POR MARC POTTIER
As composições heterogêneas do artista brasileiro Rodrigo Matheus criam um cabo de guerra exacerbado entre a realidade e as coisas. Integrando os materiais usuais mais banais. O trabalho do artista traduz poética e metaforicamente uma paisagem política, marcada, entre outras coisas, pelas convulsões da história social do Brasil. Ele captura as ondas do tempo com emaranhados de objetos que refletem uma globalização exaustiva. L’antichambre, na galeria Nathalie Obadia até 18 de março, introduz uma dimensão intermediária aos seus micro diálogos esculturais que brincam ou desviam objetos para abrir perspectivas estranhas.
“Eu sou um artista que trabalha com a poeira do significado que se estabelece sobre os “objetos” com os quais eu decido trabalhar”, aponta Rodrigo Matheus.
Outra arquitetura do mundo
Antes da Escola de Belas Artes de São Paulo, em 2011, Rodrigo Matheus estudou arquitetura. Esta última formação deixa vestígios indeléveis sobre ele. “A arquitetura é tudo o que não é natureza”, foi-lhe ensinado, levando-o a reagir incompreensivelmente: “esta visão judaico-cristã eurocêntrica que considera o homem como um ser divino separado do mundo vegetal, animal e mineral” reflete, aos seus olhos, uma realidade totalmente incorreta. Mas enquanto algumas de suas obras retratam a ambiguidade “Natureza versus Arquitetura” no campo estético, essa relação permanece com uma questão em aberto. Para ele, trata-se de um sofisticado jogo crítico que busca integrar uma relação com outros saberes como, por exemplo, o dos povos indígenas. Suas composições combinam tantos materiais comuns ou industriais quanto naturais, como penas, conchas ou pedras. Outros são criados a partir de réplicas industriais da natureza com a inclusão de plantas sintéticas, criando assim outros portões que contradizem essa visão simplista e artificial da separação entre homem e natureza.
“Não tenho um método preciso ou materiais de predileção. Estou apenas interessado em objetos em circulação e as relações de poder que implicam.”, explica Rodrigo.
Arranjos prontos
Suas assemblages dão origem a surpreendentes composições-colagens de materiais industriais ou objetos cotidianos dos quais ele dá uma nova leitura. A obra produziu diálogos com os espaços dos lugares onde é exposta. O visitante descobre surpreendentes fitas de objetos compostos e estruturados que percorrem as paredes e/ou composições que investem todos os lugares, do chão ao teto, por vezes dando rédea solta a uma espontaneidade orgânica em contradição com o rigor do todo proposto. Rodrigo questiona a representação na arte e sua relação com o desenho industrial. Esses “readymades arranjados” não desprovidos de humor e poesia são acima de tudo tingidos de símbolos sociais: colonização, arquitetura e o movimento modernista, que são motivos recorrentes para ele.
Uma síntese da sociedade do nosso tempo
Suas composições estendem as colagens do artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948) que procurou refundar uma estética caótica substituindo arquétipos acadêmicos varridos pelos horrores da Grande Guerra usando os materiais mais singulares e heterogêneos. “Tudo estava em ruínas de qualquer maneira, e criar algo novo a partir de detritos fazia sentido”, disse ele. Rodrigo procuraria criar seu próprio Merz diante de uma globalização sem sentido que está devastando o mundo? Merz vem de um fragmento de papel recortado de um anúncio para o Privat und Kommerzbank e depois colado na tela que deu o nome à pintura. Em referência a este ato fundador, Merz qualificou então todas as formas de criação: colagens, assemblages, esculturas, arquitetura, poesia, tipografia… criando-se assim uma obra de arte total, uma síntese condensada da sociedade do seu tempo.
Transformando o efêmero em durável, o banal em sagrado
Para Kurt e Rodrigo, as esculturas, como as obras sobre papel, funcionam movendo e reorganizando objetos comuns. Eles reúnem os objetos mais incomuns e antagônicos, cujas associações inesperadas ilustram o princípio da “circulação de materiais” caros aos dois artistas.
As obras resultantes são carregadas de um conteúdo histórico, sociológico, que toma emprestado do “ready made” de Marcel Duchamp (1887-1968): um objeto ordinário promovido à categoria de obra de arte pela única vontade (e assinatura) do artista, o que lhe confere um novo significado. Essa abordagem constitui uma afirmação poderosa sobre o caráter sagrado, universal e misterioso da arte: é uma “obra de arte” que é assinada como tal pelo artista.
Não é tanto a forma ou originalidade da obra que é necessária, mas a atenção dada a ela pelo artista e as condições de apresentação que ele lhe confere. Ela é definida pela expressão de seu autor, assim como a recepção do espectador.
“Ao dar uma nova função aos objetos que monta, ao transformar o efêmero em durável e o banal em sagrado, Rodrigo Matheus dá substância a uma mitologia pessoal em constante evolução.”, apresenta o texto introdutório de L’Antichambre, da galeria Nathalie Obadia.
