POR MARC POTTIER
Conhecida pelas suas instalações de desenho imersivas aninhadas na memória de um lugar, a artista francesa Anaïs Lelièvre aproveitou a sua residência na La Junqueira, em Lisboa, para renovar o seu trabalho criando composições cerâmicas enquanto mergulha na história da capital portuguesa. As obras singularmente expressionistas de sua exposição T Erra Mot O, em exibição até 22 de maio, interpretam em metáforas sutis o impacto, tanto ambiental quanto intelectual, do terremoto que destruiu a cidade em 1755. Esse drama questionou – lembra Alain Corbin em sua História da ignorância – todas as representações da época, obrigando os contemporâneos a repensar nossa relação com o mundo. Perante este desconhecimento da terra, a artista aponta para um tema que se mantém, sem dúvida, mais atual do que nunca.
Ative outras possibilidades
Até agora, Anaïs Lelièvre tem sido amplamente identificada por seus desenhos, ou melhor, por suas instalações e esculturas desenhadas, suas explosões de gravuras em preto e branco, refazendo fragmentos de matéria mineral ou vegetal, para reconstruir paisagens dinâmicas. Seus ambientes são conhecidos por investir e transbordar as arquiteturas dos locais onde expõe. Muitas vezes por trás da composição final esconde-se uma arquitetura-suporte improvável feita de elementos reciclados de todos os tipos encontrados localmente (placas, móveis…), criando assim outra obra, invisível, um oceano de detritos, que só descobrimos nos vídeos documentais que revelam a construção de seus projetos.
Suas obras já são um caos premonitório do que a artista nos apresenta até 22 de maio em Lisboa para falar de terremotos, mas desta vez com outros materiais, como porcelana e tinta.
Vários tipos de escalas e níveis de ressonância
“O que eu encontro em um lugar me permite transformá-lo. Possibilita produzir algo diferente ou ativar outras questões. Cada vez mais a forma de ordenar esta desordem encontra sentido na dinâmica do desenho e do lugar”, confidenciou Anaïs Lelièvre. Hoje a residência Junqueira oferece outros desafios à artista, cujas linhas sísmicas nunca deixaram de reativar no espaço um processo criativo que fala de emergências. As duas salas que lhe serviam de atelier e de espaço expositivo, com paredes adornadas na metade inferior com azulejos – azulejos de cerâmica com desenhos repetitivos típicos da decoração portuguesa do século XVIII –, eram um cenário imbuído de uma complexa preciosidade para ‘mater‘.
Este toque local está integrado no princípio do layout da exposição. “O conjunto de peças é ao mesmo tempo multiplicado e explodido, articulado, como fragmentos que se complementam, mas com lacunas ou elipses como uma ruína sintática ou um labirinto linguístico”. Jogando em vários tipos de escalas e níveis de ressonância, o layout quase faz o visitante cambalear ou até “escalonar” com a mudança de pontos de vista e pontos de atração deslizantes. Composta por pontuações, esta nova apresentação será menos imersiva que suas instalações anteriores, mas ainda consegue desconcertar.
T erra mot o, um tremor à altura das ideias
Anaïs Lelièvre dá continuidade à exploração de argila iniciada após uma residência na Islândia, material propício para abordar o movimento dos solos e as “mudanças de estado”. Um título ao mesmo tempo literal e metafórico, com ressonâncias históricas e materiais, T erra mot o é bem escolhido para falar sobre o que a fascinou em Lisboa, o famoso terremoto de 1755 que não só derrubou toda a cidade como foi o incrível marco inicial de uma revolução moral, filosófica, teológica e científica onde otimistas e pessimistas se chocaram. Esta virada telúrica faz parte da história como um marco entre o passado e o futuro da Europa. Esta ruptura num mundo que se julgava estável foi “o prenúncio de um tempo de infortúnio e incerteza que pôs fim, segundo Voltaire e Goethe, à paz e ao otimismo contagiante do início do século” [1]. Anaïs Lelièvre ficou fascinada por descobrir a profusão de textos, trocas de cartas, interpretações e disputas da época. É sobre essa perda de rumo e a confusão em redefinir o que pensávamos saber que as obras desta exposição falam metaforicamente.
“É também por isso que o título da exposição também é escrito com espaçamento entre letras, lembrando assim o sismo subjacente às obras apresentadas. “O “t erra mot o”, como o processo de colocar em “palavra” minado, “erra” passa também a evocar “err”, “erratum”, entre o progresso incerto aberto à descoberta do desconhecido e o erro, acidente de escrita, “shell”, falha a corrigir…”, especifica o artista.
