POR MARC POTTIER
Consciente de que a vida está em perpétuo movimento e que a impermanência é inevitável, Rosângela Dorazio não deixa de testar os limites do seu trabalho para melhor os ultrapassar. A artista que vem da gravura, com suas fotografias escavadas a cinzel, seus desenhos com borra de café criados nos confins do seu próprio corpo, revisita uma arte figurativa que vai da mitologia às questões civilizacionais. Esta dinâmica insaciável de nada guardar e de inscrever sua obra no espaço dos movimentos do corpo e da mente, atinge para Marc Pottier um grau de intensidade subjugador ‘numa conjugação perpétua de desejos, formas e riscos’.
“Para sobreviver, crio significado, e essa é a minha arte”
Anselm Kiefer
Rosangela Dorazio poderia fazer a citação de Anselm Kiefer (1945-) que ela tanto admira. Como o artista alemão, a partir de suas obras, pode-se imaginar uma artista veemente e imprevisível. Mas ela é calma e precisa. Como dizemos em francês, “a roupa não faz o monge” ou “cuidado com a água do sono”.
Com uma elegância bastante clássica e um jeito de falar muito educado, até mesmo tímido, a artista brasileira esconde um pouco o jogo de uma mulher hiperativa que nunca para, faz vários projetos diferentes ao mesmo tempo e busca seus limites físicos. Ela está pronta para novos desafios em fração de segundo e nunca hesitará em pegar um avião durante a noite se sentir que precisa ir a algum lugar para um projeto interessante. Mas não se engane, ela nunca tem pressa e sabe da importância da desaceleração. Muitas de suas obras duram um longo tempo. Rosângela é só entusiasmo, a quem a arte lhe permite comunicar através das imagens que utiliza nas suas gravuras, fotografias, postais, pinturas, desenhos…

Pernas, óleo s/ mala direta, 2009
Uma noite no ateliê
É este dinamismo que está na origem de iniciativas como as suas “noites no ateliê”. Uma vez por mês, o ateliê é o local de encontro e acolhimento que dá a palavra a outras personalidades femininas do mundo da cultura, da psicanálise ou mesmo do Direito sobre assuntos dominantes. Reúne cerca de vinte convidados, amigos ou desconhecidos selecionados a partir do seu convite no Instagram (confirmação apenas após inscrição). Os temas são tão diversos como “Mal-estar feminino”, “Mulheres a reinventar-se” ou “Liberdade de expressão”… estão previstos também temas relacionados à arquitetura. Durante essas noites, uma artista emergente também apresenta seu trabalho. Rosângela dá voz às mulheres, promove discursos silenciados ao acolher aquelas que estão socialmente escondidas. Como em algumas de suas obras, ela revela o que dói ao liberar palavras e situações aprisionadas.
A psicanalista Helena Cunha Di Ciero testemunha: “Apresentei em seu workshop, com a psicanalista Gizela Turkiewicz, a obra Maldita Saia (as mulheres são sempre culpadas desde o mito do pecado original). Nele, discutimos o hábito social que temos de silenciar as mulheres diante do assédio e abuso sexual. Com esse encontro, vozes que haviam sido silenciadas puderam ser acolhidas, ganhar contorno e apoio”.
mal-estar da civilização

Salve rainha, 2009
A pandemia a obrigou a se trancar em seu ateliê. Chocada com a radicalidade de uma situação da qual ninguém sabia quando iríamos sair, ela se jogou na mitologia de “Caim e Abel”. Se o tema da fraternidade tem um aspecto positivo a ponto de ter sido escolhido como um dos elementos do tríptico da divisa republicana francesa, foi, no entanto, muitas vezes posto à prova pela literatura: querelas e guerras de Rômulo e Remo, e, na Bíblia, Caim e Abel, Isaque e Ismael, Jacó e Esaú, José e seus irmãos, Raquel e Lia, Moisés, Aarão e Miriam… Lembremos que os dois irmãos escolhidos por Rosângela para sua obra faziam sacrifícios ao seu Deus, mas este último, preferiu o de Abel ao de seu irmão. Ciumento, Caim assassinou Abel. Deus então o puniu, condenando-o a uma vida de peregrinação.
A questão do destino da espécie humana parece assim se colocar para Rosângela: será que o progresso da civilização conseguirá dominar as perturbações da agressão e da autodestruição? As últimas linhas do livro Malaise dans la civilization de Sigmund Freud (1856-1939), um de seus mentores, mantiveram toda a atualidade. A luta entre eros e thanatos (“amor” e “morte”), entre a “pulsão de vida” e a “pulsão de destruição”, renova-se a cada dia, assim como a questão das fontes da violência e dos caminhos que tornam possível contê-la, ou mesmo superá-la. Uma vida de peregrinação intelectual…
Caim e Abel revisitados

