O panteísmo de Daniela Busarello é corporificado em seus metafóricos Corpos-Paisagens Abstratas.

POR MARC POTTIER Com uma energia rara e um olhar que engloba a diversidade da humanidade do passado e do presente, Daniela Busarello compõe o poder poético de Corpo-Paisagens. Seu apetite humanista é transcendido em uma obra composta onde o mistério da vida é concentrado e revelado por fragmento. A artista brasileira pode ser descoberta […]

POR MARC POTTIER

Com uma energia rara e um olhar que engloba a diversidade da humanidade do passado e do presente, Daniela Busarello compõe o poder poético de Corpo-Paisagens. Seu apetite humanista é transcendido em uma obra composta onde o mistério da vida é concentrado e revelado por fragmento. A artista brasileira pode ser descoberta na exposição imersiva Genius loci, na Paris + Art Basel – Design Miami (de 15 a 23 de outubro) e na galeria Mouvements Modernes.

Um artista que se deslumbra com as fontes da vida.

Daniela Busarello se define como “uma artista viva”. Em contato com uma obra lírica, uma artista de energia e mais energia, a brasileira já nos permite medir seus excessos através do lirismo dos textos em seu site. Seu olhar intenso e seu sorriso franco e direto são os de uma personalidade que quer provar e compartilhar o que há de melhor no mundo.

Esta arquiteta treinada abriu suas asas para longe de sua cidade natal brasileira, Curitiba, onde nasceu em 1973, para ir para Paris em 2007. Talvez para ficar longe de uma família brilhante com pai e mãe arquitetos renomados e uma respeitada tia fotógrafa? Ela bem poderia ter aportado na Itália, onde também tem nacionalidade, que corresponderia às diferentes facetas de uma personalidade sedenta de abraçar múltiplos universos e deixar as fronteiras sempre para trás.

Daniela Busarello, Série Paisagem Interior, 2019 | Coleção particular. @adagp | FOTO: Thibault Breton

Dopada com lirismo

Sem surpresa, fazer Daniela Busarello falar significa enfrentar uma tsunami de respostas impulsionadas pelo entusiasmo de um lirismo panteísta. “Seja. Eu sou energia, água, púlpito, imaginação, ação. Radiação da luz. Sou uma floresta que dança ao som dos pássaros, da água, de cada milímetro de crescimento de uma microfolha. Sou o vento suave nas folhas que também traz luz e sombra, perfumes… E então sou também o sol, a lua, o mar. Neste corpo humano, sou uma mulher que mergulha e se deslumbra com as fontes de vida: a respiração, o céu, os encontros, as paisagens”, confessa descaradamente aquela para quem a matéria da pintura é como a seiva, o sangue, o esperma do orgasmo, ao mesmo tempo fogo e água, uma matéria viva como uma extensão de si mesma.

Conjugando gestos com palavras, não hesita em encenar-se no seu processo criativo numa coreografia da qual vídeos e fotografias guardam um saboroso testemunho.

O Corpo-Paisagem Abstrato

Suas obras concentram todas as riquezas desse universo em expansão. Assim, seus “Corpos-Paisagens Abstratas” traduzem em formas abstratas essa mistura seminal, entre memória universal e percepção singular que constitui cada um de nós. Independentemente dos diferentes materiais que utiliza, inspira-se nas paisagens que encontrou, nas sensações do quotidiano, nas coisas simples e nas sensações que a percorrem ou a apoderam; raios de sol, chuva, vento, os aromas das plantas, o mar, o canto dos pássaros… As diferentes cores de luz, dia e noite também (re)passam a sugerir o corpo humano com sua carne, seus órgãos, seu sangue, suas lágrimas, seus orgasmos que se misturam com os oceanos e a seiva numa grande sinfonia colorida.