Preto e branco, entre a escrita e a perda de rumo
As cerâmicas, desenhadas por raspagem com ponta seca, como tabuletas de barro escavadas com inscrições, e cobertas com tinta da china, evocam um processo de escrita, que é ecoado pelas palavras gravadas em água-forte, produzidas ao mesmo tempo. Se ainda tem um fundo escriturístico, a relação entre o preto e o branco que Anaïs Lelièvre estabelece nesta exposição é diferente da sua prática habitual. Está aqui sem oposição de contraste, sem conflito no espaço, mas ao contrário dissociado e relativizado.
Suas cerâmicas brancas raspadas na ponta integram sombras em sua textura complexa, fontes de sutil escuridão. Em contrapartida, os pretos que ela usa ao mergulhar certas peças em tinta trazem o branco pelo seu brilho. Essa consideração do jogo de luz coloca, assim, essas duas cores em perspectiva. A artista liga estes deslocamentos entre preto e branco aos debates sobre otimismo e pessimismo e, portanto, a este impensável desastre do terremoto de Lisboa que nos obrigou a repensar a nossa relação com o mundo e já não saber o que era preto ou branco.
‘Marco zero’, percepção em desordem
Anaïs Lelièvre criou para esta exposição um número impressionante de novas peças em porcelana, grés e faiança; entre outras coisas, cerca de cinquenta colunas de secção pentagonal (em forma de casa), de diferentes alturas, parecem dissolver-se ou rasgar-se na sua parte superior, podendo talvez evocar os escombros das torres gêmeas do World Trade Center de Nova York em 2001, cuja posição agora é chamada de ‘marco zero’.
Mas sem dúvida se refere aqui mais à resistência dos pilares do Convento dos Carmelitas, a igreja gótica de Lisboa que desabou no terremoto de 1755, e nunca foi reconstruída. Estas ruínas visíveis de longe permanecem como uma das principais testemunhas do desastre. Ou lembram também na Igreja barroca de São Domingos situada no centro histórico de Lisboa, junto à Praça do Rossio, que foi duas vezes vítima de grandes catástrofes. A primeira durante o terremoto de 1755, e a segunda em 1954, quando um grande incêndio destruiu sua decoração de talha dourada e várias pinturas. Mais uma resiliência de uma cidade com múltiplas cicatrizes.
As colunas ou pilares que Anaïs Lelièvre apresenta são de porcelana embebida em água e tinta. Suas irregularidades, cavidades ou falhas, devido a acidentes de materiais durante a moldagem, faziam com que a tinta reagisse para formar desenhos quase geológicos. “Esse conjunto também tem suas fontes em uma cenoura (corte do solo para estudo de sua composição e seus processos de formação), parcialmente geométrica, parcialmente degradada, encontrada em uma caverna pré-histórica próxima à residência; bem como na vista aérea dos traçados urbanos de Lisboa, construídos num ambiente montanhoso e outrora vulcânico. A disposição dessas peças poderia ser também a busca de uma escrita no e do espaço, e os pilares agora aparecem como fragmentos de letras, em camadas e quebradas, encontrando seus fundamentos em uma experiência dolorosa e constitutiva da materialidade. Esses restos de letras podem ser reativados, dispostos diversamente como módulos arquitetônicos sintáticos, nesse desejo global de buscar palavras e traduzir uma linguagem solapada pelo que a excede”.
Outro tipo de vestígio, a primeira peça produzida em faiança off-white, acabou por ser mergulhada em tinta preta pura, tornando inidentificável o seu material original. Pensamos em cinzas, carvão ou até lava negra, obras que continuam a habitar a memória de Terramoto.
A relação com o tempo, gestos de inscrição
Como folhas escritas ou partes de paredes ascendentes, marcadas pela história, os seus baixos-relevos de parede de cerâmica apresentam na parte superior uma série de varetas de vários tamanhos e regularmente alinhadas, uma espécie de alfabeto misterioso de uma língua que teria desaparecido, ou mesmo de uma codificação – como código Morse ou escrita em Braille – parcialmente apagada e indecifrável. Ainda apresentando uma variação de linhas mas em todas as direções, a parte inferior dos relevos parece deteriorar-se, desintegrar-se ou tornar-se uma textura petrificada ou em movimento, com múltiplas evocações.
Anaïs Lelièvre transcreve aqui sua relação com o tempo. Ela cita o artista polonês Roman Opalka (1931-2011) que, entre outras coisas, dedicou parte de sua vida a pintar uma série de números que visavam o infinito, sua numeração do tempo e dos mortos. Em 1965, Roman Opalka traçou o número 1 com pincel e tinta branca em uma tela preta e iniciou uma contagem regressiva que não pararia até 6 de agosto de 2011, dia de sua morte. Este último número, 5607249, será seu “infinito” finito, o fim da caminhada e o fim da jornada, dando assim algo mensurável à morte. Para Anaïs Lelièvre, seus signos são alfabetos ou números? Começariam ou terminariam em 1755? O problema continua sem solução…
Uma evocação de texto
As linhas que compõem a textura dessas cerâmicas e que se tornam evocações de texto, provêm de um processo de abstração a partir da transcrição minuciosa do material de pedras encontrado na gruta de Rio Seco, local misterioso próximo à residência de artistas que poucos lisboetas conhecem, uma aparente falha que na verdade não está ligada ao sismo mas sim a uma pedreira cujas extrações de calcário serviram para construir o Palácio Nacional da Ajuda em particular (os planos de realização completa do palácio foram abandonados no século XIX, deixando uma ala poente ainda inacabada).
