LUCIO SALVATORE: DIFETTO D’IDENTITÀ

O mais brasileiro dos artistas italianos, Lucio Salvatore, esse nômade cultural se vê com um ser múltiplo. Acima de tudo, ele quer ser um cidadão do mundo, um mundo esclarecido e livre, longe dos nacionalismos e supremacismos que ressurgem nos dias de hoje.

Conversa com o curador Marc Pottier sobre as exposições:

Galeria Karla Osorio – Brasília (11 de março a 23 de abril de 2025)
Galeria Filomena – Rosewood Hotel – São Paulo (6 de maio a 7 de julho de 2025).


POR MARC POTTIER

O mais brasileiro dos artistas italianos, Lucio Salvatore, esse nômade cultural se vê com um ser múltiplo. Acima de tudo, ele quer ser um cidadão do mundo, um mundo esclarecido e livre, longe dos nacionalismos e supremacismos que ressurgem nos dias de hoje. Essa liberdade ele oferece ao público, para quem suas obras apenas dão pistas. Um artista multimídia, que se define como um artista “indisciplinado”, e que até pouco tempo praticamente não se aventurava na pintura. Essas duas exposições na Galeria Karla Osorio e na Galeria Filomena do Rosewood Hotel marcam um ponto de virada. Ele nos fala sobre a crise ecológica, tendo as plantas como principais protagonistas. Suas complexas composições de imagens e fragmentos de referências, pretendem ser arquivos materiais nos quais memória e intuição dialogam constantemente. “Defeito de identidade” é sua maneira de apontar as muitas mentiras que estão corroendo nossa civilização. Essas exposições, com obras esteticamente fortes, são acima de tudo políticas, um ato de resistência. Elas pretendem ser reveladoras para nos ajudar a pensar melhor sobre o Antropoceno.

 

O MULTICULTURALISMO COMO LEMA

Lucio Salvatore nasceu em 1975 em Sant’Elia Fiumerapido (entre Roma e Nápoles), onde mantém um ateliê no qual se refugia durante parte do ano, quando não está no Rio. Objetor de consciência, recusando-se a prestar o serviço militar, ele se exilou em Caracas e posteriormente chegou ao Rio de Janeiro em 1999. Isso só serviu para alimentar seu polimorfismo característico. Ele dá as costas a qualquer estado civil, que pudesse aproximá-lo a qualquer forma de colonialismo. Como veremos, nas obras apresentadas nessas exposições, ele é fascinado pelas contribuições do multiculturalismo e pela riqueza que cada cultura pode trazer às outras.

A PINTURA COMO ATO DE RESISTÊNCIA

Para esse artista com uma paleta tão ilimitada de expressões, passando da escultura às performances e por uma forma pessoal de poesia concreta… a pintura não poderia ser parte de um simples trabalho sobre a beleza, mas sim um novo ato de resistência.

“Já conversei com linguagens pictóricas no passado, mas sempre em suportes inéditos e em projetos experimentais, testados para as necessidades do momento.

Depois das exposições-eventos pós-covid, todos motivados por contextos de crise política ou social, externos ao meu ateliê, voltei com desejo de encontrar motivações dentro dele.

Decidi abraçar a pintura, complicando meu trabalho, me desafiando com um novo caminho de criação, pela minha percepção de honestidade do meio, que eu sentia ser um antídoto as mistificações que circulam, e por sua sustentabilidade em termos materiais, como uma atitude ética e ao mesmo tempo um valor estético.

Pintar é um gesto atrás do qual não é possível esconder-se, que nos despoja de toda pretensão, é como um ato de resistência às mistificações da contemporaneidade.”

Comenta Lucio, que se descreve, com um sorriso, como um artista indisciplinado que não se importa com categorias. Na verdade, ele se recusa a se definir como artista e pensa que a “identidade vem sempre do outro, e só o tempo pode fazer justiça a um trabalho de artista.”

DIFETTO D’IDENTITÀ

“Estas pinturas apresentadas nas duas exposições são um ato modesto e pessoal de resistência à banalização ideológica da realidade, uma afirmação da complexidade como uma qualidade intrínseca da realidade.

Nestes trabalhos tento construir uma linguagem visual que procure sustentar a complexidade do presente, que represente um antidoto às narrativas identitárias fundamentalistas, que colocam o outro sempre numa posição de erro, sempre aquém do que é preciso ser para pertencer, para ser acolhido, por um determinado grupo identitário.