“Para mim, ser artista significa estar interessado em nosso tempo. Observo a humanidade nos níveis sociológico, filosófico e biológico. As relações entre humanos e outras “entidades” ambientais: natureza, urbano e cosmos, todas inseparáveis. É assim que meus ‘Corpos-Paisagens Abstratas’ tomam forma”, ela nos diz.

Observação, absorção, transformação e curiosidade em perpétua metamorfose

Fiel ao conceito latino de genius loci [o espírito do lugar], que ela expande em círculos do íntimo ao planetário, a artista brasileira trabalha simultaneamente em diferentes níveis de percepção e imersão: impressões viscerais , fotografias , anotações-inconscientes, coleta seus protótipos, amostras e depois elabora inventários, testemunhas de um ecossistema: água, minerais, plantas. “ Cada gesto que faço nas pinturas é respirar. É como se as telas estivessem imbuídas desses sopros de vida. Esta é a minha linguagem com o Universo”, acrescenta.

Um rito criativo da natureza na oficina

Seu processo criativo exige uma imersão holística onde todos os sentidos são investidos e associados: “Eu tiro muitas fotos dos lugares que visito. As fotos são um momento concreto de percepção que depois transformo em linguagem pictórica. Observar, absorver sensações, recolher ‘materiais testemunhais’, depois vem o processo de transformação em pigmento, a catalogação. Pode ter uma fase de pesquisa de textos filosóficos sobre o local, a escolha da música e a de esboçar, pintar ou desenhar. Escolha do título. (Pode chegar antes, com o sketch)”

Pigmentos como elixires

A decisão de utilizar materiais pouco utilizados na arte contemporânea é acompanhada por uma tipologia diferente de trabalho. Seus “materiais testemunhas” são usados ​​para fazer seus próprios pigmentos – relíquias que permitem que ela observe e fale sobre nosso tempo com seu próprio material. Com um método medieval, ela colhe flores e folhas que deixa secar lentamente. Os fragmentos de testemunhos naturais ou urbanos que recolhe são desintegrados à mão ou com recurso de uma prensa. Eles são então peneirados para se tornarem pigmentos.

A paleta é então reduzida a alguns tons, marrom, cinza e branco, que ela mistura para criar uma infinidade de novos tons. A artista então os apresenta jogando com os efeitos de transparência, leveza, sombras e luzes que deixa jogar em folhas de papel ou nos diversos outros suportes que escolhe meticulosamente para suas composições, gazes: telas de algodão, linho ou metal… e anula sempre o diálogo, mesmo quando também usa tinta a óleo. O pó assim obtido é guardado em pequenos recipientes redondos de vidro com rolha, que lembram as garrafas de elixires e poções mágicas da Idade Média.

Natureza como matéria

“Uso a natureza para criar retratos de lugares. A natureza se torna meu material – seja por sua observação ou por seu próprio uso”, diz aquela que observa os movimentos de putrefação das plantas e flores que seca. Daniela continua fascinada pelo processo de transformação em um longo processo que pode ultrapassar três meses de fabricação. Com os minerais a partir dos quais cria seus próprios pigmentos, ela afirma: “Usar esses pigmentos vivos é observar e falar do nosso tempo com seu próprio material”. Da Mata Atlântica onde mergulhou para ver e entender a devastação de que a floresta é vítima, ela extraiu mais de 170 pigmentos diferentes que farão presente essa floresta machucada em algumas de suas obras para nos alarmar metaforicamente sobre os ataques que a natureza sofre.

Um repositório enciclopédico

Seu apetite enciclopédico faz com que ela brinque com um leque de referências que vai da “ausência de assunto” à “totalidade dos assuntos” do artista Mark Rothko (1903-1970) de cujo diálogo de cores ela gosta, à paisagem-criaturas e arranhões do artista germano-americano Max Ernst (1891-1976), ao mergulho na carne como um mergulho em si mesmo do anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992), às respirações e aos vazios no obra do (italiano-)americano Cy Twomby (1928-2011), à transcendência poética e ao poder das composições e materiais do (franco-)alemão Anselm Kiefer(1945-) e, claro, novamente ao conceito de Natureza-Humano presente na obra do italiano Giuseppe Penone (1947-). O ponto comum da grande maioria dos artistas que a fascinam tem sido ter trabalhado em países diferentes daquele de seu nascimento, como uma grande família de expatriados nômades aos quais ela está naturalmente ligada.