Black Abel
Neste trabalho ‘ao podão’ sobre Caim e Abel encontra-se uma força em suas aquarelas em tamanho natural montadas sobre madeira: poucos elementos em cenas de paisagens abstratas vazias e sem perspectivas onde a artista foca na violência das lutas que preenchem o trabalhar. Poucas cores vivas que em nada contradizem a intimidade brutal das cenas. Rosângela se representa nua, tanto como Caim quanto como Abel, em uma grande luta contra si mesma. É Eros e Thanatos sem precisar ou poder escolher?
“Faço imagens para desfazer, e entre as ações de fazer e desfazer há uma tentativa de
capturar o tempo. O espaço entre as ações. Fotografo para interferir no recorte das imagens.
A fotografia, quando fica pronta, já é passado. Eu registro o gesto e o gesto é um índice da ação. Um presente. Neste momento algo se perde e algo se ganha. Nada é estático.”
ROSÂNGELA DORAZIO
A impermanência
Embora Rosângela negue praticar a filosofia budista, ela está em perfeita simbiose com seu conceito de “impermanência” para descrever a mudança, e pensa que tudo está sempre em movimento. A impermanência é, portanto, outra forma de falar da vida. É uma construção para alertar contra a crença de que tudo ao nosso redor e tudo o que vivemos é permanente: nada, nós mesmos, nossos pensamentos, nossas emoções, nosso ser fundamental, mas também as coisas de fora, não tem substância, porque tudo muda toda hora.
Essa compreensão da “não-substância” é muito importante no budismo, que Rosângela integra perfeitamente, para quem a morte não existe em si mesma e é vista simplesmente como uma mudança de aparência.
Sempre desmonte as imagens
“Muitas vezes desejamos um estado de prazer ou estabilidade permanente. Um eletrocardiograma traça uma linha com altos e baixos e quando a linha se estabiliza e fica reta, não há mais vida. É perturbador pensar que estamos aqui e que logo iremos embora, que tudo está mudando o tempo todo”, confidencia . “Muitas vezes fotografamos tentando capturar um momento. Quando fotografo, essa imagem já pertence ao passado. Eu então interfiro com um gesto brusco para cortar. O gesto me permite fazer outra imagem. Redesenhar”. Para ela, como na vida, a elaboração da obra exige uma tomada de posição porque não há volta possível: quando cava fotografias com cinzel, quando usa o frágil papel Mantega (manteiga), quando pinta com dimensões nos limites de seu próprio corpo em grandes superfícies, com suas xilogravuras em tecidos sem a possibilidade de jamais reproduzir o mesmo desenho… toda vez é: dobre ou desista, faça ou quebre
No meu trabalho, não há arrependimento.
Todas as intervenções são finais, imitando as decisões que tomamos na vida.
ROSÂNGELA DORAZIO
Trabalhar com materiais exige agressão? Na verdade, é o contrário. Ela busca a fusão da mão e do espírito, do gesto e do apoio, um ato empático que dá asas à sua imaginação criativa e conta com o surgimento de novas formas surpreendentes e inesperadas.