Materiais em circulação em todo o mundo
“Interessam-me materiais em circulação em todo o mundo, especialmente aqueles que são estruturantes para o nosso quotidiano e cuja presença maciça na nossa rotina e a sua banalidade nos obrigam a retirá-los de qualquer valor estético. É o caso das folhas de talão de cheques, faturas, comprovante de compra, recibos, formulários, envelopes… São materiais a serviço de sistemas que regem nossas vidas na dimensão pública e privada, cuja linguagem retira qualquer forma de subjetividade para que, nessa dimensão, toda uma vida possa se encaixar em uma forma. Comecei a trabalhar com esses materiais no início dos anos 2000, numa época em que toda essa papelada estava se desmaterializando, então há também a questão da passagem do tempo e dos impactos da revolução tecnológica.”, explica Rodrigo. Alguns são emoldurados. Eles convidam você a descobrir as cores (pálidas), os gráficos e a maneira pela qual essas montagens de materiais das “estruturas de poder” trabalham juntas propondo uma possível imagem estética.
Uma escrita de liberdade
A aparente “suavidade” de suas colagens não esconde uma preocupação silenciosa com a onipresença do sistema burocrático? Em sua lista de mentores, Rodrigo cita Franz Kafka (1883-1924). Para designar o poder opressor do sistema social e político, o escritor austro-húngaro inventou uma imagem impressionante: “As correntes da humanidade torturada são feitas de papel de escritório (Kanzleipapier, que pode ser traduzido como: papelada). Rodrigo também está tentando precipitar, no sentido químico do gesto, o meio pelo qual os órgãos de governo impõem seu poder? Em sua opinião, há pouca dúvida de que documentos burocráticos escravizam indivíduos em uma prisão formal?
O desenvolvimento de micro diálogos
“Eu confio em coincidências industriais entre peças para empilhar ou montar diferentes tipos de objetos em um único corpo. Por trás desse “princípio de composição. […] Há uma observação afiada da arquitetura e seus acessórios, como eles trabalham juntos e como eles podem sair de seu contexto original, livres de sua função. Por trás de cada pequeno objeto que nos rodeia, há um projeto cuja intenção principal é atuar no mundo. Minhas esculturas incorporam uma variedade de elementos para criar estruturas que suportam funções incomuns de objetos cotidianos. Separados, esses objetos não poderiam ser nada além de sua função; Reunidos, eles adquiriram um senso ambíguo de escala dado pela estrutura que os mantém unidos. Dito isto, a arquitetura é uma forte referência que abraça os diferentes micro diálogos estabelecidos por uma combinação precisa de materiais que permite que um cenário se desdobre. Se a arquitetura é o que rege e organiza nossa rotina no espaço público e privado, além de nos dar uma escala e nos mostrar quais são os limites, essas montagens, de forma alternativa, promovem uma espécie de desvio do conhecimento técnico.”, conta Rodrigo Matheus.
Uma obra que joga entre semelhanças e diferenças
Arquitetura e pensamento social inscritos em seu DNA, Rodrigo não pôde deixar de ser tocado pelos “grandes conjuntos” construídos entre 1969 e 1975 por Jean Renaudie (1925-1981) e sua esposa Renée Gailhoustet (1929-2023) em Ivry-sur-Seine. Conjuntos que estão perto de seu estúdio. Como parte da experiência do pós-guerra da arquitetura habitacional na França, como seu grande colega brasileiro Oscar Niemeyer (1907-2012), ele transformou o concreto em seu meio. Este incrível conjunto de edifícios montanhosos onde os espaços públicos e privados se misturam com plataformas cobertas de vegetação selvagem, assemelha-se a uma grande escultura, composta por triângulos e vegetação que iluminam a presença do concreto.
Pensamos que reconhecemos o espírito das composições de Rodrigo com volumes abertos, espaços flexíveis, circulação elástica que dão ao todo um toque labiríntico. Rodrigo também cita como inspiração o grande artista romeno Constantin Brâncusi (1876-1957). Este último acordo é de suma importância para a relação de suas esculturas com o espaço que as contém. Dentro de seu ateliê, Brâncusi criou “grupos móveis”, querendo significar a importância do elo entre as obras e as possibilidades de mobilidade de cada um dentro do todo. Podemos imaginar a pesquisa de Rodrigo nessa direção quando ele desenvolve suas composições.
Encontros de semelhanças e diferenças
“Estar na Europa desde 2011 me deu a oportunidade de observar um Brasil fictício. Então acho que a maior mudança devido à esse deslocamento foi que meu ponto de vista foi ‘recontextualizado'”, acrescenta o artista, nascido em 1974 em São Paulo.
“Esse conjunto de prédios me provocou muito desde a primeira vez que os vi. E como é muito mais do que um edifício, é uma intervenção urbana que inclui vários conjuntos de construções, tive a sensação de ter descoberto uma cidade perdida em Paris onde vi projectada parte da minha própria experiência com a arquitectura brasileira.”, recorda quando fala de Jean Renaudie. “As construções têm um vocabulário um pouco semelhante ao visto no brutalismo paulista. No entanto, o contexto e o resultado estético são muito particulares. E é com esses encontros de semelhanças e diferenças que eu queria trabalhar.”, finaliza Rodrigo Matheus.