A condição de migrante, de estrangeiro, de pobre, mas também de quem não se conforma religiosamente a ideologias, ou quer preservar o próprio espírito crítico, de quem não se identifica necessariamente ou percebe sua identidade como mutável, complexa, se encontra por isso numa posição subalterna perante as narrativas politicamente dominantes, sempre em defeito, em defeito de identidade.”

UMA CRÍTICA SOCIAL E POLÍTICA 

Por acreditar que a arte deveria sair dos espaços institucionais e se misturar com a vida cotidiana, com obras que desafiam o público a repensar os valores e a funcionalidade dos objetos, é porque Lucio se sente perto do pensamento do grande artista carioca, Cildo Meireles, um dos seus mentores. Os dois artistas querem oferecer novas perspectivas sobre a realidade. Suas obras são marcadas por uma forte crítica social e política, denunciando a injustiça, a desigualdade e a opressão. Um outro vínculo importante entre as duas exposições de Lucio com o trabalho de Cildo Meireles, é pelo fato que o artista brasileiro também explorou a natureza em suas obras, questionando a relação dos seres humanos com o ambiente. Pensamos, entre outras, na obra Rio Oir, na qual o Cildo coleta o som de algumas das principais bacias hidrográficas brasileiras: da Foz do Iguaçu até a Pororoca do Macapá, do Parque das Águas Emendadas à Foz do Rio São Francisco… Lucio se lembra:

“O Cildo Meireles uma vez no ateliê dele, em Botafogo, me explicou a história divertida da expressão brasileira “o caminho das pedras” que até então eu não conhecia. Daquela história eu entendi que não existe uma via única para o artista, um modelo a ser seguido, e sim, que cada um vai descobrindo seu “caminho das pedras pessoal”.


UM ESPAÇO METAFISICO SE TRANSFORMA EM ESPAÇO POLÍTICO

“Quando Lucio Fontana criou os Concetti Spaziali e os tagli, a arte contemporânea estava ainda num período utópico modernista, e ele era produto de um pensamento metafisico que acreditava que o seu gesto de cortar a tela tivesse o poder de comunicar uma transcendência e conduzir o observador numa dimensão temporal infinita. Em termos formais me interessou citar ele, criando uma correspondência entre o conceito de corte e o de ferida, aonde o espaço metafísico se transforma em espaço político. As feridas purpuras nas minhas telas lembram as lacerações de Fontana, mas se tornam símbolos não de uma aspiração metafísica, mas de uma violência concreta e sangrenta. 

Penso nas minhas telas não como representações visuais, mas como dispositivos críticos que me permitem questionar o papel da arte, a natureza da realidade contemporânea, a relação entre imagem e significado.”

PINTURA E TECNICA

Como mencionado acima, para essas exposições Lucio tomou um novo rumo em seu trabalho ao abraçar a pintura:

“Nos últimos quatro anos embarquei em uma nova jornada de pesquisa artística, que, sempre com a atitude conceitual que me acompanha há mais de 20 anos, abraça pela primeira vez a pintura como prática diária no meu trabalho de ateliê, uma expansão do meu processo, uma integração que explora as tensões entre corpo, ideia e tempo.

Quando comecei com a pintura, me prometi uma liberdade experimental, que talvez obras mais conceituais e materiais mais vinculantes não me permitiram. Meu proposito é criar obras que consigam incorporar na pintura as visões que surgissem ao longo do processo e aquelas construídas no tempo. 

Comecei no Rio de Janeiro, na residência da Inclusartiz (2022-2023), desenhando com lápis arvores fotografadas no Jardim Botânico do Rio e pintando com as poucas tintas a óleo que na época tinha trazido da Itália. Fui evoluindo, agregando técnicas que a cada momento me pareciam interessantes, utilizando projetores, image-transfer, imprimindo imagens, usando ‘’carta copiadora”. Acredito que continuarei ampliando o leque de instrumentos se for necessário.

Meu comprometimento é com a criação de quadros críticos, dispositivos simbólicos que estimulam o observador a construir conexões, espelhos que refletem a fragmentação das nossas experiências temporais e, ao mesmo tempo, espaços no quais essas fragmentações podem ser compreendidas, harmonizadas e habitadas.

A arte é uma ferramenta para complicar a experiência do mundo, e ao abraçar a pintura eu queria complexificar meu trabalho.

A pintura não é uma janela para um mundo idealizado, mas um campo de batalha conceitual, um lugar onde as ideias colidem com a resistência física do material.

