 2009, o artista deixou instruções detalhadas para sua encenação.)
O chefe de exposições da instituição, Joseph Constable, reconhece que o trabalho pode ser controverso. “Tenho pensado muito em como as pessoas vão reagir hoje, quando a cocaína virou sinônimo de excesso hipercapitalista”, diz. “Mas para Oiticica tinha uma qualidade contracultural transgressora, e seu uso na obra era uma resistência às amarras do capitalismo, ao patriarcado, à branquitude, à heteronormatividade.” Que Oiticica e D’Almeida buscavam uma fuga que alterasse a mente é compreensível dado o inferno político em que o Brasil havia caído no final dos anos 1960 – a era mais sombria da ditadura militar – quando Oiticica estava efetivamente exilado nos Estados Unidos.
No parque brasileiro de esculturas Inhotim, onde a série Cosmococa está em exposição permanente, as imagens de Monroe piscam em uma galeria como uma praia coberta de lona preenchidas por dezenas de balões. Somando-se a esse ambiente surreal, a música da cantora peruana Yma Sumac toca em volume alto. Para ver as imagens de Ono, caminha-se por uma galeria de espuma móvel coberta de tecido, bolas, cubos e cones enquanto sua música toca. Vagar por esse labirinto psicodélico é uma experiência estranha. É lo-fi em comparação com o tipo de experiências artísticas imersivas às quais o público está acostumado, mas ainda assim desorientador e ocasionalmente claustrofóbico. “Éramos dois brasileiros magros, famintos, mas queríamos fazer algo que nunca tinha sido feito antes”, diz D’Almeida.
O objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser espectador e se tornar participante da atividade criativa. Hélio Oiticica
Inicialmente, eles só ousaram expor a obra no apartamento de Oiticica para amigos convidados, incluindo moradores de rua e jovens que Oiticica chamava da rua. Foi um “exercício experimental de liberdade”, escreveu o crítico Mario Pedrosa, contemporâneo de Oiticica. “A reação foi terrível”, diz D’Almedia. “Todo mundo odiava, todo mundo apontava o dedo para a gente porque a gente usava cocaína no trabalho, tinha muita falsa moralidade por aí.”
Oiticica nasceu em uma família boêmia de classe média no Rio de Janeiro, em 1937. Seu pai era fotógrafo; seu avô tinha sido um anarquista comprometido. Na faculdade de arte, integrou o Grupo Frente, movimento de artistas fundado por seu professor Ivan Serpa, ao lado de Lygia Clark e Lygia Pape, que também se tornariam ícones da arte brasileira. As pinturas abstratas geométricas de Oiticica eram fortes em cores primárias, mas ele logo encontrou o meio limitante e, na década de 1960, ele e Clark estavam experimentando performance e escultura interativa.
Parangolés era uma série de capas complexas e multifacetadas, inspiradas no carnaval, que o público podia usar como parte dos happenings que ele encenou nas favelas do Rio e na escola de samba que ele integrou. O projeto, segundo ele, atendia “a uma necessidade vital de desintelectualização, desinibição intelectual, necessidade de liberdade de expressão” na arte. Mais adiante, o artista Carlos Zilio foi mais sucinto: “O samba conquista o sacrossanto ‘museu’, e o ‘museu’ desce até a quadra do samba”. Ele também levou as capas para Nova York, convencendo os passageiros do metrô a experimentá-las.

Oiticica em seu estudio no Rio de Janeiro em 1965. Foto: Claudio Oiticica/Cortesia de César e Claudio Oiticica.
A estadia do artista nos EUA foi possibilitada por uma bolsa que recebeu em 1970, mas o momento foi fortuito, pois o Brasil estava se tornando muito perigoso para ele. Dois anos antes, Caetano Veloso e Gilberto Gil, com quem Oiticica havia liderado o movimento Tropicália, haviam sido presos por se apresentarem com uma bandeira pendurada pelo artista em seu palco. Vermelho revolucionário, trazia o corpo morto de Manuel Moreira, favelado conhecido como Cara de Cavalo – a primeira vítima de um grupo clandestino de policiais que atuava extrajudicialmente para eliminar criminosos, pessoas trans e moradores de rua. Embaixo, Oiticica havia impresso “seja um fora-da-lei, seja um herói”. Após sua libertação, nove meses depois, ambos os músicos fugiram para Londres.
Sempre gostei do que é proibido, a vida de malandragem, que representa a aventura de pessoas que vivem intensa e imediatamente porque se arriscam. Essas pessoas são tão inteligentes. Grande parte da minha vida foi passada visitando meus amigos na prisão”, escreveu Oiticica, mas sabia que não queria se juntar a eles.
Foi a lei, porém, que forçou seu eventual retorno ao Brasil, em 1978. O loft nova-iorquino havia se tornado um projeto de arte avassalador, tendo Oiticica construído uma série de “ninhos”, como ele os chamava: estruturas de tecido e madeira nas quais ele podia se esconder com e do desfile constante de pessoas que passavam por ali. Enquanto trabalhava inicialmente como tradutor, com seu visto há muito esgotado e com uma aversão ao mundo da arte comercial de Nova York, ele se voltou para o tráfico de drogas. Um dia a campainha tocou e Oiticica, inclinado pela janela dois andares acima, olhou para baixo e viu um casal de agentes do FBI olhando para ele. Um amigo dele – modelo de Pierre Cardin – havia sido flagrado contrabandeando drogas pelo Aeroporto John F. Kennedy. Oiticicia sabia alguma coisa sobre isso? Enquanto os policiais subiam as escadas, ele conseguiu esconder suas drogas em meio ao labirinto de instalações artísticas que agora consumiam o espaço. Foi uma ligação próxima e – com sua bolsa Guggenheim tendo chegado ao fim, e depois de um interrogatório de funcionários da imigração dos EUA sobre sua sexualidade e seu status dentro do país – isso o estimulou a voltar ao Brasil e a se limpar.
Hélio Oiticica: À espera do Sol Interno está no Pavilhão De La Warr, Bexhill, de
23 de setembro a 14 de janeiro