A arte como serviço coletivo e como poesia
A primeira imagem mostrada no site de Rodrigo é da obra Mauser & Ci‘, de 2015, uma vasta composição feita de guindastes, barris de metal e dunas de areia. Mauser & Cia é o nome da antiga fábrica de tambores de óleo que, até 1935, ocupava os galpões do Sesc diante de um enorme incêndio destruísse tudo.
O Sesc adquiriu este edifício em 1971. O projeto de redesenvolvimento foi projetado pela famosa arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992). Esta última, que disse ter “dedicado este novo lugar aos jovens, crianças e idosos: a todos eles juntos”, via “a arquitetura como um serviço coletivo e como poesia”. Sem dúvida, Rodrigo poderia endossar esta última citação.
Uma possível metáfora para a cacofonia que existe no Brasil
O trabalho de Rodrigo trabalha precisamente com os ecos do passado deste edifício, enviando de volta para dentro da sala de exposições os barris que antes eram feitos exatamente ali. Assim, a instalação se impõe no espaço como um fantasma que articula o passado da fábrica e o presente do centro de arte em um único corpo. “Normalmente, meus trabalhos têm muitas chaves de acesso. Os tambores, às vezes enterrados ou pendurados na instalação, eram tambores usados da Petrobras. O ano de 2016 foi marcado por escândalos de corrupção corporativa que levaram à deposição da presidente Dilma Rousseff.”, conta. Como o outro grande artista brasileiro Cildo Meireles (1948-) que Rodrigo admira, sua obra é uma metáfora poética para a cacofonia que existe hoje no Brasil.
Dar forma à nossa relação com o mundo e à sua possível transformação
Estará Rodrigo tentando colocar em imagens o abandono de clichês de fachada do mundo da arquitetura como o de um desenho liso dos objetos mais usuais, emaranhados com torpezas humanas e impulsos inconfessáveis que têm por função esconder? Para responder, ele cita Kenneth Anger (1927-) cicerone da cena underground americana da segunda metade do século XX, conhecida por seus curtas-metragens, montagens silenciosas de imagens misturando no mesmo gesto empréstimos da alta e baixa cultura. Rodrigo, Kenneth ou Jean-Luc Godard (1930-2022), que ele também gosta de mencionar, os três gostam de explorar. Não é o impacto real de cada uma de suas obras que importa.
Seja qual for o seu formato, eles procuram viver de acordo com o concebível em sua arte. Eles são capazes de explorar as possibilidades da realidade, em todos os sentidos, e suas perspectivas para superar limites muito marcados: experimentar, dar uma forma contemporânea à nossa relação com o mundo e sua possível transformação, permanecer conectado com o mundo ao seu redor.
“Quando na vida e na ficção esses objetos são “os personagens secundários de nossas viagens”, eles se tornam aqui os principais assuntos.”, define o texto introdutório de L’Antichambre, da galeria Nathalie Obadia.
Essa é a lição estimulante que um brasileiro em Paris nos dá hoje.
Saiba mais sobre Rodrigo Matheus
- Site de Rodrigo Matheus (http://www.rodrigomatheus.com/)
- Galeria Nathalie Obadia (https://www.nathalieobadia.com/artists/49-rodrigo-matheus/overview/ )
A exposição L’antichambre, segue aberta até 18 de março, na galeria Nathalie Obadia, 3, rue du Cloître Saint-Merri, Paris 4º.
Esta é a terceira exposição individual de Rodrigo Matheus, depois de City of Stars (2019), na sua galeria parisiense, e Ornament and Crime (2016), em Bruxelas.
A L’antichambre revela um conjunto de composições sutis feitas a partir de objetos comuns. As recentes esculturas de parede são uma continuação de sua pesquisa sobre as possibilidades de encontros entre objetos heterogêneos. A remontagem de elementos multiformes torna-se emaranhada como se dialogasse entre si. Essas ligas dão origem a composições surpreendentes nas fronteiras da abstração, dando aos objetos uma nova dimensão que vai além de sua respectiva função de uso.
Para sua nova série, Rodrigo Matheus opta por exibir os elementos mais comuns e antagônicos: janelas simples cujas aberturas são interceptadas por grades dividem o espaço expositivo com malas revelando seu conteúdo, apresentadas na parede verticalmente. A maioria dos elementos do lado de fora e do interior das exposições – como os tijolos irregulares ao redor das janelas ou os recipientes meticulosamente alinhados na mala – foram feitos do zero pelo artista a partir de blocos de espuma de poliuretano. É um material leve e fácil de esculpir que dá às obras uma impressão de peso e densidade. A inusitada montagem de cada elemento, aliada ao enganar de olhos de sua composição material, colocam o visitante em um espaço instável e misterioso, às portas da realidade.