Desde as primeiras experiências com a pintura, o óleo sobre tela parece ser uma espécie de arquivo material sobre o qual memória e intuição dialogam incessantemente, feito de estratificação da cor, num processo correspondente ao inverso da escavação arqueológica, nunca imediato, muitas vezes esquivo.

Olhando para essas primeiras séries pictóricas, fica claro que a pintura incorpora a mesma urgência sociopolítica que caracterizou meus trabalhos anteriores”.

IMAGENS DOS FRAGMENTOS

Como vimos, as obras de Lucio utilizam diversas técnicas que lhe permitem moldar suas composições complexas. Suas cosmologias de referências e fragmentos de imagens constituem um museu imaginário que ele oferece ao espectador para que este, por sua vez, crie sua própria narrativa. As referências ecológicas casam-se, assim, com imagens políticas ou com aquelas das inúmeras obras de arte que marcaram Lucio ao longo de sua vida. “As pinturas configuram-se como montagens de fragmentos, retirados de diferentes temporalidades e contextos, colocados em relação, sem nunca se subordinarem a uma ordem narrativa imposta, mas mantendo sua autonomia, seu potencial simbólico e sua irredutibilidade. O resultado não é uma imagem acabada, mas uma construção aberta, que convida o observador a participar da criação de significado. Como um arqueólogo que desenterra cacos e fragmentos de diferentes épocas, construo a imagem por meio de sobreposições em camadas e fundidas de memórias, imagens de crises contemporâneas, detalhes de obras de arte, fragmentos do passado e símbolos.” Como exemplo, citemos:

“Fui ver uma exposição de Claudia Andujar em São Paulo e entre as muitas imagens intensas, me tocou a fotografia do corpo deitado de um trabalhador indígena, morto durante a obra de construção da Transamazônica nos anos 70, obrigado a trabalhar numa estrada que tanto sofrimento iria trazer ao seu próprio povo. Quando decidi dedicar uns trabalhos ao abricó-de-macaco, uma planta amazônica fascinante e que se tornou sagrada no sudeste asiático, estes dois fragmentos de temporalidades diferentes, mas intimamente conectados voltaram falar alto no meu presente, e se tornaram protagonistas da obra.”

A CRISE ECOLÓGICA  

“A crise ecológica está presente por toda parte. Lhe dou exemplos: na obra que representa a raiz de Sumaúma (uma arvore, que retêm a água que absorve nas profundezas do solo e que libera em épocas de seca irrigando o seu entorno e desempenhando um papel vital no ciclo da água) é representada em cima de uma bacia hidrográfica de água poluída por produtos químicos, no centro da maior mina de ferro a céu aberto do mundo, em Carajás, escavada no coração da floresta amazônica.

A interconexão de crise política, econômica e ecológica é central na obra sobre a soja, que fala das raízes nacionalistas da ideia de Brasil e um dos seus pilares: a narrativa do progresso que renova suas diretrizes a cada geração. Novo Progresso na BR 163 é um dos muitos centros habitados, como Castelo dos Sonhos, Novo Mundo, que nasceram nos eixos das rodovias transamazônicas após o desmatamento e são uma manifestação da cultura do colono fronteiriço. Neste contexto de expansão colonial, a monocultura tornou-se um dos pilares do crescimento econômico e do poder da Nação, e do desastre humano e ambiental do seu território. O bioma hoje se transformou em sino-amazônico, pois a soja (Glycine max, L. Merr.) que emigrou da China, de invasora se tornou de fato uma espécie da biodiversidade brasileira e dominante”.

“TENHO UMA PROFUNDA RELIGIOSIDADE EM RELAÇÃO AS PLANTAS” LS  

“A floresta é sagrada. Se as imagens coletadas na tela parecem distantes e desconectadas, é a presença das plantas que fornece um contraponto harmônico e uma ancoragem simbólica. As plantas são as protagonistas da narrativa e estabilizam a composição fragmentada.

Em um contexto de caos visual e temporal, as plantas representam uma ecologia estética e moral, uma âncora visual e simbólica que torna tolerável a visão de uma realidade de outra forma insustentável.

As plantas retratadas com precisão não são um elemento decorativo, mas assumem um papel central: são portadoras de histórias pessoais que falam de adaptação, resiliência, migração e pertencimento, 

qualidades que se tornam metáforas da possibilidade de sobrevivência num mundo marcado por conflitos e abusos de poder.

Sua presença confere estabilidade e harmonia aos espaços pictóricos, tornando toleráveis ​​as imagens mais difíceis de fixar.