Um oceano de energia musical

Daniela trabalha com música (muitos são brasileiros e mostram que não viram as costas para sua cultura de origem), Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Tom Jobim (1927-1994), Vinicius de Moraes (1913-1980) , mas também os minimalistas Arvo Pärt (1935-1971), Philip Glass (1937-) ou mesmo Björk (1965-). ” Eu escolho um (ou dois) para cada pintura. Ouço-os em loop, como um transe para me levar a outro estado, de concentração no sentimento e no movimento que quero dar à mensagem que vai passar pela tela quando estiver pronta. A música é um ritual que me afasta da dureza da vida cotidiana (guerra, pandemia, gênero, aquecimento global…) e me coloca em estado de sublimação, compreensão e sentimento da vida de forma macro. Ela me coloca no estado de que somos um: o oceano, os átomos, o universo, o ser humano, a natureza. Eu me sinto em um oceano de energia única”. Ela explica.

“Um momento de sonho contém uma alma inteira”

Seu fascínio pela Natureza o levou a citar Gaston Bachelard (1884-1962) “Na frente de águas profundas, você escolhe sua visão; você pode ver como quiser o fundo imóvel ou a corrente, a praia ou o infinito; você tem o direito ambíguo de ver e não ver; você tem o direito de viver com o barqueiro ou viver com “uma nova raça de fadas trabalhadoras, dotadas de perfeito gosto, magníficas e minuciosas”. A fada da água, guardiã da miragem, tem na mão todas as aves do céu. Uma poça contém um universo. Um momento de sonho contém uma alma inteira. Se a água é um de seus temas recorrentes, Daniela Busarello também cria seus ” murmúrios-mineral” que marcam os traços de transformação das civilizações. Vivos eles são transformados ao longo do tempo pelos sopros dos ventos, das marés. Ela os colhe como relíquias que se tornam “ pigmentos-fragmentos de felicidade”.

Cada lugar conhece seus espíritos e cada lugar encarna sua alma.

Daniela é habitada por um panteísmo fértil, suas obras traçam seus contornos evolutivos. Eles falam sobre ” espíritos que escapam do tempo, que unem rios, montanhas, aldeias. Esses espíritos dos ancestrais, dos amigos, daqueles que não são mais. Os espíritos que zelam pelo presente, que nos saúdam de vez em quando numa efêmera corrente de ar, na chuva que nos traz de volta à vida, na visão das montanhas. Esses espíritos da água e das florestas, criaturas fabulosas que você só encontra à noite, assim como a lua branca… O espírito protetor do lugar. Os romanos consideravam os gênios seres sobrenaturais que habitavam lugares e indivíduos. Cada rio, montanha, árvore, vila, lugar e casa tinha um espírito protetor. O seu papel era zelar pelos lugares e pelas pessoas que os frequentam… Cada lugar encarna a sua alma, a sua história, as suas memórias. Que seja uma memória inscrita nas ruas de uma metrópole, pelo asfalto que a transpira e pelos muros silenciosos que dela testemunham – minerais. Seja água ou plantas… »

Você decide !

“Os títulos dão uma pista do que a composição abstrata expressa – sensação, imagem, pessoa, lugar. No começo saí sem rastro – apenas dei o nome da série (paisagem interior, mergulho, herbário visceral, tempo decorrido) – pouco a pouco quis contar a história do que pinto pelo título”.

Claro, cada pintura fala muito mais do que seu título. Ela sempre busca um momento para conhecer aqueles que são mais curiosos do que ela.

Você vai ser?

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