Lutar era a única Saída, Pintura sobre mala direta, 2009
Um trabalho onde o arrependimento é excluído…
“Nos desenhos à tinta manchada de café, acontece a mesma coisa. Desenho e desmonto a imagem, colorindo com café. Faço representações de árvores com o material de uma monocultura. Nada é óbvio. Faço uma floresta com um produto orgânico que ocupa os espaços das matas nativas. O café fez parte das monoculturas que tomaram o espaço da nossa vegetação original e no meu trabalho é o líquido que apaga a representação dessa floresta. As imagens têm um tamanho que está diretamente relacionado com o tamanho do meu corpo e associo os papéis pregados nas paredes a um sudário que guarda vestígios da memória. Os papéis são mantidos a uma certa distância, o que os faz se mover, como se ainda houvesse vida. A floresta toma conta do interior da arquitetura”, diz ela.
“O gesto vem com o risco, um momento que eu provoco. Procuro esse momento, como quando borro os desenhos com nanquim quando já podem estar prontos.”
ROSÂNGELA DORAZIO
… para não voltar
Uma parte importante de sua obra trata do “transbordamento” de linguagens entre a gravura, a fotografia e a pintura. Em uma série de seus trabalhos, utiliza recortes com goivas e cinzéis para interferir em fotografias coloridas coladas em superfícies rígidas. As ferramentas levantam material, dando assim uma tridimensionalidade às composições obtidas. As imagens de paisagem que utiliza revelam espaços que estão sempre prestes a desfazer.
O que vemos é um processo de dissolução do referente

Mandacaru
É um trabalho de tensão, ligado, como já vimos, ao fato de que cada gesto é final. A luta interior com cada decisão não oferece mais retorno. É uma luta com o material porque tem que usar força na execução. Geralmente são imagens banais de paisagens, parques públicos. As fotos-desenhos-gravuras são únicas ou compostas em polípticos que podem cobrir uma parede inteira. Cada imagem original permanece identificável. Suas paisagens são um espelho do mundo contemporâneo, do incerto.
Dissolver o espaço é também admitir que todas as coisas, mesmo as mais sólidas, se dissolvem na fluidez das relações sociais.
A obra de Rosangela Dorazio preenche as “lacunas” e se liberta
“A sua cura revela a presença do que parece invisível nas fotografias, a força dos contornos, o poder dos limites, o negativo. A artista revela e desvenda a imagem escondida ao riscar a fotografia, assim como o escultor liberta da pedra a figura aprisionada. Curiosamente, a partir desse processo a figura cresce, a imagem se expande. É a mesma ideia de Freud no texto sobre Psicoterapia (1923), no qual revela que o analista liberta o paciente de si mesmo por meio do processo psicanalítico.”
HELENA CUNHA DI CIERO
uma certa estranheza
Quais são as florescências das sementes plantadas numa infância que parece harmoniosa? Rosângela Dorazio nasceu em 1963 em Araguari-MG, filha de um pai que, por gosto pessoal, dedicava-se muito aos estudos de filosofia, história e literatura. Foi amigo do bailarino e coreógrafo Klaus Viana (1928-1992) e de Farnese de Andrade (1926-1996). Mais do que o seu distante parente italiano, o artista plástico Piero Dorazio (1927-2005) cujo ramo familiar também fez a viagem de Génova e desembarcou no Brasil, estes dois artistas terão sido, sem dúvida, as primeiras boas fontes de inspiração para Rosângela: Klaus Viana foi um coreógrafo curioso por tudo que fez cursos de anatomia aplicada ao movimento e de iniciação musical que inspiraram seu livro “A Dança”, um método de expressão baseado na escuta do corpo e dos vetores de forças que melhoram o fluxo do movimento no espaço, maestria que Rosângela parece ter adquirido.
Reconciliar opostos
A associação de opostos de Farnese de Andrade é o que mais marcou Rosângela. Suas assemblages reconciliam a subversão surrealista e o drama sacro barroco, misturando tradição e regionalismo, inflamando todas as materialidades. Seus objetos, remontados em signos, produzem composições que tiram do esquecimento elementos selecionados ao impregnar opostos que se complementam, como dor e amor, melancolia e alegria, calma e caos.
Seus relicários de bonecos mutilados, com buracos nos olhos, cabeças decepadas, braços, troncos e pernas decepados, que predominam em sua obra, assustam à primeira vista.
Mas também podem ser considerados como porta de entrada para entender a intimidade do artista e as castrações que experimentou ao longo de sua vida, uma violência entre o bem e o mal, a guerra e o êxtase, que encontramos na obra de Rosângela.
“A contradição está em toda parte. É por isso que o homem busca indefinidamente
reconstruir um lugar onde possa se sentir em paz, a fim de escapar de seu próprio caos.”
Anselm Kiefer
Cuidado com as aparências