As plantas tornam-se um símbolo da capacidade de regeneração e da possibilidade de equilíbrio mesmo nos contextos mais adversos.

Em uma pintura crítica, as plantas representam uma harmonia crítica, não idealizada”.



INCLUSÃO DE IMAGENS DE OBRAS CONTEMPORÂNEAS

“Outro aspecto crucial desse caminho de experimentação pictórica é meu interesse pelas imagens de obras de arte, inseridas nas telas não como citações acadêmicas e literais, mas como dispositivos simbólicos que enriquecem as pinturas com significados ambíguos e abertos.

A escolha de incluir obras de arte não se pauta por uma intenção didática ou histórica, mas pelo seu potencial simbólico e pela sua capacidade de dialogar com o restante da composição, que por sua vez são fragmentos de uma realidade estratificada e complexa, multiplicando exponencialmente as possibilidades de interpretações.

“Nesta serie aparecem homenageadas, transfiguradas, disfarçadas, obras de arte históricas, mas principalmente de exposições que visitei recentemente e manifestaram alguma forma de conexão com obras especificas. Além da Fine di Dio de Lucio Fontana ou I like America, America Likes Me de Joseph Beuys, posso mencionar também Shoot de Chris Burden, imagens da exposição Liminal de Pierre Huyghe, uma gaiola com papagaio de Marcel Broodthaers, uma monotipia de David Hammons, vista recentemente em Palazzo Grassi em Veneza, uma pintura de Debret, imagens da instalação The Museum of the Old Colony apresentada na última Bienal de Veneza, uma foto de Claudia Andujar, Socle du Monde de Piero Manzoni e fragmentos da performance de Olinda Tupinamba e Ziel Karapoto realizada durante a inauguração do pavilhão Hãhãwpuá na Bienal de Veneza, no meio daquele fluxo de turistas do luxo da arte, um ritual de expiação salvífico que naquele momento me relembrou porque eu estava ali, porque a arte é sobre o sagrado, não sobre consumo.

As pinturas murais do Antigo Egito são outro importante ponto de referência para esta nova série de obras, que citam constantemente com suas representações de migrações, trabalho forçado, escravidão e religiosidade, ferramentas para questionar a condição humana e sua relação através de símbolos com a morte, a morte como um rito de passagem, a importância da morte como ponto de transição e transformação.”

ARQUITETURA DA FRAGMENTAÇÃO E DA TEMPORALIDADE COMO FORMA

“Ao criar obras que refletem a complexidade do presente e a pluralidade de experiências temporais e culturais, os fragmentos não são simples referencias de uma realidade estilhaçada, mas elementos que, juntos, compõem um quadro crítico.

As telas são um testemunho de uma época em que a experiência da realidade se desintegra em fragmentos, que são costurados em composições visuais, que acolhem e refletem a complexidade e a ambiguidade do mundo contemporâneo.

A pintura se move em dois eixos fundamentais não lineares, tempo e espaço, ambos fragmentados e reconstituídos em montagens de temporalidades e significados.

Nas minhas pinturas os fragmentos coletados se confrontam como numa dialética visual que não busca uma síntese. Cada fragmento permanece irredutível ao seu contexto original e, ao mesmo tempo, contribui para a construção de uma obra que vive de suas tensões internas.

Uma obra de arte pode ser um sistema interpretativo não conclusivo, um lugar onde o significado não é fixo, mas continuamente gerado pela interação entre obra e observador. Minhas telas são inspiradas nessa ideia. Os fragmentos remontados nunca oferecem uma narrativa linear ou uma mensagem explícita, são dispositivos simbólicos que estimulam o observador a construir conexões, a criar seu próprio significado.

Essa abertura é crucial em um mundo fragmentado, onde as histórias são locais, diversas e contextuais. Dedico-me a coletar histórias que encontro na rua, fragmentos de notícias, imagens de viagens, símbolos culturais, e organizo-os de forma que possam dialogar sem se reduzirem a um único significado”.

A FOTOGRAFIA COMO GRAMÁTICA VISUAL DO PRESENTE

“A escolha da pintura implicou em uma reapropriação crítica da fotografia, que para mim foi instintiva e natural desde o início.

Queria recuperar a fotografia, com a qual trabalhei muito desde o início da minha carreira, como material de estudo, como processo de formação de uma linguagem pictórica que respondesse à complexidade do presente, um meio técnico que criasse uma estrutura de pensamento.