É essa lacuna construtiva e “benevolente” que chamou a atenção da artista. Uma das primeiras cerâmicas, estendida por água-forte, compõe assim uma forma de habitação com um furo no centro, revelando um fundo escuro e material (arenito preto) sob as fachadas brancas (porcelana). A partir desta cavidade central, a gravura, escavada sobre uma placa de metal – portanto de mineral -, foi construída “na afirmação de um processo em curso, entre esboço, pesquisa e insistência rítmica na linha, entre composição de escrita (história) e desintegração das formas. O topo é o nascimento de uma escrita, que se torna arquitetura, deságua em uma zona mais caótica, onde as palavras se tornam mais densas.
Essas palavras se valem das leituras no terremoto, numa forma de escrita automática em ressonância, valendo-se da imaginação que ela desencadeia. Certas notas são truncadas, lacunares, riscadas, presas no material gráfico; algumas letras aparecem invertidas (referindo-se ao processo de gravação em espelho e outras letras foram gravadas invertidas para aparecer da maneira correta). É a sugestão de um choque de linguagem, e de um enigma, de outros significados a serem decifrados. A casa da linguagem. A sua estruturação (moldada, padronizada) e a fragilidade da sua própria materialidade”, especifica Anaïs Lelièvre, falando em particular desta gravura, mas em eco a todas estas novas obras onde cada estrato é a letra obscura de uma história a decifrar.
Inspiração mineral, longe/perto e grande/pequeno
As casas-esculturas de Anaïs Lelièvre emergem ou desaparecem de uma textura de inspiração mineral: as rochas calcárias e tufosas basálticas, retiradas da gruta do Rio Seco, apresentam aglomerados estratificados de conchas quebradas para uma ou de resíduos vulcânicos para a outra. O terremoto destrutivo também revela os estratos geológicos a partir dos quais a cidade foi construída. Além disso, essas colunas de porcelana pintada ou cenouras podem ser apresentadas de pé, ou deitadas como a evocação de uma queda, mas essas alegorias (da habitação) encontram uma posição normal no chão. Esta ambiguidade insere-se num contexto de sublevação, de tombamento, o do terramoto que escava a horizontal do terreno e derruba os edifícios altos.
O piso da segunda sala expositiva, que originalmente era a sala de uma casa, é revestido por uma impressão gerada a partir da fotografia de um detalhe texturizado da primeira cerâmica, de pequeno formato. Esta imagem é encolhida digitalmente e ampliada, multiplicada e mergulhada progressivamente. Para além de uma imagem geológica, este motivo remete para um tempo estratificado, que cava no chão da sala e confunde o caminhar dos visitantes. Como vimos, Anaïs Lelièvre gosta de desfocar as cartas e este terreno é também como um mapa urbanístico ou a vista de um avião, que lhe permite perturbar as relações longe/perto e grande/pequeno.
“Um grito infinito que percorreu o universo”. Edvard Munch
As casas em tinta da china têm uma de suas fachadas evisceradas. As lacunas nestas esculturas, revelando uma forma de grande brutalidade, têm uma fascinante dimensão expressionista. Pensa-se numa boca e no grito ensurdecedor do artista norueguês Edvard Munch (1863-1944). Ao contrário da crença popular, o choro não vem do personagem, mas da natureza. O personagem central parece assustado e tapa os ouvidos para abafar esse grito. O pôr-do-sol vermelho ardente foi provavelmente causado pelas cinzas emitidas durante a erupção do vulcão indonésio Krakatoa, cuja violenta erupção teria causado tremores sísmicos que atravessam o globo com um ruído poderoso e teriam lançado na atmosfera milhões de partículas de cinzas vulcânicas espalhadas até a Noruega.
T erra mot o em perspectiva?
Tantas irrupções potenciais na série de tragédias que estão sacudindo o planeta. Tantas cinzas que vêm encobrir certezas e/ou ignorâncias que são sempre postas em causa. Poderíamos fazer a ligação com nossa civilização cientificista que, apesar dos múltiplos alertas, ainda parece não estar agindo para antecipar a emergência climática?
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[1] Ana Cristina Araùjo, « La mémoire tragique du désastre de Lisbonne de 1755« , in Régis Bertrand, Anne Carol, Jean-Noël Pelen (dir.), Les narrations de la mort, Aix-en-Provence, Presses universitaires de Provence, 2005.