Chapéu, aguada de nanquim e café, 2019
“Ao produzir representações de árvores, tento abrigar uma floresta na arquitetura, tento proteger simbolicamente uma floresta criada por mim. Mesmo que seja apenas uma representação. Estou falando do esgotamento dos recursos naturais durante a produção do café, produto da monocultura. Abordo também o desmatamento, desnudando a vegetação de imagens fotográficas em que a natureza aparece. Mesmo que muitas vezes seja o resto da natureza deixado em uma paisagem urbana, ele é removido. Poderia fotografar áreas queimadas ou a terra empobrecida, mas não haveria a possibilidade de perceber aos poucos que, numa imagem colorida e sedutora, havia algo que não existia mais, que se arrancou violentamente”, confidencia a artista, que durante a pandemia cobriu as paredes do seu ateliê com colagens de desenhos e pinturas de vários tamanhos, recriando assim uma floresta sem limites com elementos intercambiáveis, outra forma de continuar a falar-nos da eterna “transformação” do mundo.
Tree of Life tenta unir fragmentos de diferentes árvores em uma.
Como a ideia da humanidade em harmonia e união ou mesmo
a árvore do conhecimento do bem e do mal que é mencionada na Bíblia.
ROSÂNGELA DORAZIO
Recicle o excesso
Poderíamos destacar muitas outras direções na obra de Rosângela. Ela também recicla o excesso de nossa sociedade de consumo e transforma o tsunami invasivo da mala direta que entra em nossas casas. “Como se fossem nossos melhores amigos, eles dizem a você no que investir, o que vestir, aonde ir. Eles fingem que nos conhecem e, como as cartas que não recebemos há muito tempo, se disfarçam de intimidade”, observa. Assim, em vez de jogá-los no lixo, Rosângela utiliza e transforma todos estes documentos pintando-os, convidando-nos à intimidade da sua vida. Surgem cenas fragmentadas: palavras mas também peitos, braços, pernas, pés e rostos emergem da superfície para nos falar de intimidade.

Sem título, pintura sobre mala direta, 2009
A intenção de desfazer
Ainda num gesto que introduz certa desordem, ela desfoca uma série de desenhos em sépia e tinta sanguínea de plantas nativas do Brasil, sobre papel encerado, derramando café sobre eles. Há, claro, a intenção de desfazer com a vertigem do momento do risco, da transformação. Ela sempre retorna à sua maneira para o casamento de vida e morte. Em outra série de desenhos sobre papel vegetal e caneta vermelha mostrando abraços, beijos e carícias, as figuras têm traços de água. Na verdade, são gotas feitas com sua saliva, uma assinatura de DNA que se tornou indelével.
Lágrimas de Eros por uma civilização perdida
Pela violência da superação, apreendo, na desordem do meu riso e dos meus soluços, no excesso dos transportes que me quebram, a semelhança do horror e de uma voluptuosidade que me ultrapassa, da dor final e da alegria insuportável!
GEORGES BATAILLE, As Lágrimas de Eros
Esta obra multifacetada, sempre em expansão, afirma-se como uma conjugação perpétua com a vida. Ela nos mostra as lágrimas de Eros? Revisita uma história da pintura sob a égide de Eros e Thanatos, amor e morte, ligados desde os tempos mais remotos. Tal como o seu outro mentor, Georges Bataille (1897-1962), convida-nos – ou nos alerta em visões abruptas e claras – a dar as costas e a mergulhar na essência do Homem, composta de grandeza e tragédia.
A superação da contradição entre gozar e morrer cristaliza seu desafio estético em um mundo onde a obsessão pelo amor e pela morte está presente no cerne da vida. Bataille pôs em causa o idealismo da cultura ocidental, aquilo que durante cinco séculos chamamos de “humanismo”: a “humanidade” deixa, para Rosângela, de ser o único critério da arte.
O orgânico, o animal, o bestial, a impureza… também pode ser belo.