Nesse sentido, entendo a linguagem pictórica como uma ferramenta teórica e crítica, capaz de questionar minha relação com as imagens e com a forma como construo significados. É por meio dessa dialética entre fotografia e pintura, entre fragmento e constelação, que tomei mais consciência da importância deste projeto.

A fotografia, no meu trabalho, não é apenas um meio ou um ponto de partida para a criação de imagens pictóricas, é uma reflexão incorporada sobre a relação entre imagem, realidade e significado.

Por meio de um processo de recomposição e transformação, entendo minha pintura como um lugar onde imagens fotográficas se tornam fragmentos de um discurso maior, um diálogo aberto que reflete a complexidade da realidade.

Em meus trabalhos, a fotografia não é uma imagem fechada, um simples dado visual, é uma base plástica que retrabalho, decodifico e recodifico na pintura.

Nesse sentido, a imagem digital se torna uma ferramenta de pensamento, um meio para questionar o mundo e nossa relação com ele.

A pintura traz a imagem digital de volta à sua dimensão material (como já havia feito em 2014 com as imagens das figurinhas adesivas): um ato de criação que preenche as lacunas deixadas pela tela digital, que devolve uma profundidade de significado ao visível.

As imagens fotográficas que tiro, fragmentos de notícias, viagens, experiências pessoais, nunca ficam apenas como fotografias na tela.

Por meio da colagem e da pintura, essas imagens são transformadas em um campo aberto de significados, em uma dialética entre a automaticidade do fluxo digital de informações e a intencionalidade da criação pictórica.

Em nosso mundo digitalizado, a imagem digital não é apenas mais um meio de representação, mas se tornou a própria gramática com a qual o presente é narrado.

A prática pictórica mostra como a imagem digital pode ser não apenas decodificada, mas transformada, como ela pode atuar como uma ponte entre a máquina e o humano, entre o cálculo e a imaginação.

A fotografia não é um ponto de chegada, mas de partida: um processo que, passando pela pintura, me convida a refletir sobre a relação com o visível e sobre o modo como hábito o mundo contemporâneo.

No meu processo pictórico, a imagem fotográfica perde sua presumida objetividade e se transforma em uma matéria viva, aberta à interpretação do observador.

Aproprio-me do fluxo visual contemporâneo, que vai de fotografias históricas a imagens de notícias, viagens, celulares, para devolvê-lo numa forma que questiona minhas relações com a realidade e com a maneira como a represento.

As imagens que retrabalho não são simplesmente representações da realidade, mas vestígios de uma experiência vivida, de um diálogo com o tempo, com os contextos, com as histórias que se inserem num processo em que a fotografia deixa de ser um produto acabado e se torna material filosófico, uma estrutura sobre a qual construir novas formas de pensamento e percepção.

A pintura como síntese visual, na qual a imagem digital não é simplesmente aceita ou rejeitada, mas reconstruída, enriquecida, tornada sua, para lembrar que, mesmo na era das imagens digitais, é 

possível pensar restituindo profundidade e sentido ao que corre o risco de ser reduzido a pixels puros.”

PARA CONCLUIR

Lucio Salvatore tem muito a dizer. Este  texto é apenas parte das conversas que tivemos na preparação dessas duas exposições. Em um mundo da arte que, sem dúvida, brincou demais com a chamada morte da pintura, as obras deste artista trazem uma nova contradição pungente. Com um jogo inteligente de inúmeras técnicas, ele compõe um enxame de referências nutritivas. Por trás da aparente sedução de obras em que se destacam a representação de plantas, de obras de arte de referência, mas também de imagens políticas dos grandes dramas que ferem o mundo… não é a ‘beleza’ que é visada. Pelo contrário, tudo é efetivamente orquestrado para alertar o espectador sobre a violenta era do Antropoceno na qual estamos imersos. Com seus mosaicos de ressonâncias, Lucio Salvatore nos oferece uma obra de resistência!

Marc Pottier é francês, radicado entre o Brasil e a França, é curador internacional de arte contemporânea, especializado em arte em espaços públicos. Ele também está envolvido com plataformas digitais culturais, televisão e webtv. Hoje é curador da Usina de Arte, um parque de esculturas perto de Recife, pertence ao Núcleo Curatorial do MON (Museu Oscar Niemeyer) em Curitiba e é o coordenador internacional para a elaboração do projeto de futuro Museu de Arte Contemporânea de Foz do Iguaçu, com o coaching do Centre Pompidou.

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